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Mensagens

Pequenas notas sobre um grande amigo

Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a «Poesia Reunida», em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século. Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende deixou de ser um segredo guardado por meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta. O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever. Os três livros que publicou, antes da «Poesia Reunida», de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A «Poesia Reunida» também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele q

A reflexão e a acção

A certa altura do teu mail anterior dizias: «Parece-me que é entre estes dois pontos que a nossa vida se joga: a reflexão e a acção.» É curioso, isto faz-me lembrar as plantas. Elas têm uma parte reflexiva e uma parte activa. A parte reflexiva é a parte das folhas, que estão ali à espera que venha o ar e o sol dar-lhes o CO2 e a luz de onde extraem 88% da sua massa. A parte activa são as raízes que furam o solo e exsudam açúcares para os microorganismos que, em troca, lhes dão azoto, potássio, quelatos de ferro, etc., e oligo-elementos, isto é, o resto, muito pouco, da sua massa. Bem, tenho consciência de que isto tudo é um pouco confuso, mas pronto. Um abraço.  manel

Na Provença à procura da orelha de Van Gogh

Na Provença à procura da orelha de Van Gogh Essa orelha que nem o amor criterioso da honrada família Conseguiu preservar do esquecimento, Pobre orelha a que mais ninguém ligou E que está se calhar esperando o seu dono Que não volta, Nessa Provença é que eu estou. A verdade é que nem eu a encontrei, Mas, também, como os outros, não perdi muito tempo a procurá-la. Salvem-se os quadros, vendam-se os quadros Guardados pela criteriosa família E até por descuidados provençais - é o essencial. A orelha, que se lixe, não se pintam quadros com orelhas. As orelhas são para os músicos, e mesmo esses, Às vezes já só tocam música interior. Vicente, meu velho, em verdade te digo, Que por aqui as plantas andam a tentar imitar-te E, tantos anos depois, ainda não conseguiram. Elas bem se torcem, elas bem chamam o sol, Que todo se estremece, Elas bem se encostam ao céu, Elas bem se verde, elas bem se azul, elas bem se amarelo. Eu sei, eu sei, Vicente, muito te custou, Talvez até

A classe operária apanha o elevador e sai no 13º andar

Não sou de comprar muitas coisas. Nunca fui. Vivo no mesmo apartamento há trinta anos; o carro tem mais de vinte. Roupa, só a necessária. Tralhas para a casa, nem pensar. Houve um tempo em que comprava livros e filmes, mas também me deixei disso (vou à biblioteca ou releio, aborreci-me um bocado com o cinema). Deixei de fumar. Aproveito tudo até ao fim, consumo cada vez menos. Neste momento só gasto dinheiro em coisas básicas tipo água, electricidade, de comer e beber, transportes, dentista. Apesar do rendimento familiar ser baixo, sobra mais ou menos um terço todos os meses — sem esforços. O dinheiro serve-nos para pouco. Já fiz as contas, quando ficar sem emprego (não falta muito) posso viver dos rendimentos. Pareço a minha avó que com pouca comida, enchia uma mesa; e com uns trocos, juntava dinheiro. Uma versão letrada e manhosa da minha avó.

Dia do pão

Milhões e milhões de euros, dólares, cuanzas. Mansões nos quatro cantos do mundo, iates, automóveis de luxo. Para a esmagadora maioria, tudo isto tem o mesmo peso de uma folha de jornal, lida de manhã cedo no metro, a caminho do trabalho. É tão concreto como uma história de fadas ou um policial, ou um episódio da novela da noite. Estamos fora desta escala, tal como os nossos pais e avós também estiveram. Não entendemos, apenas imaginamos entender. Por estes dias, não me sai da cabeça aquele longo plano de um dos grandes filmes de Dvortsevoy : o grupo de velhos a empurrar um vagão de comboio, durante horas, no meio da neve. E no interior do vagão, uma curta fornada de pão. Insuficiente para alimentar todos os habitantes da aldeia.

Influenciadores do século XX

Influenciadores do século XX

Quartzo, feldspato e mica

O mais curioso nos edifícios «recuperados» do Porto é o granito liberto da poeira e fumo acumulados ao longo de muitas décadas. Os grãos de mica reluzem como milhões de pequeníssimas partículas de ouro. Tudo brilha por toda a parte. Os tripeiros mais carrancudos semicerram os olhos, desviando-se da claridade que irradia das fachadas. Mas é apenas o velho granito limpo. Mais cedo ou mais tarde, a poeira voltará a assentar.

Oh, uma ocorrência literária!

Ando há mais de uma semana a tentar escrever sobre os “Cadernos de Bernfried Järvi” e não consigo. Enquanto estava a ler o livro, talvez por simpatia, assaltavam-me ideias fulgurantes, mas depois da última página, depois nada. Quase uma afasia; as ideias foram perdendo a força, as palavras revelam-se desajustadas. Passa tudo ao lado. Tento uma e outra vez. O nevoeiro alastra. Não é fácil fazer frente a este livro, não é um livro qualquer, não é um livro à toa. Pelo contrário, posso afirmá-lo sem rodeios: este livro é literário e tem um passado! E basta isso para o tornar marginal, suspeito e até perigoso ( é necessário acrescentar uma tarja vermelha , diria Pagreus). O problema são as provas, a linha cronológica existe mas vejo-a toda enrodilhada ( falta-me discernimento ) Mais do que uma crítica literária, os “Cadernos de Bernfried Järvi” pedem um bom detective, alguém que saiba controlar os adjectivos, um mapa de três dimensões, cervejas ou café, uma lupa, algumas nuvens e menos

Dois Dovlatov

É de mim ou no livro editado pela Antígona há dois Dovlatov? Há o Dovlatov de Leninegrado, de «O livro invisível», fresco, ágil, armado de uma ironia tenaz e de um humor formidável, na melhor tradição da literatura russa do século XX, de Daniil Harms a Zamiatine ou Zoshchenko, embora irremediavelmente preso no interior do cerco montado pela absurda e tirânica burocracia soviética. E há um segundo Dovlatov, o de Nova Iorque, de «O jornal invisível», livre para pensar e escrever, e que, no entanto, é um autor cansado, sem ideias vivas, sem mão, que se arrasta pelas páginas como um velho mestre cego. Até as anedotas do Dovlatov nova-iorquino não têm a mesma graça do de Leninegrado. Que conclusão tiramos disto? Só o diabo sabe, como disse Erik Bastin.

Odeio o ano novo

Por Antonio Gramsci Todas as manhãs, quando acordo mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim são dia de ano novo. É por isso que odeio isto do ano novo a prazo fixado que transforma a vida e o espírito humano numa empresa com a sua estável prestação de contas, o seu balanço final e a sua avaliação para a nova gerência. Faz-se com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Acaba-se por acreditar seriamente que entre um ano e outro haja uma quebra de continuidade e se inicie uma nova história, fazem-se promessas e arrependem-se das que ficaram por cumprir, etc., etc.. É o que geralmente acontece com as datas. Diz-se que a cronologia é o esqueleto da história. Mas também temos de admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais que todas as pessoas guardam no seu cérebro, datas essas que têm o efeito manipulador na história. Também elas são dia de ano novo. O ano novo da história romana, ou o da Idade Média, ou da época moderna.
Fechar os olhos e tentar ver os atributos abstractos das coisas no escuro, como um pintor a procurar as estruturas geométricas de uma montanha. Talvez assim seja possível ver, sentir que vemos, compreender que vemos.

Observações avulsas sobre a boavista #15

Aconteceu há algum tempo, na rua Tenente Valadim, em frente ao Sheraton, de manhã cedo. Uma mulher jovem, elegante, extremamente bem vestida, perguntou-me se lhe podia trocar uma moeda de cinquenta cêntimos — ela só precisava de vinte para o parquímetro. Abri o porta-moedas, não tinha moedas que chegassem, mas reconheci a saia da mulher, já a tinha visto na montra da Gant, custava umas centenas de euros — decidi oferecer-lhe vinte cêntimos. A mulher aceitou, sorriu e agradeceu-me muito. Desconfio que não percebeu que isto era uma parábola e cada uma de nós estava apenas a desempenhar um papel.