Ao olhar para Rimbaud vejo-me ao espelho. Nada do que diz me é estranho, por mais feroz, absurdo ou difícil de perceber que seja. Para compreender é preciso dispormo-nos a um acto de rendição, e recordo-me perfeitamente dessa rendição no primeiro dia em que olhei para a obra de Rimbaud. Nesse dia, há pouco mais de dez anos, li apenas algumas linhas e, tremendo como uma folha ao vento, pus o livro de lado. Tive nessa altura a sensação, e ainda a tenho, de que ele tinha dito tudo o que há para dizer no nosso tempo. Era como se ele tivesse colocado um telhado sobre o vazio. É o único escritor que li e reli com um prazer e uma excitação que nunca diminuíram, encontrando nele sempre qualquer coisa de novo, sempre tocado profundamente pela sua pureza. Seja o que for que diga dele há-de ser sempre aproximativo, sempre uma tentativa, no melhor dos casos um aperçu. É o único escritor cujo génio invejo; todos os outros, por maiores que sejam, nunca despertaram em mim inveja. E acabou aos dezanove anos! Duvido de que alguma vez tivesse chegado a escrever uma linha se me tivesse sido possível ler Rimbaud na juventude. Bem-aventurada, por vezes, a nossa ignorância!
de Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral
Comentários
"É importante ter um modelo que possui um mundo rico, turbulento, inconfundível [...] não posso imaginar um poeta que não tenha sido alguma vez dominado e paralisado por uma autenticidade alheia [...] quando o futuro poeta sente que nada tem de próprio, que não é ele mesmo, não sabe sequer o que é -- suas forças ocultas começam a despertar."
Canetti ainda afirma ser salutar confrontar-se desde cedo com um modelo de rica envergadura, pois força o iniciante a construção de um mundo "tanto mais rico" afim de ver-se livre do jugo do 'mestre'.
Provavelmente um imberbe Henry Miller quedaria humilhado e extasiado diante da descoberta precoce dos tesouros de Rimbaud, mas também certamente tal encontro traria resultados benfazejos. Já Sócrates dizia: "as pequenas coisas só são pequenas em comparação com as grandes". Deveria-se então inverter-se a rejubilosa exclamação final e transformá-la em lamento? "desaventurada seja nossa ignorância!"? Talvez.
Partindo-se do princípio de que todo amante chora o tempo em que ignorou sua amada ("Por que não te encontrei antes, meu amor!?", etc.), lícito seria pensar ocorrência semelhante nas relações leitor-obra. Porém, neste caso, a situação mostra-se sutilmente distinta. O amante lamenta o tempo desencontrado, o leitor, por seu turno, lamenta a perda do primeiro encontro. Daí Hemingway declarando a infelicidade que é a impossibilidade de ler novamente Melville ou Dostoiévski como se fosse a primeira vez. "Nunca se mergulha duas vezes no mesmo rio" é uma máxima indestrutível, mas inaplicável aqui: só se conhece a água (assim como qualquer elementar matéria) "de uma vez para sempre".
Posteriormente a estrelinha dele perdeu o prestígio e fulgor inicial nesta constelação particular a qual chamamos carinhosamente de "estante". Prova de que nem todo modelo da juventude resiste sem sofrer sérias depreciações com o tempo.
E se brincássemos de listar os escritores que fizeram nossa cabeça quando éramos jovens e que mais tarde beiraram o ostracismo em nossos corações?
Eu começo:
Hermann Hesse, Rubem Fonseca, Bukowski, Manoel de Barros...
Tenho bem poucos, como vê. Serei ainda muito novo?
Bela ideia para um ensaio.