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Mensagens

Muitos anos

Já escrevi e apaguei várias vezes este texto. Ao fim de muitos anos, vou mudar de trabalho. Vou finalmente dedicar-me ao ofício que sempre desejei. Quero escrever sobre o assunto e não consigo. Falta de talento, com certeza. Mas é mais do que isso. A ideia tornou-se real. O excesso de realidade paralisa.

Para o matadouro

1. O encontro de Thursday com Cochise em Fort Apache é brutal — não só pelo massacre consequente, mas principalmente pelas ressonâncias políticas que ainda hoje provoca. Tudo o que o chefe apache reclama ao tenente-coronel é justo e devido. Em oposição, o comportamento dos americanos é infame: Thursday não respeita o acordado, menospreza os conselhos de York e as reivindicações de Cochise e ataca (aliás, já tinha decidido isso na véspera). Como é fácil de prever, a desproporção dos americanos e a colocação táctica dos índios transforma o confronto numa carnificina. 2. O capitão Kirby York foi sempre contra esta estratégia ambiciosa e cega, mas no fim, perante os jornalistas, (depois de um brevíssimo estremecimento?) mente e glorifica o impiedoso tenente-coronel. Straub pergunta: Como pode a história oficial ser o tapete sob o qual escondemos as falhas de uma nação; e a democracia, o tecido com que os bárbaros se vestem de respeitabilidade? Essa última cena é terrivelmente amar...

Desfile de modelos militares (in paise of Aura Lea)

O que mais me agrada no livro de Paulino Viota sobre John Ford é a forma como ele concilia uma análise estrutural quase científica (método, hipóteses, verificações, etc.) com belíssimas intuições: sim, «podemos ver The Long Gray Line como um desfile de modelos militares ou como um desses livros ilustrados sobre a evolução dos uniformes». John Ford havia de gostar desta descrição simultaneamente directa e esquiva. P.S. O casaco de Marty ainda tem a etiqueta da loja.

Exame de admissão

A idade das possibilidades de Chantal Akerman em Super 8 . Ah, o prazer de pegar numa câmara e começar a filmar.

Cinema «experimental»

«Ford foi temerário e na velhice atreveu-se a ir mais longe do que nunca. Embora em termos de cinema «experimental», como diria Straub, se possa pensar em The Long Gray Line , que Straub menciona, ou em Two Rode Together ou Donovan’s Reef , julgo que o contraste tremendamente «monstruoso» de Cheyenne Autumn é a coisa mais radical que Ford fez. Aquilo que é mais sério, mais profundo, no filme é o grotesco. Depois da barbárie do texano a matar um índio pelo puro prazer de o fazer, pela curiosidade de saber o que se sente, a indiferença, a estupidez, dos habitantes de Dodge City (cidadãos de pleno direito, civis; Ford não teria sido tão cruel se fossem militares) é o comentário mais sombrio sobre as relações dos americanos com os índios que já vi no cinema. E o facto da cena ser uma palhaçada ainda torna os brancos mais idiotas e faz com que a sua monstruosidade seja muito mais dolorosa.»  Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford, de Paulino Viota (página 29). (É a primeira ve...

Três más notícias

25 de Junho. - Sou convidado para ir a casa do chefe do ocultismo científico, director de L'Iniciation . Ao chegarmos a Marollesen-Brie, o doutor e eu somos recebidos por três más notícias: uma doninha matou vários patos, uma criada adoeceu, a terceira já me não lembra. Strindberg, Inferno . Tradução de Aníbal Fernandes.

«Vamos arrancar-vos o coração»

Sempre que volto a ver um filme de John Ford, fico presa. Já conheço as personagens, os actores, as paisagens — é tudo familiar e essa proximidade leva-me a perceber melhor as razões (ou contradições?) de cada um e a  profundidade de campo da história . No caso d’ O homem que matou Liberty Valance (1962) , há um traço que divide os territórios de Tom Doniphon e de Ransom Stoddard. Ambos desejam mais ou menos o mesmo, mas um acredita que a justiça é uma coisa pessoal que passa pela defesa armada rápida (ou ataque, se for caso disso) e o outro acredita na protecção da lei (e dos livros) para todos. Um representa o passado; e o outro, o futuro de uma república democrática fundada sobre uma Constituição cujo preâmbulo abre com as palavras «nós, o povo». Ora nem mais, o povo. O filme começa com Doniphon dentro de um caixão simples e barato, sem pistolas nem botas, um tipo que não tem onde cair morto está para ali à espera de voltar à terra a que sempre pertenceu. Stoddard, pelo contrári...

Um pouco

O amor de Ethan e Martha é dos mais velados da história do cinema. Não sabemos o que aconteceu entre eles. Há alguns indícios: gestos, olhares, silêncios — mas não passam de subentendidos. Apenas podemos tentar adivinhar. A pista mais evidente é também a mais difícil de reconhecer porque não incide sobre nenhum dos dois; trata-se da recriação do que se passou há muitos anos, só que agora as coisas entre Martin Pawley e Laurie Jorgensen são ligeiramente diferentes. Ford mudou um pouco a expressão , como se faz na música.
(Talvez o laço mais forte entre os filmes de Pedro Costa e John Ford seja uma tremenda habilidade dos actores para falarem com os mortos.)

Think back, Pilgrim!

Vou finalmente acabar de o texto sobre O Homem que Matou Liberty Valance . Já tinha definido a linha condutora, mas estava parado há quase um ano. Sabia que era um texto composto por apenas três segmentos — mas não sabia bem porquê. Ou como? Só hoje de manhã, ao sair do metro e caminhar à chuva e molhar-me toda é que compreendi a minha ideia. É sombria.

Sonho com um congresso de neurologistas e críticos de cinema

Paulino Viota : O mais interessante para o estudo das artes (por exemplo, do cinema; digamos do cinema) seria algo de que não sei nada mas gostaria de saber: o estudo do cérebro; ou seja, a neurociência. Sonho com um congresso de neurologistas e críticos de cinema. Não, críticos não: analistas de cinema como eu, Tag Gallagher ou Raymond Bellour: pessoas que se deram ao trabalho de analisar filmes; que não são assim tantos, porque muitos críticos de cinema geniais, como foi Serge Daney, continuam a trabalhar a partir do seu gosto subjectivo.

Não!

Quando telefonamos à cantora de ópera Agnes Baltsa, porque num lugar qualquer do mundo alguém precisa de uma Carmen, ela mete-se num avião com os seus três figurinos, um para o primeiro acto, outro para o segundo acto e outro para o terceiro acto. E lá está ela com os seus três figurinos, num qualquer teatro de ópera, lá está ela com os seus três figurinos, sempre os mesmos. E eu diria: Mas isso é um Não! Só que ninguém ouve este «Não»! Duas mil pessoas para ali sentadas e a pensar que estão diante de uma diva extravagante que não bate bem e ninguém ouve este Não. Vêem a ausência absoluta de criatividade de Agnes Baltsa mas não vêem nisso um Não! René Pollesch,  O amor é mais frio que o capital . Tradução de José Maria Vieira Mendes.

A Barcelona

Retrospectiva i cartablanca a Paulino Viota:   Las ferias,  José Luis,   Tiempo de busca, Fin de un invierno,  Duración, Contactos,  Con uñas y dientes,  Cuerpo a cuerpo,  (P. Viota) Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter  (Danièlle Huillet i Jean-Marie Straub) Staroie i novoe (S. Eisenstein) Hatari! (Howard Hawks) The Sun Shines Bright (John Ford) Roma (F. Fellini) Bande à part (Jean-Luc Godard)

Limpar o campo

A minha mãe diz-me, por telefone, que as figueiras também arderam. É muito triste, mas é a vida, diz ela. Já morreram pessoas e outras ficaram sem casa, e isso, sim, é uma tragédia. Se tivermos força, acrescenta, vamos limpar o campo e plantar outras. Serão precisos vários anos até aparecerem novos figos. Ainda seremos nós a colhê-los? E serão tão doces como estes que o fogo devorou?

Música concreta

Às vezes tenho vontade de mexer no som de certos filmes, tirar-lhes a música que me parece a mais, substituí-la por sons. Em  Paris s’en va , em vez Piazolla (que me irrita), preferia: o movimento dos carros, uma campainha, passos, alguém a correr, ruídos de obras, umas frases que ficam no ar, talvez o rugido de um leão.

O pensamento mágico do capitalismo

O abismo cognitivo foi instalado quando todos nós vimos que as coisas podem ser reproduzidas em série e que a caixinha do leite ou qualquer outro produto que está na gôndola do supermercado, aquela coisa apareceu ali (…) e não importa mais o processo. Então a caixinha de leite e toda essa facilidade da gôndola seriam coisas que aparecem na sua cara e você pode simplesmente consumir. É isso que o Davi Kopenawa Yanomami, nessa sua prospecção do mundo do branco que ele olha de dentro da floresta, dirá que é o ‘mundo da mercadoria’. Vamos imaginar que esse mundo da mercadoria é mágico. Ele faz aparecer água na torneira, leite na caixinha e coisas na gôndola. Quer dizer, é um pensamento mágico o desse mundo subalterno à ordem capitalista. É tão mágico quanto o pensamento de um xamã. O pensamento mágico de um escravo do capitalismo é tão fantástico que ele acredita que o capitalismo pode acabar com o mundo e criar outro. Eu me pergunto: por que um cara vai financiar o envio de um foguete par...

Não cancelar

Desde que me apercebi do botão que permite anular o envio de um email, sinto sempre um pequeno arrepio quando os deixo seguir o seu caminho — um pouco pela tentação de voltar atrás, de apagar os disparates, mas principalmente pelo desejo de não o fazer. A possibilidade de cancelar, torna qualquer envio trivial num acto um bocado perverso.