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Mensagens

Os quadros de camponeses (casamentos, danças e banquetes, pausas no trabalho para comer e descansar um pouco,...) de Pieter Bruegel, o Velho parecem saídos de um filme de Renoir. Talvez  Elena e os Homens.

O demiurgo gentil

— O que é uma catástrofe?  Quando Paul Grivas aproxima as filmagens de Filme Socialismo ao naufrágio do Costa Concordia, ficamos desnorteados: a ficção é palpável e, em contrapartida, a realidade transforma-se numa coisa tremendamente instável. Abriu-se uma brecha entre as duas que provoca o pensamento e, quem sabe, outras coisas.  Mas para mim o ponto alto de Filme Catástrofe é o retrato gentil de Godard a trabalhar (cachecol vermelho, dois charutos no bolso do casaco). Fala lentamente e em voz baixa, diz uma piada, ajeita o livro, faz uma festa, corrige o ritmo, repete a claquete com as mãos. São os mesmos gestos do amor, não necessariamente a mesma velocidade . Imagens que podemos guardar para não nos sentirmos sozinhos na noite da noite . Procuro uma frase definitiva, mas não a encontro. Então, continuo.

Salutar lição

Leio um «velho» artigo de Vasco Graça Moura sobre as diferentes traduções de Hamlet para português. A mais curiosa é a do rei D. Luís , publicada em 1877. Dois exemplos, entre muitos. A fala de Marcelo «Há algo de podre no reino da Dinamarca» (Feijó) é vertido por «Algum vício há na constituição da Dinamarca». Outro: Acto I, Cena III. Ofélia diz ao irmão Laertes: «Guardarei o efeito desta boa lição como/ Vigia dos afectos.» (Feijó) O rei prefere: «Em meu coração encerrarei, como um preservativo, a tua salutar lição.»

Ter ou haver

HAMLET: Ter ou haver a podridão é essa. AGRIFONTE: Isto já é demais. (Vai ao município apanha o documento e volta) Hamlet, meu amigo, teu pai, o bom pai que te deu esta história, acaba de falecer incauto. HAMLET: (Extraviado, rindo com infinita amargura) Ah, ah, ah... Meu pai deu-me o conto. E que conto! J'en pense le plus de mal possible. O ESPECTRO DO PAI: (Aparecendo) Senhores, a comida está na mesa. Saem todos. A paisagem agora vazia lembra um daqueles envergonhados particípios que faziam a delícia dos nossos ancestres. Luís Buñuel, Hamlet - Tragédia cómica, Acto terceiro, Cena II. Tradução de Mário Cesariny.

¿Qué te pasa?

A Regina Guimarães pode estar entretida com o seu bordado, mas mal levanta a voz percebemos que é uma verdadeira amazona: tem arco, cavalo e as suas palavras não se desfazem no ar.  Ontem, na sessão d' O Espírito da Colmeia , entre muitas coisas certeiras, ela disse que Isabel é uma personagem buñueliana.  Entusiasmada com a ideia, fiz uma ligação particular a Ema de Manoel de Oliveira (talvez por influência da casa ) e, de repente, o filme de Erice ganhou um novo movimento dialéctico.

Um filme olé

Logo no início d’ O Espírito da Colmeia , quando a carrinha com o projector e as bobines do Frankenstein chega a Hoyuelos e os miúdos perguntam como é o filme, o homem do cinema (boné, sobretudo e charuto) tece uma série de elogios ( maravilhoso, o filme mais bonito que existe, uma coisa divina, o melhor que já exibi, uma beleza, um filme enorme ) e no fim, como síntese da crítica, diz: é um filme «olé» .  Vou adoptar o fraseado (alterando um pouco a carga significante).

O mais revolucionário, o mais humano

Adoro e admiro Charlot há doze anos, mas admito que Stroheim me comove de um modo mais directo, de um modo que tem mais a ver com o meu temperamento. É precisamente por ter a coragem de nos mostrar o amor tal como ele é, que Stroheim é o mais revolucionário e o mais humanos dos realizadores. Robert Desnos, Documents, décembre 1929, nr. 7.

Um dos filmes a preto e branco mais verdes

«O filme transborda das habituais cadências descontraídas e sem juízos de Boetticher,» continua. «Mesmo os seus homens maus são irmãos de boa índole — permanecendo, em toda esta cordialidade, uma dura peça moral (para as personagens, não para nós, como numa fábula). Um filme doce sobre a vida comum (é impossível imaginar o assassínio, mesmo os cadáveres fora de quadro de Tall T  aqui), Black Midnight   deve ser um dos filmes a preto e branco mais verdes já feitos, certamente o mais verdejante em Lone Pine, com sequências empolgantes a céu aberto e puros voos a cavalo.»  Black Midnight , logo às 21H30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

De mãos na cinta e cachimbo na boca

 

Não combina com aquilo que sabemos

(...) Em certa passagem (11, 581, B), um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon , a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada (o mesmo personagem chega à conclusão, no andamento de sua fala, que a ideia toda é ridícula e não combina com aquilo que sabemos sobre Sócrates). Sócrates e o espirro, Kelvin Falcão Klein.

— Qu’est-ce que c’est que cette histoire ?

Fui acompanhar um amigo à inauguração da exposição dedicada à Jean-Luc Godard. Conhecendo Serralves, as minhas expectativas já eram altas, mas a experiência superou tudo. Parecia uma cena saída dos livros de Thomas Bernhard: perfumes, penachos e vaidade generalizada. Mas nem me vou deter nisso, basta reler o Bernhard para compreender a coreografia cultural — é igual em todo o lado. Por isso, em vez de crónica social, resolvi dedicar-me à gastronómica: o jantar em si mesmo. Foi no andar superior: uma sala ao fundo para as pessoas mais distintas e a da entrada para as restantes e serviço de copa. As mesas estavam atulhadas de velas como se fosse um velório (do cinema?) Os empregados moviam-se concentrados e nervosos (creio que havia alguém a supervisioná-los) para nos servirem sem serem notados — trabalhadores invisíveis é o objectivo das instituições culturais. Os nomes dos convidados estavam escritos num papelinho para não haver dúvidas do nosso lugar nem tentativas de subverter a

Maldição dos mortos

O Andy Rector contou-me que numa das sessões da Cinemateca, Tag Gallagher perguntou ao público se sabiam porque é tão tremendamente triste e trágico o último plano de O homem que matou Liberty Valance . Ele próprio ainda não conseguiu encontrar uma resposta clara. Acrescentou que era como se estivéssemos no comboio da civilização, mas não era bem isso que queríamos . É fácil argumentar que todo o filme tem essa amargura porque nos mostra que a democracia americana é construída sobre actos não muito dignos. No entanto, acordei de noite e isto veio-me de novo à cabeça e tomou conta da insónia. A minha resposta incorria num erro básico de perspectiva: uma vez que tinha abordado o filme de um ponto de vista político, não via o resto. Mas o comentário de Tag conseguiu desinquietar-me e obrigou-me a repensar. Não se trata apenas daquele plano, creio, é todo um bloco que começa quando Stoddard fecha a porta do barraco transformado em câmara ardente e vê a flor de cacto sobre o caixão

Comme un dialogue d’amoureux

Quero fazer (!) um livro composto unicamente de fragmentos, notas, aforismos. Pode ser um erro, mas essa fórmula está mais próxima da minha natureza, do meu gosto pelo inacabado, diga-se, do que os ensaios elaborados onde é preciso manter uma aparência de rigor às custas da verdade interna.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.