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A mostrar mensagens de agosto, 2024

Ver e não ver (outros exemplos)

Vertigo é não só a história de um homem que se apaixona por uma quimera, mas também de um homem incapaz de ver a mulher real, próxima, calorosa, enamorada, abnegada, compreensiva, inteligente que tem à sua frente.  Paulino Viota, A herança do cinema.

Variações sobre um tema ou — Babylone, à nous deux !

«Os bons tradutores não interpretam só as palavras.»  Alda Rodrigues, Simpatia inacabada #5, 15 de março de 2023. À primeira vista, traduzir não tem nada a ver com representação teatral. A tradutora está metida no seu quarto, sozinha, horas a fio, enquanto a actriz se move em cima de um palco iluminado a falar para o público.  Mas depois de contornarmos essas pequenas evidências, podemos muito bem afastarmo-nos a correr, movidas por ideias caprichosas, e então começamos a perceber que traduzir e representar podem ser — são mesmo — movimentos afins.  Afinal, a tradutora não está fechada num quarto, já saiu pela janela e vai para todo o lado atrás das ideias e das palavras impressas. Interpreta o texto e o autor; ensaia os seus gestos até o movimento sair automaticamente, sem pensamentos analíticos — até as palavras e as frases encontrarem um ritmo instintivo: uma coisa nova . E agora é como se estivesse em cima de um palco iluminado com uma luz escura a representar para uma audiência de
«O homem começa de novo todos os dias, apesar de tudo o que sabe, contra tudo o que sabe.» Cioran a abrir o belíssimo livro A Noite de Todos os Dias que acompanha a exposição de Maria Capelo na Galeria Ala da Frente, em Famalicão, até 4 de Outubro.

Dos jornais III

Não é preciso artes de bruxaria para ver o futuro; as notícias que vou lendo das catástrofes provocadas pelas alterações do clima na Grécia são o nosso futuro. As imagens parecem saídas dos filmes bíblicos dos estúdios de Hollywood — já sabemos como é que a história acaba.

O trajecto da paixão desenganada

MARGUERITE DURAS: Sabe, o seu filme, é assim que o vejo. Vejo-o em Paris, em Paris fora do tempo, imprevisível, inverosímil, como uma cidade que foi admirável mas agora está em processo de destruição e, no interior dessa destruição, estão estas duas mulheres errantes que não se sabe lá muito bem de onde nem de que comunidade vêm — de prisões, asilos psiquiátricos, bairros sociais, de certas famílias francesas, da aristocracia Muette-Passy. Estas mulheres desafiam qualquer noção de classe e são largadas na destruição de Paris, já não podem parar, elas circulam como os automóveis, como as notícias, como Nova Iorque na Europa, como o cinema, como a eternidade. Elas são perseguidas enquanto circulam, por um poder que não sabemos se é o da polícia ou o da paixão. Bulle ama um homem e não morre disso, Pascale ama o karaté: nunca se viu mulheres assim ao ar livre, sem qualquer compromisso, sem identidade, um filme que é, como um rio que corre, admirável, admirável.  JACQUES RIVETE: Isso int

Três em linha

Em 1772, Diderot escreveu Isto não é um conto 1 (com Madame de Carlière e Suplemento à viagem de Bougainville ,  forma um tríptico de contos morais — quase dois séculos antes de Rohmer). No segundo conto (ah, afinal são contos), Diderot narra a história de Gardeil e da Menina de la Chaux. Por amor a Gardeil, de la Chaux larga honra, fortuna e família. A vida deles não é fácil. De la Chaux aprende grego, hebraico, italiano e inglês para ajudar o amante nas traduções. Mas um dia, sem nenhuma justificação, Gardeil abandona-a. Diderot conclui o conto dizendo que é um pouco precipitado julgar alguém por um único traço de carácter, mas que há muita verdade nas generalidades.  Em 1974, Paulino adapta a história, mas troca o título. Por influência de Baltasar Gracián , o filme chama-se  Jaula de Todos . Em 2018, Pablo García Canga filma De l’amitié , baseado num fragmento de Isto não é um conto (1772) de Denis Diderot e Jaula de todos (1974) de Paulino Viota. 1. Há uma tradução de Pedro T

Passageiros

No intercidades, o passageiro ao meu lado não afasta os olhos do telemóvel. Tem um livro pousado sobre os joelhos, que permanece fechado durante toda a viagem, com uma capa monstruosa e o seguinte título: A fábrica de cretinos digitais . 

O peido de rã (outra vez)

Durante quatro anos (entre 1971 e a morte de Franco), Paulino Viota e o seu primo Javier Vega (trabalharam juntos em José Luís , Fim de um inverno , Contactos  e Com unhas e dentes ) tentaram fazer um filme explicitamente político inspirado nas peças didáticas de Bertolt Brecht, mas não conseguiram dinheiro. O argumento foi considerado primeiro demasiado vanguardista, depois demasiado didáctico. Conforme iam trabalhando o argumento e a abordagem cinematográfica, também mudavam os títulos: ...E o ouro dos seus corpos , Táctica , Os explorados falam de exploração , ou O mar não é surdo . Nota: mais um (entre outros) para a  lista de Henri Lefebvre.

Igreja

Roberto Calasso cita em K. um comentário de Musil sobre O Desaparecido. Musil diz que o romance de Kafka é regido por «aquele sentimento das orações fervorosas das crianças e tem algo do escrúpulo irrequieto dos trabalhos para casa bem feitos.» O comentário também serve como uma luva às Redacções de Fritz Kocher , de Walser.  Karl Rossmann, Fritz Kocher, Franz Kafka.  Roberto Calasso, Robert Musil, Robert Walser.  E todos os santos e santas da nossa sagrada igreja.

Un hermano de Jean Renoir

Creio que foi no último jantar na cantina do Centro de Negócios do Fundão, em conversa com a Carlota e o Rodrigo, queixei-me um bocado do lado sorumbático do cinema e disse que precisávamos de mais tipos como Jean Renoir — com um olhar amplo e alegria luminosa.  Agora que comecei a ler La Família del Cine , dou-me conta que Paulino é um desses homens. Apesar de ter sido obrigado a desistir de filmar por falta de apoios, encontrou um desvio e exerce, desde os anos oitenta, a sua actividade cinematográfica no ensino e na crítica sem rancores e com uma inteligência imensa e bem humorada. Para além de contemporâneo de Griffith, Paulino Viota é um irmão de Jean Renoir.

A sua parte remelosa

Ela, Tina (a personagem), Guadalupe G. Güemes (a atriz), está a fechar a porta de um armário. Quando a porta fecha, não se ouve nada. A sequência é muda. Silenciosa. É um filme feito com recursos de amadores, na segunda metade dos anos sessenta. Para um realizador dessa época, o som era um problema. Dificuldade do som directo ou do som pós-sincronizado. Neste filme há vários tipos de som e é ao realizador que cabe escolher um deles. Não podem coexistir. Há momentos de diálogo, em que ouvimos vozes. Há momentos em que ouvimos som ambiente, por exemplo, sons da rua. Há momentos em que ouvimos música. E depois há momentos em que não ouvimos nada. Quando o namorado da Tina espera impacientemente por um amigo na rua, por exemplo. E esta sequência quotidiana da Tina e do namorado depois de, pressentimos, terem passado a noite juntos, a levantarem-se, a lavarem-se, a vestirem-se, enquanto a câmara os acompanha, livre e íntima. Pode-se pensar, claro, que se não há som é por falta de meios. Ma

Com os olhos bem fechados

Também vejo cenas de cinema sem ser em filmes.  A história Jemmy (mais imitação do que tradução) que faz parte d’ As Filhas do Fogo (um trabalho de montagem para provar aos outros que não estava maluco) é um western de John Ford (ao nível de Seven Women ou The Quiet Man ).

Ver e não ver

Ainda a propósito de ver e não ver: «A prática de vendar os olhos de prisioneiros palestinos tem sido amplamente empregada por soldados israelenses. Não apenas no momento de captura ou deslocamento de detidos. Trata-se de uma técnica de tortura: vendar os olhos também por longos períodos em cativeiro. Os impactos destrutivos são notáveis. É um ato de privação sensorial que, segundo a psiquiatra e psicoterapeuta palestina Samah Jabr, tem consequências psíquicas e fisiológicas perenes: lesões oculares, estados profundos de dissociação, vulnerabilidade e dor. Sobreviventes relatam a indiferenciação do dia e da noite, também a impossibilidade de dormir por longos períodos ou de suportar a escuridão. Para alguns, após serem desvendados, as pálpebras não se fecham por algum tempo. Vemos sobreviventes que saem da prisão desfigurados com seus olhos arregalados, em choque, não piscam mais. Seria o vendado aquele que teria visto demais? Para Samah Jabr, soldados israelenses vendam os olhos dos

Episódio psicótico breve

Não sei o que aconteceu, perdi-me na sessão e vi — com extrema definição — tantas ligações em Ana .  Tati no número do circo (duas vezes); Dreyer quando Ana está junto à cama de Alexandre doente e o pároco de Ambricourt na sua deambulação final; Paradjanov nos tapetes, nos pimentos (contrabandeados de Espanha), e na cena dos pássaros; Staroye i Novoye nos campos;  Las Hurdes em certas cerimónias; John Ford na entrega dos ovos junto à cancela e no plano de Octávio encostado ao umbral da porta da igreja de Algosinho e, já fora, qualquer coisa de Straub e Huillet nos homens a comer morangos; Renoir na cena do banho no riacho — e de tal forma que julguei que os gansos também eram de Le Déjeuner sur l'Herbe ...  (Peregrinação Exemplar) O filme de António Reis e Margarida Cordeiro também é uma aula (ou uma história?) do cinema. Devia ser projectado regularmente por todo o país e nós íamos pelos campos a Bragança ou a Moura ou a Aljustrel ou a onde calhasse só para o ver ( juste pou

A natureza como imemorial casa

Os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro inserem-se numa comunidade com algumas influências reconhecíveis e muitos herdeiros apaixonados; o que eles fazem é cinema. Podemos começar por defender esta verdade necessária. Mas, em rigor, não sabemos bem, ou sabemos cada vez menos, o que se agrega sob a palavra «cinema», por isso a proposição não faz justiça a uma obra cujos pontos de fuga nos levam para muito longe. Quer dizer, eles usam a linguagem primitiva do cinema mas depois estabelecem um diálogo intenso com muitas outras coisas: pintura, música, literatura, e ainda mais o conhecimento da terra e das pedras, dos animais e dos frutos, das estações, das construções das casas ou dos barcos, da vida e da morte — ou seja, nos seus filmes todos os elementos fundamentais da cultura vibram e isso dá-lhes um carácter de objectos raros e preciosos. Como se o cinema fosse um olhar cosmológico. Como se eles fossem feiticeiros. (...) Da folha de sala para a sessão organizada pelo Lucky St
 

1951, o ano do sabão

Em 1951, a indústria cinematográfica sueca sofre uma grave crise. Nenhum grande filme foi produzido nesse ano. A actividade de Bergman exerceu-se então no domínio do filme publicitário. Resultado: nove curtas-metragens de propaganda para uma marca de sabão. Jacques Siclier, Ingmar Bergman . Tradução de A. Freire de Meneses.

Lentes de aumento

Adorno é o único exegeta que parece fortemente impressionado pela figura da professora Gisa, personagem secundária que só aparece numa cena de O Castelo , quando recupera a posse da sua sala de aula na escola onde K. e Frieda se alojaram com os ajudantes. Kafka descreve Gisa como «uma rapariga alta e bonita, apenas um tanto altiva». Nada mais. Adorno descreve-a da seguinte maneira: «Gisa, a professora loura, é talvez a única rapariga bonita, cruel e amante dos animais que é por ele [Kafka] descrita como incólume, como se a sua dureza escarnecesse do turbilhão kafkiano; pertence à raça pré-adâmica das jovens de Hitler, que odeiam os judeus muito antes de eles existirem.» Roberto Calasso, K. Tradução de José J. C. Serra.

Códigos & Fluxos

Os Encontros de Cinema do Fundão são muito acolhedores: permitem ver filmes raros, discutir ideias vagas, estabelecer diálogos inesperados, e por aí fora. Ouvir Paulino Viota , por exemplo, foi uma descoberta tão maravilhosa que vou tentar prolongar o efeito inebriante recorrendo a actividades paralelas.  Mas o que mais me impressionou não foi de ordem cinematográfica (lá estou eu a falhar o degrau outra vez): para além de compreender materialmente o que é o calor do verão no interior e o ritmo de uma terra pequena, depois de algumas investigações percebi que se vivesse no Fundão o mais certo era ter votado no candidato do PSD nas últimas autárquicas — um gesto que me é completamente alheio.  É como se a dupla do vidro da montra (loira, sofisticada, e talvez com um  tailleur  cinzento?) se afastasse de mim e virasse à direita.

O eleito e o condenado

O Processo e O Castelo têm um pressuposto idêntico: o de que a eleição e a condenação quase não se distinguem. Este quase é o motivo por que se trata de dois romances e não de um. O eleito e o condenado são os escolhidos, aqueles que são isolados de entre muitos, de entre todos. Deste isolamento resulta a angústia que os domina, independendentemente das suas sortes. Roberto Calasso, K. Tradução de José J. C. Serra.

Verão no escritório

Por estes dias, alguns colegas de trabalho trazem os filhos para o escritório porque não têm onde os deixar. São quatro crianças pequenas. Brincam às escondidas pelas salas, lançam-se esbaforidas pelos corredores, tropeçam nos cabos das impressoras, falam e riem alto. Põem tudo de pernas para o ar. Um pequeno bando de demónios traquinas a espalhar o pânico num mosteiro trapista.

Dos jornais II

«Cinco guardas prisionais foram destacados para escoltarem um recluso do Estabelecimento Prisional do Linhó, Sintra, a uma sala de cinema no Estoril, Cascais.»  A notícia não diz o nome do filme, mas eu tenho um palpite.

Solidariedade

Sessão de solidariedade com o povo palestiniano. A livraria está cheia. Alguém lê um poema: «… os meus dias estão salpicados de sangue e de perdas irreparáveis…» Um tipo, sentado à minha frente, fotografa com o telemóvel as suas pomposas sapatilhas amarelas. Faz várias imagens, de diferentes ângulos. A leitura prossegue: «… o fogo rodeia-me por todos os lados…» O tipo escolhe uma fotografia e exibe, orgulhoso, as sapatilhas amarelas nas redes sociais. Espera cinco segundos pelos primeiros likes . Reage com um emoji sorridente a um comentário. Ao lado, encostada à parede, uma rapariga de 18 ou 19 anos, escuta o poema abraçada a um boneco de peluche que trouxe de casa. «… nem mesmo aos meus inimigos fidagais desejo este inferno…» Um rapaz também quer ler um poema. Pousa o gin-tónico, compõe o gesto e começa. Não há dúvida de que sabe ler. Talvez seja um actor. «… os nossos ossos hão-de ser Inverno para queimar à lareira…» A amiga dele grava tudo com o telemóvel. Aplausos, aplausos. O ra

Ganância

Centenas de vendedores protestam à porta dos escritórios do grupo chinês Temu: «A margem de lucro bruta que a Temu nos dá com os seus preços é entre 10% e 20%, por isso, depois das multas, sangramos ».  /// (...) Marcos Sousa é porta-voz da comissão de trabalhadores dessa empresa e explicou à agência Lusa o «luto» dessa comitiva: «Éramos uns 300 funcionários na fábrica e começámos a ser pressionados para sair. Neste momento a empresa já negociou a saída de 103 pessoas e agora quer alterar os horários das que sobram, para deixar de ter turnos rotativos e pagar menos pelo trabalho noturno».  (...) Esse dirigente sindical defende que «não é a crise a impedir os aumentos» — nota que a Amorim está inclusivamente a pedir horas extras aos funcionários da Champcork e da Socori para atender a encomendas no período de férias — mas admite pressões desse líder mundial da indústria sobre empregadores mais pequenos. «Só ainda não chegámos a acordo porque a Amorim pressiona as outras empresas a não