Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Querido, onde é que estão os verbos?

Ainda sobre regras para escrever bem ou seguir um método que nos parece adequado (ambas as resoluções são becos sem saída), há uma história muito gira e bastante radical que o George Saunders conta na nota final de “Guerracivilândia em mau declínio”. Depois da fase Hemingway/Babel/Carver, Saunders tentou uma escrita ao jeito de Joyce/Lowry/Lawrence e escreveu um romance com o título “La boda de Eduardo” inicialmente com 700 páginas, reduzidas para 250 mas mesmo assim intragáveis, quase sem verbos e cheias de substantivos compostos. Pediu à mulher uma opinião sobre o manuscrito, ela desistiu ao fim de alguns minutos e, com extrema concisão e justeza, disse-lhe o seguinte: — Todas aquelas horas, para isto ? Querido, onde é que estão os verbos? Puseste-os num documento à parte, ou quê? E o que é aquilo com as palavras compostas e os joguinhos de palavras e toda aquela desesclarecedora embrulhada?

Últimas aquisições

No n.º 35 da «Imagem - revista de divulgação cinematográfica», datado de Novembro de 1960, Eurico da Costa e Manuel Villaverde Cabral, no «quadro da crítica», despacham «Intriga Internacional», de Alfred «Hitchkock» (sic) com duas rotundas bolas pretas, quer dizer, com a classificação de “sem interesse”. Alberto Seixas Santos, mais generoso, dá ao filme duas estrelas em quatro possíveis, que correspondem à classificação de “Bom”. Mais à frente, no artigo de crítica ao filme, Seixas Santos afirma: «Não sou dos que tomam o nosso autor por um génio da metafísica, mas não quero também cair no pecado contrário e julgá-lo um imbecil.» O n.º 273 do «Jornal de Letras & Artes», de Janeiro de 1970, abre com um anúncio de página inteira do Banco Pinto & Sotto Mayor intitulado «Esclarecimento sobre o Cartão Sottomayor», onde se explica o funcionamento do cartão de crédito bancário, «processo novo em Portugal, mas utilizado já em larga escala num grande número de países.» «Consist...

Escrever bem

Não li a entrevista de Miguel Esteves Cardoso, mas também não pretendo analisá-la, apenas perder algum tempo com o título porque é bastante interessante. Durante a conversa, Miguel Esteves Cardoso afirmou “sou extremamente inteligente, tenho um grande sentido de humor e escrevo muito bem” e a jornalista destacou a frase para as letras gordas. É um enunciado muito categórico — parece uma seta lançada com intensidade para as alturas desconhecidas, cada um dos atributos impulsionando o seguinte. Mas na verdade, extrema ironia, a flecha cai ao chão logo a seguir ao sentido de humor; “escrever muito bem” é um desgosto na vida de Miguel Esteves Cardoso. Para quem sabe o que a literatura é (e Miguel Esteves Cardoso sabe tremendamente) “escrever bem” é uma merda. Ser austero nos adjectivos e advérbios é uma regra boa para redigir relatórios.

Influenciadores do século XX

Revolução

A ideia é revolucionária. O automóvel é revolucionário. O detergente para a roupa é revolucionário. Os produtos para o cuidado da pele são revolucionários. Os champôs para a queda do cabelo também. Os produtos financeiros são revolucionários. Os bancos são revolucionários. As conferências, palestras, seminários e workshops são revolucionários. O último disco de Lady Gaga também é revolucionário. Aquele canal de TV é revolucionário. Qualquer discurso de Marcelo Rebelo de Sousa é revolucionário. O Papa Francisco é absolutamente revolucionário. A revolução é revolucionária. A revolução é tão revolucionária como o mais revolucionário dos produtos de marca branca do Pingo Doce.

Pantone 1375 C

Trouxe laranjas para o trabalho. Tenciono comer uma a meio da manhã. Demoradamente. Deve ser a isto que os especialistas chamam soft power .

Com a agilidade de um verdadeiro caçador diante de sua presa

Já desisti de Serralves há alguns anos. Basta-me trabalhar em Nevogilde para exceder a quota de tias e sobrinhos que consigo suportar. Prefiro a parte oriental da cidade com as suas misturas e pobreza, prefiro as ruas com algum lixo ao museu imaculado. A inauguração da Casa do Cinema Manoel de Oliveira é igual à Sociedade das Nações Unidas descrita por Albert Cohen, tudo gente muito bem e adequada à função. O único tipo que se salva na mole é o Luís Miguel Cintra. Agradeço a Adriano Miranda esta fotografia magnífica (guardar). Com ar de conspirador ou caçador, Luís Miguel Cintra parece compadre dos Valorosos. Gostava que fizesse um discurso verdadeiro, verdadeiro mesmo, daqueles que fazem tremer os ossos, deitam pedras abaixo e afugentam os espíritos delicados. Ele está-se nas tintas. Também está bem assim.
Trincapregos é parecido com o António Silva das comédias dos anos 30 e 40. Primo , na compleição física.  Secundo , na fome avassaladora.  Tertio , nos gestos e palavras pomposas.

Adagas, fitas, rosas e espadas.

Tringapregos dá nome ao livro e compreende-se porquê — é uma personagem de alto gabarito. Grandioso. Tem tudo em demasia e tudo em falta. Porém, apesar do paleio imponente, das alcunhas cómicas e dos trajes ridículos (ah, a maravilha de imaginá-los), Trincapregos é apenas um dos “Valorosos” — um grupo de judeus da ilha grega de Cefalónia, os cinco primos Solal, homens desenfreados, sentimentalões, farsolas, pícaros, chanfrados e muito mais (...) judeus do sol e do bom humor eloquente e cavalheiresco, nós judeus do Mar e das maneiras elegantes, descendentes dos judeus de Espanha a cavalo, que andaram vestidos de seda e usaram adagas, fitas, rosas e espadas (...). O livro cresce em redor das peripécias destas personagens extravagantes. Através de aventuras calhadas para o torto, Albert Cohen capta o lado mais solar da existência — uma vida cheia de cores, de cheiros, de comida, de corpo, efervescente, zombeteira, imperfeita, desgraçada, de excesso, mais dionisíaca que o próprio Dionísi...

Uma assustadora retenção

— Tens razão, reconheceu Trincapregos fazendo estalar as mãos imensa. Se eu não mentisse, que me restaria? Mas os romancistas mentem mais fundo do que eu. Todos eles fazem maus livros, que fazem crer às donzelas que o amor é um viveiro do paraíso e às mulheres que o casamento é um esgoto! Mentirosos, verdadeiros mentirosos e envenenadores, todos esses distintos escritores que mostram as suas poéticas heroínas bebendo e comendo de uma maneira encantadora e trincando com um ar obstinado algumas grainhas de uva. Muito bem, meus senhores, permitam-me que me espante de que nunca nos falem das consequências dessas trincadelas obstinadas. Sim, meus senhores, desde Homero até Tolstoi, os jovens heróis e heroínas sofrem, sobretudo quando são belos, de uma assustadora retenção. Não podem mais. Por exemplo, há mais de trinta anos que uma tal menina Natacha Rostova anda a beber sem que o autor a autorize a retirar-se nem por um instante! Todos os amantes e todas as amantes de Shakespeare, de Racin...

Sopro

Se de repente um actor decidisse, tal como o Helmer de Robert Walser , mudar o texto ou a cena de uma peça, isso seria o fim do teatro. No teatro, há um plano, um guião, um cenário há muito desenhado. O teatro é o contrário da vida. Não há nada de rotineiro na vida, nada de previsível no rame-rame do quotidiano. Num segundo, tudo pode mudar. A morte espreita a cada passo. No teatro, pelo contrário, sabemos quem morre e quem vive. «A Ifigénia tem de morrer todas as noites.» Um actor não tem o direito de mudar o que está escrito. Na peça de Tiago Rodrigues , o momento em que o ponto tenta mudar o curso de uma história, soprando ao actor palavras que não estão no texto, é exactamente o momento em que o teatro se confunde com a vida. É o momento mais belo e mais perigoso da peça. O momento em que o teatro abandona o palco e irrompe, como uma rajada de vento, pela nossa rotina dentro. Já não é teatro, mas outra coisa mais forte. Um acontecimento sobrenatural e contrário às leis da Natureza....

Debaixo do fogão

(...) A seguir Saltiel falou da perspicácia de um tal professor Freud. — Há alguém que roubou e que nega. Bem, levam-no a este médico professor, que olha para ele e diz: «A carteira está debaixo do fogão!» Trincapregos, de Albert Cohen, tradução de Pedro Tamen, Contexto, outubro de 1999, páginas 108 e 109.

Uma pessoa instruída

E logo a seguir disse aos seus correligionários que aquela pequena nuvem, lá em cima, lhe recordava o ilustre dramaturgo inglês Shakespeare. Depois apontou para uma poça de água e afirmou com desembaraço aos velhos pasmados que ela “continha o ambiente de certos romances de Georges Sand”. — Instruído, baliu o centenário, sacudindo debilmente a sua mão enrugada. — Deus to guarde, ó Abraão, disseram os outros, maravilhados. E Jónatas continuou a brilhar, a mostrar como estava armado para a vida com os dons do espírito, para a imensa glória do seu gordo e inchado pai, que o olhava com frágil meiguice de apaixonada, e sorria nesciamente, enfeitiçado por aquele quase-Messias que pusera neste mundo. Trincapregos, de Albert Cohen, tradução de Pedro Tamen, Contexto, outubro de 1999, página 50.

A arte subtil

— É deprimente. — O quê? — Os livros mais vendidos da categoria de ensaio. — Mas é o top. Qual é a surpresa? — Mesmo assim. É terrível. — Tens de saber dizer que se f*da.

Verde que te quero verde

Daqui até às eleições legislativas, todos os partidos políticos vão falar de questões ambientais. Vão integrá-las nos cartazes, nos posts das redes sociais, nos programas e talvez em pins giros para a lapela. Não porque seja um tema crucial, mas por causa dos últimos resultados eleitorais. Os partidos gostam demasiado da superfície e de votos. Já arranjei uma palavra para o fenómeno: panalização .

A baleia empalhada

«Um filme não é verdadeiramente bom senão quando a câmara é um olho na cabeça do poeta. Os distribuidores, naturalmente, estão todos de acordo em que os poetas não fazem vender lugares. Não adivinham de quem nos vem a própria linguagem do cinema. Sem poetas, o vocabulário do filme seria demasiado limitado para agradar ao público. O equivalente a uma tagarelice de crianças não faria venderem-se muitos lugares. Se o cinema não tivesse nunca sido amoldado pela poesia, teria permanecido como simples curiosidade mecânica e seria ocasionalmente exibido como uma baleia empalhada.» Orson Welles, 1958. Tradução de Luísa Ducla Soares. Béla Tarr, As Harmonias de Werckmeister , 2001.