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Mensagens

Sonatina para uma camisa branca

O livro de recitações desta semana é muito divertido. Desde o início, mas principalmente as duas ultimas frases: (…) comparecer com as suas camisas, sempre muito chique, onde quer que há descamisados em perigo. Ele está sempre embarcado, mas só embarca em iates.

Carta de Mlle Rosimont

Esqueci-me de te falar de um homem bizarramente constituído, com quem fiz uma partida em casa da presidente. Tinha um só testículo. Alguma vez viste algum desta espécie? Quanto a mim, foi a primeira vez. Ele disse-me que aquilo o tinha impedido de ser padre. É extraordinário: obrigado ao celibato, os testículos são um mobiliário inútil. Na minha opinião, se os castrassem a todos o seu número diminuiria rapidamente. Adeus, minha querida. 30 de Agosto de 1782.
Recrudescimento de actividade de negócios financeiros e económicos: vou investir parte do complemento de estabilização (trezentos e cinquenta e um euros) em livros e vinho .

Dispersos

Nos últimos dois meses, tenho estado a resgatar para publicação as traduções dispersas de um grande tradutor e poeta, falecido em Janeiro. O trabalho arrasta-se, cheio de obstáculos. Em muito pouco tempo, uma parte da sua obra afundou-se num abismo de silêncio e sombra. As coisas fecham-se a sete chaves contra os olhares indiscretos dos vivos. Tudo o que antes de Janeiro parecia claro e acessível, converteu-se rapidamente em nada mais do que indícios. Sinais vagos de poemas que existiram e desapareceram quase sem rasto. Como se também eles quisessem morrer.

Tabu

Não existe nada mais artificial do que as comparações rebuscadas que se costumam empregar para descrever uma jovem. A boca... uma cereja... Os seios, como botões de rosa... Oh, se tudo se pudesse resolver comprando no mercado um cesto de flores e frutos! E quem se apaixonaria se uma boca tivesse realmente o gosto da cereja madura? Quem se deixaria tentar por um beijo que fosse tão doce quanto um rebuçado? Caluda! Basta! Mistério, tabu... Witold Gombrowicz, Bakakai . Tradução de Rui Almeida Paiva.

Apenas as borboletas morrem assim?

Um gostava de passear de bicicleta, o outro a pé. Fora as deambulações, acho que nada liga Cioran a Walser: nem língua, nem cultura, nem itinerários. Nunca me passou pela cabeça aproximá-los. Foi por isso com verdadeiro espanto que descobri um texto de Cioran —  rapaz, romeno, arrebatado,  especialista no problema da morte   — intrinsecamente walseriano. Pelo menos foi assim que o traduzi: A BELEZA DAS CHAMAS — O fascínio das chamas subjuga de um jeito estranho, para além da harmonia, proporções e medidas. O seu ímpeto impalpável não simboliza a tragédia e a graça, o desespero e a ingenuidade, a tristeza e a volúpia? Não encontramos, na sua transparência devoradora e na sua imaterialidade ardente, a projecção e a leveza das grandes purificações e dos incêndios interiores? Gostaria de ser levado pela transcendência das chamas, sacudido pela sua respiração delicada e insinuante, flutuar sobre um mar de fogo, consumir-me numa morte de sonho. A beleza das chamas dá a ...

Loop

Uns confinam, outros desconfinam. Os que desconfinam agora, confinarão mais tarde. Os que confinam hoje, desconfinarão amanhã. O vírus parece que vai e volta, mas na verdade não vai a lado nenhum. É como se estivéssemos a assistir em loop àquela cena de Ecce Bombo em que Michele Apicella, o personagem de Nanni Moretti, se despede várias vezes dos amigos, mas nunca chega a sair do lugar.

Os artistas como veraneantes

O escritor como operário

Se o meu amigo conhecesse os bastidores da literatura, saberia que o escritor é uma pessoa cujo ofício é escrever, como outros têm o ofício de construir casas. Nada mais. O que o distingue do fabricante de casas é que os livros não são tão úteis como as casas e, além disso... além disso, o fabricante de casas não é tão vaidoso como o escritor. Hoje em dia, o escritor considera-se o centro do mundo. Conta toda a espécie de patranhas. Engana a opinião pública, consciente ou inconscientemente. Não revê as suas opiniões. Acha que o que escreve é verdade só pelo facto de ter sido ele a escrever. É o centro do mundo. (...) Todos nós, que escrevemos e publicamos, fazêmo-lo para ganhar a vida. Nada mais. E para ganhar a vida não hesitamos por vezes em afirmar que o branco é preto e vice-versa. De resto, há momentos em que até nos permitimos o cinismo de nos rirmos e de nos acharmos génios... Roberto Arlt, Águas-fortes portenhas .

E o povo voltará a ser simples e frugal

Fazei cair por terra a santidade e rejeitai a prudência e deixarão de existir pequenos ladrões. Deitai fora as pedras preciosas e destruí as pérolas e deixarão de existir os grandes ladrões. Queimai os contratos e parti os carimbos e o povo voltará a ser simples e frugal. Baralhai as medidas e quebrai as balanças e as gentes não mais se disputarão. Aboli as instituições dos santos e dos reis e o povo tornar-se-á sensato. CHUANG CHOU Chuang Tse [séc. IV a. C.]

Fazer-se de morto

Há três dias que, como certos personagens de Roberto Arlt , me faço de morto. Talvez mais. Não, não é «talvez mais»: faço-me fervorosamente de morto há muitos dias. Não funciona. Sou tão inábil na nobre arte de fingir-se morto que não mereço sequer uma nota marginal entre os personagens secundários de Roberto Arlt.

Ir de barco

Só ontem à noite, talvez porque Betty e Rita falavam em francês no canal arte, é que me apercebi da ligação de Mulholland Drive (por atração, contraste e devaneio) a Céline et Julie vont en bateau.

Traduzir

Traduzir enfrenta os mesmos problemas triviais que as relações amorosas, pelo menos quando se traduz para ler . Há um vínculo de grande apego (às vezes, mais do que um vínculo, é uma vala onde podemos cair e morrer — um ou dois, de longe a longe). Mas também pode surgir, de repente, uma vontade irresponsável de trair. O engraçado é que essa traição revela, ou anseia revelar, uma ligação ainda mais forte e secreta. Quer dizer, ao contrário do amor, aqui os dois movimentos vão no mesmo sentido.

Bakakai

Começo a ler a primeira edição de Bakakai em português. Tenho a impressão de estar a ler os contos de Virgilio Piñera. Ou será o contrário? Ao ler os contos do Piñera, estou na verdade a seguir a imaginação de Gombrowicz?

Prefácio a “Lágrimas e Santos”

Nas suas Entrevistas com Chestov , Benjamin Fondane cita uma frase de Chestov que diz que a melhor maneira de filosofar é “andar sozinho”, sem tomar outro filósofo como guia; melhor ainda é falar de si mesmo. Fondade acrescenta mais adiante: “o tipo do novo filósofo é o pensador privado, Job sentado sobre o seu esterco”. Cioran pertence a essa raça de pensadores. Durante muito tempo ignorado, lido apenas por marginais.  Se os seus paradoxos ou as suas piruetas divertem ou irritam alguns dos seus leitores, outros — os verdadeiros — experimentam uma estranha sensação de euforia à beira do abismo, como essa jovem libanesa que lia Cioran sob os bombardeamentos, numa cave em Beirute, pois achava o seu espírito estimulante e o seu humor um tónico no meio do desastre. Ou como aquela japonesa que, querendo matar-se, descobriu a tempo as palavras de Cioran sobre o suicídio e começou a escrever-lhe. A felicidade de uma obsessão partilhada transformou o pesadelo numa conversa epistolar....

Tempestuosa temperatura

Apesar do Sol declinante, o calor sufocava naquela região de África, vizinha do Equador, e cada um de nós sentia-se duramente incomodado pela tempestuosa temperatura que a brisa não conseguia alterar. Raymond Roussel, Impressões de África . Tradução de Júlia Ferreira e José Cláudio.

Apanhar a fresca