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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2017

Debaixo da pele

O grande motor da tragédia é a morte. Ao contrário dos deuses, nós morremos e somos presa fácil de todos os seus caprichos. Mas se a morte é a nossa grande tragédia, é também o nosso ponto de fuga. O fim de tudo. O que acontece em Tatuagem , de Dea Loher, é que a morte ganha vida, reproduz-se e avança como um cancro. A tatuagem está inscrita pelo lado de dentro, no avesso da pele, não se pode arrancar senão arrancando o próprio coração. Não existe fim para a tragédia em Tatuagem . Primeiros indícios Uma família de quatro pessoas vive encerrada no interior de quatro paredes, um segredo quadrado, “a incurável doença da gaiola”. O pai Wolf, a mãe Juli, e as duas filhas adolescentes, Anita e Lulu. Os indícios começam aqui. O pai é o lobo (Wolf); a mãe é uma espécie de cão fiel do pai (Juli dos Cães), incapaz de ladrar e de mostrar os dentes; Anita é a filha mais velha, vítima silenciosa dos abusos sexuais do pai; e Lulu, a filha mais nova e rebelde . Segundos indícios Wolf é p...

Leia Cícero!

Arnaud conhecia bem o fruto que se pode tirar da leitura atenta de um autor. Como lhe perguntassem o que era preciso fazer para se obter um bom estilo, respondeu: - Leia Cícero. - Mas - tornou a pessoa que o consultara -, eu queria aprender a escrever bem em francês. - Nesse caso - tornou Arnaud -, leia Cícero! Antoine Albalat, A formação do estilo pela assimilação dos autores . Tradução de Cândido de Figueiredo. "A formação do estilo pela assimilação dos autores." O título é todo um programa.

Kiarostami filma Dante

Fomos rever, após tantos anos, O Sabor da Cereja . Um aspecto que agora me parece estranhamente óbvio é a relação com A Divina Comédia , de Dante, e em particular com a primeira parte,  Inferno . É impossível não comparar a topografia de O Sabor da Cereja com os negros vórtices dos nove círculos infernais. Os longos planos de Badii percorrendo os estradões sinuosos, secos e empoeirados dos subúrbios miseráveis de Teerão, lembram a viagem de Dante pelo Inferno. Os mesmos personagens perdidos e condenados a uma vida de eterno martírio, as máquinas a revolverem constantemente a terra como demónios cegos e obstinados, os caminhos intermináveis abertos sobre abismos, exactamente como no cone invertido do inferno dantesco. O próprio projecto de suicídio de Badii, que inclui um buraco aberto junto à base de uma cerejeira e a ajuda de alguém que o cubra com “vinte pás de terra”, remete para Dante. No primeiro grande diálogo do filme, Badii tenta convencer um jovem recruta a ajudá-lo,...

Dez cavaleiros retorcendo os bigodes

"Ah, então reconheces que a gente se diverte bem na taberna de Havrda! Se conhecesses a Vlasta! Ela, antes de ser puta, era cabeleireira no teatro, e lá já era famosa, ocupava-se de perucas, uma vez, segundo me contou, esqueceram-se da caixa de maquilhagens e barbas durante uma tournée em que representavam uma comédia espanhola, chamada Cid ou Kid... e sabes como é que a Vlasta arranjou as barbas e bigodes?" O pai preferiu não responder (...). "Então a Vlasticka levantou as saias, depois pegou na tesoura e zic, zic, cortou os pelinhos, ficou toda rapada, e como ainda faltava para os bigodes, ainda cortou metade dos pêlos da ajudante de cabeleireira... colaram-nos sobre as faixas de esparadrapo, ou seja, emplastro, e dez cavaleiros andavam, pelo teatro, retorcendo os bigodes, a Vlasticka recebeu depois uma menção de felicitações do director...". Bohumil Hrabal, A terra onde o tempo parou. Tradução de Ludmila Dismánova e Mário Gomes.

Campo e Contracampo

O auditório onde fomos apresentar  Medeia , de Jean Anouilh , fica no interior de um shopping no Cacém . Um daqueles centros comerciais encapsulados no tempo desde os anos 80. Na parte central, há uma espécie de "selva" com palmeiras e plantas exóticas, atravessado por um regato artificial onde vivem peixes de aquário com tamanhos monstruosos e dezenas de cágados e tartarugas. Foi aí que Miguel Gomes filmou alguns planos de Tabu : a sequência que marca a transição para a segunda parte do filme, “Paraíso”, a partir da qual se narra a história dos amantes Aurora e Gian-Luca Ventura. Ali parado, na esplanada onde se filmou a conversa entre o velho Gian-Luca, Pilar e Santa, percebe-se melhor a intenção de Miguel Gomes: tudo o que resta daquela grande história de amor, passada em tempos coloniais portugueses, é uma "selva" de plástico, dentro de um shopping no Cacém.

Um processo simples

- Papai saiu; e o Armando está lá embaixo escrevendo. De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o clássico um grande artigo sobre "Ferimentos por arma de fogo". O seu último truque intelectual era este do clássico. (...) O processo era simples: escrevia de modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar , ao redor por derredor , isto por esto , quão grande ou tão grande por quamanho , sarapintava tudo de ao invés , empós , e assim obtinha o seu estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral. Gostava muito da expressão - às rebatinhas ; usava-a a todo o momento e, quando a punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalinos e às suas ideias uma suficiência transcendente. De noite, lia o Padre Vieira, mas logo às primeiras linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se fís...

Uma estrada demasiado longa

AMA lança-se aos pés de Medeia Medeia, eu estou velha, eu não quero morrer! Segui-te, deixei tudo por ti. Mas a terra está ainda cheia de coisas boas (...). Esta versão de Medeia , da companhia Público Reservado, é pontuada por várias cortinas, reais ou metafóricas, que abrem e fecham cenas. Como um dedo invisível que virasse uma página e criasse um breve parêntese na história. Num desses momentos, a Ama é a única personagem em palco. Olha em frente, movendo um pau como se fosse um remo. Gestos lentos no início, mais velozes depois. Foi a Ama que criou Medeia, foi ela que a alimentou com o seu próprio leite, que a acompanhou na fuga com Jasão e os argonautas desde a Cólquida, testemunha silenciosa de todos os seus crimes. “Uma estrada demasiado longa.” Mas desta vez a Ama recusa acompanhá-la: não quer morrer. E à medida que Medeia atravessa o rio Aqueronte, aproximando-se do mundo dos mortos, a Ama rema em sentido contrário, esforçando-se por alcançar o mundo dos vivos. ...

Uma despedida

A peça abre com Creonte a preparar-se para mais um dia, aquele em que vai morrer. Os gestos são lentos, de velho. Creonte parece já não reconhecer a sua pele, os músculos, os dentes, os nervos. Já não é o guerreiro ágil e forte do passado. A sua história pesa toneladas sobre o corpo e a consciência. Há um momento, no entanto, em que a personagem ganha uma frescura e um brilho raros, e o tom muda. É um momento curto, mas que contém muitas das ideias essenciais desta Medeia , da companhia Público Reservado. Creonte abre uma janela (o objecto não existe no cenário; o espectador imagina-o), o braço direito erguido, os dedos envolvendo a fechadura. O gesto é o mesmo de uma mão que erguesse um punhal. Um raio de luz incide-lhe directamente no peito. Creonte reage com um movimento ambíguo, que tanto pode ser de dor como de prazer. A mão esquerda pousa no lugar onde a luz bate, como que protegendo o coração. Ele ainda não sabe que é o último raio de sol da sua vida, mas suspeita. Medeia é...

Pecado original

JASÃO volta-se para os homens.   Que um de vós faça guarda à volta do fogo até que não haja mais do que cinzas, até que os últimos ossos de Medeia estejam queimados. Os outros, venham. Regressemos ao palácio. É preciso viver, agora, assegurar a ordem, dar leis a Corinto e reconstruir sem ilusões um mundo à nossa medida para esperarmos morrer nele. Eis uma das marcas essenciais do texto de Jean Anouilh : a ironia. Ou melhor, um profundo pessimismo existencial, que só pode traduzir-se numa longa e permanente ironia. Que mundo podemos reconstruir a partir da “nossa medida”? Se a medida do mundo é a de Jasão - que não é mais nem menos humano que as restantes personagens, incluindo Medeia, obviamente - não será um mundo condenado desde a primeira hora? Acontece que é o único que existe. Não temos outro. E o que Anouilh diz, parece-me, é que estamos condenados a viver nele sem possibilidade de salvação, manchados pelo pecado original da nossa imperfeita condição. Um mundo onde in...

Fúria

A versão de Medeia , de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado, inclui a intervenção ao vivo de uma banda rock. É uma originalidade que não está no texto de Anouilh, mas que, na leitura de Eduarda Neves , funciona como uma tentativa de introduzir na peça uma espécie de coro grego. É uma hipótese curiosa. Aceitando essa hipótese, a banda rock é um coro “negativo”, quer dizer, não ajuda a “esclarecer” a história; pelo contrário, acentua e aprofunda o drama e a solidão de cada personagem. As intervenções do coro excluem e afastam ainda mais os personagens do mundo: “não há razão, não há luz, não há descanso.” Medeia , de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado.  Teatro do Campo Alegre, 4 a 7 de Outubro.

Já não gosto de sangue

MEDEIA coloca-se diante de Creonte   Creonte, tu estás velho. És rei há muito tempo. Já viste homens e escravos que cheguem. Já fizeste cozinhados ignóbeis. Olha-me bem nos olhos e examina-me. Eu sou Medeia. (...) Eu sou da tua raça. Da raça daqueles que julgam e que decidem sem voltar atrás e sem remorsos. Não estás a agir como rei, Creonte. Se queres dar a Jasão a tua filha, mata-me imediatamente com a velha e as crianças que dormem ali e com o cavalo. (...)  CREONTE Por que é que tu queres morrer?  MEDEIA  Por que é que tu queres que eu viva, agora? Nem tu, nem eu, nem Jasão têm interesse em que eu ainda esteja viva dentro de uma hora, sabe-lo bem.  CREONTE faz um gesto, diz de repente em surdina Já não gosto de sangue. (...) Vês, estou a ficar velho. Uma noite é demasiado para ti. É o tempo de dez dos teus crimes. Eu deveria recusar o teu pedido… Mas também eu matei muito, Medeia. E nas aldeias conquistadas onde entrava à cabeça dos meus so...
UMA PALAVRA Longe de mim querer corromper a juventude, É um trabalho que sobreleva as Minhas capacidades. Antes cicuta. Mas tenho que explicar o sentido Da palavra "desesperança". É uma esperança negativa. A gente senta-se num cais E deixa o sol trabalhar. O sol minúsculo, isto é, o calor na pele. Chamo a isto a experiência mínima. Feito isto: Venha de lá então Essa catástrofe. Manuel Resende, O mundo clamoroso, ainda.