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Mensagens

Um ratinho na roda

Quando chego ao fim, começo a corrigir. À primeira revisão, segue-se a segunda. O que parecia certo, releva-se esquisito. Altero. Volto atrás. Troco a fidelidade por uma pequena traição. Parece que compreendo tudo. Leio em voz alta. Fico com remorsos. Já não percebo nada. Desempenho a tarefa do tradutor como um ratinho na roda.

Ah, que lindo trio nós formamos!

O JUIZ: (Irritado.) Vais-me responder ou não? Que mais roubaste? Onde? Quando? Como? Quanto? Porquê? Para quê? - Responde. (...) A LADRA: Peço perdão, mas já não me lembro. O CARRASCO: Arreio nela? O JUIZ: Ainda não. (Para A LADRA) Onde é que entraste? Diz-me, onde? Onde? Onde? Onde? Onde? Oonnn!... Oonnnn!... Oonnn!... A LADRA: (Aflita.) Já não sei, juro que já não sei. O CARRASCO: Arreio nela? Senhor Doutor Juiz, arreio nela? O JUIZ:  (Para O CARRASCO e aproximando-se dele.) Ah! Ah! O teu prazer depende de mim. Gostas de dar porrada, hem? Dou-te razão, Carrasco! Magistral monte de carne, ganda chicha que uma decisão minha acciona! (Finge olhar para si mesmo na pessoa do CARRASCO.) Espelho que me glorifica! Imagem que posso tocar, amo-te. Nunca teria a força nem a perícia suficientes para deixar riscas de fogo nas costas dela. Aliás, que poderia eu fazer de tanta força e perícia? (Toca nele.) Estás aí? Estás aí, meu braço enorme, demasiado pesado para mim, demasiado grosso, dem...

Prosa

Todos os poemas que podia ter escrito, que sufoquei dentro de mim por falta de talento ou por amor à prosa, vêm de repente reclamar o seu direito à existência, gritam a sua indignação e submergem-me. Qualquer laivo de poesia envenena a prosa e torna-a irrespirável. Houve um tempo em que não passava um só dia sem várias horas de música ou sem ler um poema. Agora, a prosa toma o lugar de tudo. Que diminuição, que decadência! Divindade da prosa. Uma prosa esquelética atravessada por um calafrio — nada me é tão aprazível. O máximo que a prosa pode alcançar é roçar o sublime; se se impregnar dele, torna-se ridícula, empolada, penosa. É incrível até onde remonta a menor expressão poética na prosa. A poesia é o lado perecível do estilo. Só dura, só permanece viva se for implícita, não evidente, involuntária, secreta e até mesmo imperceptível. Uma prosa que tem um tom mallarmeano é ilegível — para além de três frases. Estou a passar por um período em que nem a poesia nem o misticismo me dizem ...

Realidade e fingimento

Domingo de tarde. Leio o Manual de Leitura do TNSJ, dedicado a O Balcão , de Jean Genet. Na página 25, deparo-me com esta indicação de cena do próprio Genet: «Deverá encontrar-se um tom de dicção permanentemente equívoco, permanentemente falseado. Os sentimentos dos protagonistas, inspirados pela situação, são fingidos ou reais? (...) É preciso manter o equívoco até ao fim.» O sublinhado é meu. Na mesma frase, e a propósito de um momento de teatro, Genet não estabelece diferenças entre o que é real e o que é fingido. Pelo contrário, deseja que realidade e fingimento se confundam no palco. Em todos os palcos. O teatro, o lugar do fingimento por excelência, pode ser mais real do que a realidade. É exactamente essa a ideia de O Balcão .

Ratos do porão

No último discurso, o presidente da república aprofundou a (ridícula) metáfora do barco: dividiu-o em três classes e porão. (Se continuarmos a praticar a retórica, acho que vamos dar aqui .) Deve ser a isto que se referia a praga do chinês.

Caminhadas

Apenas uma pequena parte das caminhadas de Carl Seelig com Robert Walser é sobre literatura. Walser nem sempre está para aí virado e Seelig não o quer melindrar. Ainda bem. Assim, os temas dominantes deste livrinho são: geografia, meteorologia, comida.  Eles andavam de comboio mas principalmente a pé, para cima e para baixo, com sol e com chuva ( debaixo do guarda-chuva, Walser sente-se como em casa — um discípulo de Satie devia compor uma canção para esta frase) e ficavam esfomeados. Apesar da guerra, quase sempre conseguiam comer e beber bem: escalopes de vitela, rostï, merengues, queijos, vinhos. Walser fumava muito.  O livro é um documentário. Belo.

Carta da Sibéria

 

Definition for Ah

ah , inter. [OFr a or ah .] (webplay: pity). Exclamatory particle with the following nuances: A. Nostalgic; wishful; lamenting; entreating; appealing [sound accompanying a sigh.]  B. Irony; sarcasm; mockery; [similar to “aha” and “ah, but.”]  C. Surprise; wonder; [equivalent of “Oh!” and “O!”]  D. Endearing; admiring; adoring.  E. Sympathy.  Emily Dickinson Lexicon

O que o jovem Rossum inventou

DOMIN: (...) Que tipo de trabalhador é que pensa ser o melhor? HELENA: O melhor? Talvez aquele... aquele... que é honesto e dedicado. DOMIN: Não, na verdade, o mais barato. Aquele que tenha menos necessidades. O que o jovem Rossum inventou foi um trabalhador com o menor número possível de necessidades. Ele teve de simplificar. Descartou tudo o que não era usado directamente para o trabalho. Então, deitou fora o homem e fez o Robot. Karel Čapek, R.U.R. Tradução de Patrícia Paixão.

Tour de France, Tour de France

A forma como estou a praticar Cioran é muito revigorante; mais do que disciplina é todo um curso: depois de Dostoiévski,  Emily Dickinson, Bach, e não sei quantos dicionários de francês, eis que chega a vez de Swift. Vou começar pela releitura dos “ Preceitos para uso do pessoal doméstico e outros   textos ”.

Quatorze de novembro

Fui agora à rua fumar e passear o cão e estavam outras dezanove pessoas a fumar e passear o cão no mesmo metro quadrado. Tivemos de matar os cães para poupar espaço e exalar o fumo directamente nas bocas uns dos outros.  Rogério Casanova 

Auto-vigilância

A nova burocracia assume a forma não de uma função específica e delimitada, realizada por certos trabalhadores, mas invade todas as áreas de trabalho, cujo resultado é - conforme profetizado por Kafka -os trabalhadores tornarem-se nos seus próprios auditores, obrigados a avaliar o seu próprio desempenho. (...) A inspecção, quero eu dizer, corresponde precisamente à descrição que Foucault faz da natureza virtual da vigilância em Vigiar e Punir . É aí que Foucault observa de forma célebre que não é preciso que o local de vigilância esteja efectivamente ocupado. O efeito de não se saber se vamos ser observados ou não produz uma introjecção do dispositivo de vigilância. Agimos constantemente como se estivéssemos sempre prestes a ser observados. Mark Fisher, Realismo Capitalista - Não haverá alternativa?  Tradução de Vasco Gato.

Nome

Nas finanças, o funcionário dirige-se a mim usando um nome que não é o meu. Por lapso, mudou ligeiramente o apelido. Também acontece, por vezes, nas cartas e encomendas que recebo por correio. Já fui Amaro e Amora. Fico a pensar como será essa pessoa cujo nome é tão parecido com o meu, que tem a mesma morada, mas que só existe por engano na cabeça do funcionário. Será mesmo um engano?