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Pequenas notas sobre um grande amigo

Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo.

Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a «Poesia Reunida», em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século.

Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende deixou de ser um segredo guardado por meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta.

O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever.

Os três livros que publicou, antes da «Poesia Reunida», de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A «Poesia Reunida» também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele quem a organizou.

Nada disto tem a ver com alguma espécie de arrogância ou falsa modéstia. É exactamente o contrário. Trata-se de pura timidez. Da mais pura noção de que nada disto é assim tão importante. De que a literatura é muito maior do que qualquer escritor. Ninguém que eu conheça estudou e amou mais a literatura. Conhecia-a a fundo, sílaba após sílaba, verso após verso, capítulo após capítulo.

Traduziu milhares de páginas. Dos grandes, mas também dos outros, dos chamados «menores». Anos e anos de trabalho deram-lhe a sabedoria de pôr as coisas em perspectiva. A literatura é feita de tudo isto: grandeza e miséria, humildade e presunção, silêncio e fogo-de-artifício.

Talvez por isso se tenha transformado num misto de sábio e «palhaço triste», no sentido chaplinesco do termo. Não sei explicar melhor. Havia nele uma qualquer tristeza profunda, que embrulhava em humor e auto-ironia. Porque todos somos feitos da mesma matéria: poeira da estrada e pó dos livros. Porque a história acaba da mesma maneira para todos. Não está certo nem errado, é simplesmente assim.

Talvez isto explique também a dose de pessimismo com que olhava para o mundo, apesar do seu coração ter batido sempre à esquerda. Desde a juventude, no Porto, até ao último dia da sua vida. Não há camarada dos tempos da luta política que não o adore. Não conheci companheiro ou adversário que não gostasse do Manuel Resende.

O Resende concedeu-me a sua amizade e eu nunca tive nada de especial para lhe dar em troca. Tudo o que podia e posso fazer é ler os seus livros. Uma e outra vez. E tentar aprender com ele os pequenos truques para enganar a morte até onde for possível.

29 de Janeiro de 2020.

Comentários

alexandra g. disse…
Mas ele, o Resende, Manel, há mais: o humor, tantas vezes desconcertante, a ironia, até essa, fora das regras, aquelas 'saídas' ímpares. Passou tanto tempo, mas nunca esqueci uma das pessoas mais raras que passaram pela minha frente (uma única vez, diante do "rio D'ouro, cor de prata") e que, durante, anos, foi um amigo diferente, telefone e email.

Raro, mui raro pessoo.

Ofereceu-me uma navalha e roubei-lhe um isqueiro com o desenho de uma oriental. Recordo algo sobre falarmos de lápis de cor e as gaivotas gordas, em redor., naquele dia em que nos vimos, honestos como deve acontecer, roubando, oferecendo, comendo algo diante de um rio enferrujado e veloz, uma coisa assim. Não ofereci nada além da minha presença na sua cidade natal, mas penso que ficou bem assim, para quem não aprecia, como eu, um "that's all folks!"