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A mostrar mensagens de maio, 2024

Fogo lento

A admirável poetisa norte-americana Adrienne Rich salientou numa conferência sobre poesia que, «este ano, um relatório da Agência de Estatísticas da Just indica que um em cada 136 habitantes dos Estados Unidos se encontra atrás das grades —muitos em prisões, inculpados». Nessa mesma conferência, citou o poeta grego Yannis Ritsos: Lá fora, a última andorinha demorou-se até mais tarde, suspensa no ar como uma fita preta na manga do Outono, e nada mais ficou. Só as casas queimadas, ardendo ainda em fogo lento. Entretanto , de John Berger. Tradução de Júlio Henriques. Antígona. Outubro 2018.

Organizar o pessimismo

Na própria época - de 1933 a 1940 - em que Walter Benjamin evocava essa possibilidade de «organizar o pessimismo» mediante o recurso a certas imagens ou configurações de pensamento alternativas, a vida quotidiana certamente não o poupava a preocupações. Será que conseguimos imaginar o que era a vida desse judeu alemão «sem recursos», em fuga permanente ante o cerco que se fechava à sua volta? A impressão de Agamben sobre a destruição da experiência da nossa vida quotiana, alegadamente mais «insuportável» do que «em momento algum do passado», deverá, pois, ser ponderada a partir deste contraste. Um contraste ainda mais evidente na medida em que Benjamin soube «organizar o seu pessimismo» com a graça dos pirilampos, procurando, por exemplo, entre o teatro épico de Bertolt Brecht e a deriva urbana dos poetas surrealistas, entre a Biblioteca Nacional e a Passagem dos Panoramas, esse «espaço de imagens» capaz de contradizer a polícia - as terríveis coações - da sua vida....

E continua

Na página 47:  «Natalie procurava o seu caminho nessa linha de pensamento: arrancar a música da dependência da máquina — mas por máquina ela também entendia a grande orquestra sinfónica e a produção de grandiosas óperas. Mas não pretendia o retorno ao «simplismo» — o cantor popular com banjo e pretensa voz de Kentucky; afirmava que a complexidade é essencial na grande arte, mas que essa complexidade deveria estar na música e não nos meios de a produzir. Disse-lhe que isso me lembrava Einstein, que fez tudo com um lápis e algumas folhas de papel e a sua cabeça, em vez de usar um ciclotrão de cinquenta milhões de dólares; os ciclotrões são muito rigorosos, mas, basicamente, Einstein era ainda mais rigoroso e muito mais barato. Ela gostou da ideia.»

Aproximar as coisas que nunca foram aproximadas

A maior parte das coisas interessantes que leio sobre cinema não foram escritas intencionalmente sobre cinema. Na página 26 de   Tão Longe de Sítio Nenhum , de Ursula K. Le Guin, apanhei um parágrafo que se aplica aos meus filmes preferidos e, mais adiante, uma óptima descrição do trabalho de Godard: De facto, pode dizer-se que a música é um outro modo de pensar, ou talvez pensar seja uma outra forma de música .

Selfie XIX

Às vezes tenho a ilusão tão nítida que sou iraniana, japonesa, turca, romena, argentina, russa, paquistanesa, ucraniana, angolana, finlandesa, coreana, brasileira, nepalesa,…

Tremor

Sala de espera do Centro de Saúde. De repente, a terra treme. Todo o edifício treme. As pessoas olham aterradas umas para as outras. Boca escancarada, olhos esbugalhados, como se tivessem sido surpreendidas por um sismo fatal, longe de casa, longe das pessoas que amam. Depois, o abalo passa. Alguém comenta que são as obras do metro. A máquina avançou mais uns centímetros nas profundezas da terra. Todos se recompõem e agem como se nada tivesse acontecido. Olham de novo para a televisão, para o telemóvel, para o risco na parede branca. Volta a dor na cabeça, a garganta inflamada, a ponta de febre.

Real punk almost in reverse

Se fizesse um filme de ficção (autobiográfico, como convém a quem não sabe fazer filmes? ou uma historiazinha marada de Walser?). Bom, se fizesse um filme de ficção, usava as  The Shaggs  como música diegética («um filme a sério só tem música diegética»). A música seria como a película negra do Chris Marker: uma imagem de alegria sem explicação. Podíamos ver o filme de olhos fechados. Podíamos adormecer.

No século XVI, uma garce era uma rapariga

Helena Tecedeiro: Um exemplo que a Camille dá também é como ao longo dos tempos garce , que eram simplesmente o feminino de garçon  passou a ser pejorativo. Nunca tinha pensado nisso.  Camille Laurens: Julgo que a maioria das pessoas não sabe isso. Porque no século XVI, uma garce  era uma rapariga. E como é que evoluiu? Garçon  nunca foi um insulto, mas garce  tornou-se um insulto, porque o feminino desvaloriza imediatamente. E há toda uma lista de palavras que, no masculino ou no feminino não têm de todo o mesmo significado. Por exemplo coureur  é alguém que corre, coureuse  é uma mulher fácil, que engata homens. Um maître  é um mestre, uma maîtresse  é uma amante. [ Alors, notre objectif dans la langue française est d'être une garce une coureuse une maîtresse. Il faut être trois pour être une. ]

Metáforas vegetais de carácter claramente sexual

«Leyla Perrone-Moisés, em um estudo intitulado Balzac e as flores da escrivaninha (...) demonstra que uma descrição nem sempre é uma temática vazia; ao contrário, (...) as «páginas descritivas não representam uma parada da narração; elas contam coisas, as coisas que são censuradas nas páginas narrativas». Por isso as descrições balzaquianas são entendidas como metáforas – vegetais – de caráter claramente sexual. Os desejos sexuais do jovem Felix de Vandenesse pela Madame de Mortsauf [em O Lírio do Vale ] são metaforizados nos buquês de flores que ele oferece a ela.» Marisa Martins Gama-Khalil, Lar Amargo Lar.

94 personagens a desinquietar Alice

Lista de personagens que espreitam ou entram em cena em Eu sou uma rapariga sem história , de Alice Zeniter:  Ursula Le Guin, Elizabeth Fisher, Aristóteles, Péricles, Marguerite, Friedrich, Louis-Ferdinand, Séléné, Antinoos, Briséis, Alison Bechdel, Liz Wallace, Estrunfina, Katha Pollitt, Peyo, Castafiore, Tintin, Ulisses, Penélope, Shrek, Eddie Murphy, Med Hondo, Joyce, Robbe-Grillet, Gombrowicz, Musil, François Hollande, Emmanuel Macron, Umberto Eco, Anna Karénina, Madame Bovary, Princesa de Clèves, Enjolras, Marius, Cosette, Jean Valjean, Victor Hugo, Watson, Sherlock Holmes, Frodo, Peter Jackson, Artagnan, Pipi das Meias Altas, Harry Potter, Dom Quixote, Pirandello, Cortázar, Batman, Super-Homem, Alien, Predador, Francisco I, Ferdinand de Saussure, Roland Barthes, Maurice Scève, Clément Marot, Donald Trump, Baudelaire, André Breton, Esmeralda, Honoré de Balzac, Robin dos Bosques, Lev Tolstoi, Hitler, Super-Homem, Clark Kent , Papa, Dalai Lama, Jesus Cristo, Frédéric Lordon, Es...

Humanos

Nós vimos aquele imenso clarão azul no céu. Estávamos a chegar a casa, no sábado à noite, vindos da Baixa. E, de repente, aquela coisa. Aquela coisa a acontecer. Aquele espantoso clarão azul por cima das nuvens. Só na manhã seguinte, soubemos pelo jornal que se tratara de um meteoro. A ciência deu uma explicação, mas durante uma noite fomos verdadeiramente humanos: não tínhamos uma solução para o mistério.

Um passeio na floresta

[Uma das razões para gostar tanto de Eu sou uma rapariga sem história , é o seu carácter multidirecional, quer dizer, é um livro inteligente mas também interventivo (muito) e brincalhão (muitíssimo) que não se deixa agarrar facilmente. Por exemplo, queremos guardá-lo na secção de ensaios de teoria literária onde, tirando a aranha que faz a sua teia, não se passa quase nada, mas volvidas umas páginas, já ele se pirou e temos de correr para o agarrar e já estão —  Alice Zeniter e as numerosas personagens que a acompanham nesta excursão — no palco ou na floresta. Et la voilà, la forêt :] Quando avanço entre os arbustos carregados de bagas, os troncos brilhantes de chuva, volto a pensar nas narrativas de colheita e na ficção-cesta de que Ursula Le Guin falava. Quase tenho a sensação de poder escutar os seus passos atrás dos meus nas pequenas veredas que descem em direcção ao mar. Faz-me bem que ela ali esteja. Porque já não posso com narrativas de caçadores, narrativas de homens notáve...

Uma imagem de possibilidade

Os miúdos que ocuparam o jardim da Faculdade de Ciências do Porto, montaram as tendas junto ao sobreiro e à faia-pendula . Ou deram conta que as diferenças e a proximidade das duas árvores têm a ver com a sua luta ou foi um belo golpe do acaso.

Raiva fria

5. Portanto, saímos à rua, nós, que podemos sair à rua sem sermos mortos ou espancados. E no fim do dia, quando chegar a hora de voltarmos para casa, nós, que temos casas para onde voltar: vamos poder dizer (a nós mesmos) que fizemos o quê? Talvez seja bom pegar (outra vez) no livro que Geoffroy de Lagasnerie escreveu em 2020 e que a BCF editou em Portugal logo no ano seguinte. Ele chama-lhe um ensaio de estratégia política , que é como quem diz uma raiva fria ou um fogo na mira dos olhos: um plano de como havemos de sair da nossa impotência política. Para ele, a esquerda joga para perder por pouco. A questão não é se estamos a fazer o suficiente na nossa luta: mas, sim, se estamos, de facto, a lutar. «Devemos perguntar-nos se aquilo a que chamamos os nossos “modos de acção”» (leia-se: o dicionário dos nossos gestos políticos) «não (...) são, na verdade, maneiras de fracassar. No exacto momento em que agimos, perdemos. Quando queremos agir, dizemos: vamos organizar uma concentração, pu...

Uma vida boa (tão longe)

A FICÇÃO COMO CESTA: UMA TEORIA e outros textos, de Ursula K. Le Guin. Tradução de Sofia Gonçalves. Dois Dias edições.

Labirinto da liberdade

Leio no jornal que um grupo de quatro mulheres dirigiu insultos xenófobos aos organizadores e participantes de uma exposição sobre a Ucrânia, intitulada Labirinto da Liberdade , junto à Estação de Metro da Trindade, no Porto. As mulheres gritaram , entre outras infâmias, «Não queremos cá os imigrantes», «Estão na minha terra» e «Faço o que quero». Isto aconteceu ontem. Dois dias antes, um outro grupo de extrema-direita expulsou da Casa do Tempo, em Cabeceiras de Basto, dezenas de pessoas que participavam numa sessão pública de esclarecimento sobre igualdade de género e orientação sexual. Segundo o jornal , um dos insultos que os militantes de extrema-direita dirigiram às mulheres foi «ide para casa fazer sopa».

Influenciadores do século XX

Introducing Myself

A mulher e o seu saco

«Uma das características das mulheres é andarem sempre com sacos. Cada saco corresponde a um nível de acção específico. Na bolsa, trazem os documentos, o telemóvel quando não está nas mãos, lenços de papel, um livro, chocolates, ganchos, elásticos, uma chupeta, e mais alguns objectos estranhos. A mochila é para transportar o computador portátil. Um saco grande desportivo para as idas aos ginásios. A bolsa térmica com o almoço. Sacos com coisas que vão comprando de manhã e à hora do almoço para levar para casa ou para as casas das senhoras doutoras onde trabalham.» Há um ano, quando escrevi estas notas, achava que os sacos mostravam a posição social (quanto maiores, quantos mais sacos, menos dinheiro?) — um pouco à semelhança da roupa.  Depois de ler o texto de Ursula K. Le Guin , percebi que os sacos tem outro poder: contam histórias. Histórias que ninguém escreve.

Resistência

Certa vez, quando lhe perguntaram se, enquanto artista de esquerda, tinha nostalgia dos tempos brechtianos ou da literatura «engagée» à francesa, Pasolini respondeu nos seguintes termos: «De modo nenhum. Tenho simplesmente a nostalgia da gente pobre e verdadeira, que lutava para derrubar o patrão, mas sem querer com isso tomar o seu lugar.» Um modo anarquista, dir-se-ia, de separar a resistência política de uma simples organização de partido. Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos Pirilampos . Tradução Rui Pires Cabral.
À laia de posfácio, Regina Guimarães encerra a antologia com um poema de sua lavra, uma homenagem em que coloca Koltz a par de Michaux ou Bernhard entre esses nomes cintilantes que dariam sentido a uma ideia de Europa se esta “teimasse em existir”. Poetas teimosamente indigestos, que desde logo se esforçam por abrir “caminho aos leitores mais improváveis”,

Lama

A lama que empurra Rosetta para o fundo do rio é a mesma que puxa o homem sem a mão e o companheiro para o fundo do pântano, em A Caça . É a lama da história que impede os espoliados de permanecerem à tona. Parece não existirem nem mãe nem mão que os salve.

so much depends upon

Ao preparar-me para a conversa com a Ana Miriam Rebelo , percebi que o sofá à porta da casa de Bete em  Juventude em Marcha é um signo com a mesma potência do carrinho de mão vermelho de William Carlos Williams. (Os dois  banhados na luz da sua ausência de explicação .)

Os Limites da Europa

«Os filmes selecionados exploram histórias reais de resistência, abordando questões como a educação, o trabalho, as questões de género, a diversidade étnica e cultural, a integração, a exclusão, a violência e o racismo. Os filmes desafiam a sabedoria convencional sobre o que realmente ameaça a nossa evolução como espécie. Examinam a relação entre compaixão e humanismo, a importância da cultura e contrastam-nos com os interesses do liberalismo económico, do populismo e do colonialismo sistémico.»

Campo 24 de Agosto

( Minoria )  Quinze ou vinte pessoas, quase só homens, a preparar a manifestação junto ao edifício da junta de freguesia do Bonfim.* Dois cartazes com frases estúpidas.  Seis polícias espalhados aos pares a conversar descontraidamente.   ( Maioria )  Na frutaria, uma fila enorme e pacífica de portugueses e imigrantes.  Imensas tangerinas doces. * Segundo o JN, a manifestação reuniu cerca de 30 pessoas .
Painéis do Porto (1963), de António Reis.

Observações avulsas sobre o bonfim #67

Ao chegar ao Batalha por volta das cinco e meia, passaram por mim três homens a falar alto. Um deles disse: então andavam para aí com martelos e ferros e nós havíamos de nos ficar? Foi muito bem feito. Que vão para a terra deles. Parei e fiquei a olhar. Eles saíram de campo e então vi, em frente à Igreja de Santo Ildefonso, os polícias do Corpo de Intervenção destacados para o cortejo da Queima das Fitas.

Observações avulsas sobre o bonfim #66

A mulher que costuma vender 5 pares de meias por 5 euros junto à paragem de autocarros do Campo de Agosto aos sábados de manhã percebe muito de comércio. Hoje, por causa da morrinha, vende guarda-chuvas. Apregoa «guarda-chuvas para a chu-va» partindo ao meio a palavra chuva e carregando no som grave. Está vestida de preto, mas por cima da roupa tem um avental cor-de-rosa com rendinhas. O avental cumpre dois papéis: confere-lhe imediatamente visibilidade e estatuto de vendedora e é uma caixa registadora portátil — serve para guardar o dinheiro no bolso (grande e ao centro) com fecho-éclair.

1.º Maio

Se as denominações não estiverem correctas, se não corresponderem à realidade, a linguagem não tem objecto. Quando a linguagem não tem objecto, a acção torna-se impossível, e, por conseguinte, as empresas humanas desintegram-se: é impossível e vão geri-las. É por isso que a primeira de todas as tarefas de um verdadeiro homem de Estado consiste em rectificar as denominações. Quando Confúcio propõe rectificar as denominações como primeira tarefa para governar, está certo e fora do seu tempo — na eternidade, dir-se-ia  ( la mer allée avec le soleil ). Nós continuamos à espera que as rectificações sejam feitas. É preciso lutar por uma revolução na linguagem que não venha do mundo sinuoso e fraudulento das finanças nem de ideias políticas mesquinhas. ( Il est démontrable que chaque mouvement imprimé à l'air doit à la fin agir sur chaque être individuel. ) Ainda não experimentamos a fundo o poder da linguagem.  

Que não se muda já como soía

Depois de Serralves e da Casa da Música: Trabalhadores da empresa municipal Ágora - Cultura e Desporto do Porto (Batalha, Rivoli, Galeria Municipal, Campo Alegre, etc.) denunciaram "contratos precários" em equipamentos do município e reivindicaram melhores condições de trabalho. Em março,  o tipo que ganha 288 vezes mais  do que os trabalhadores do Pingo Doce disse que a fraca qualidade dos nossos políticos obriga-nos a pensar se não devemos mudar enquanto sociedade .  Sim, é urgente mudar, mas contra as práticas das empresas-sugadoras. Lutar por uma vida boa para todos.