Avançar para o conteúdo principal

Duvido de que alguma vez tivesse chegado a escrever uma linha

Ao olhar para Rimbaud vejo-me ao espelho. Nada do que diz me é estranho, por mais feroz, absurdo ou difícil de perceber que seja. Para compreender é preciso dispormo-nos a um acto de rendição, e recordo-me perfeitamente dessa rendição no primeiro dia em que olhei para a obra de Rimbaud. Nesse dia, há pouco mais de dez anos, li apenas algumas linhas e, tremendo como uma folha ao vento, pus o livro de lado. Tive nessa altura a sensação, e ainda a tenho, de que ele tinha dito tudo o que há para dizer no nosso tempo. Era como se ele tivesse colocado um telhado sobre o vazio. É o único escritor que li e reli com um prazer e uma excitação que nunca diminuíram, encontrando nele sempre qualquer coisa de novo, sempre tocado profundamente pela sua pureza. Seja o que for que diga dele há-de ser sempre aproximativo, sempre uma tentativa, no melhor dos casos um aperçu. É o único escritor cujo génio invejo; todos os outros, por maiores que sejam, nunca despertaram em mim inveja. E acabou aos dezanove anos! Duvido de que alguma vez tivesse chegado a escrever uma linha se me tivesse sido possível ler Rimbaud na juventude. Bem-aventurada, por vezes, a nossa ignorância!

Comentários

Raul Padilha disse…
Recorrente é a sensação de reverência causada por um escritor maior, ensejando o fervor da adoração (poucas vezes lúcida) e a percepção de insignificância (muitas vezes fatal) por parte do jovem aspirante. Num ensaio de 1965, Elias Canetti homenageia Karl Kraus, um autor que o obsedou quando novo, além de comentar brevemente sobre a influência ambígua dos modelos:
"É importante ter um modelo que possui um mundo rico, turbulento, inconfundível [...] não posso imaginar um poeta que não tenha sido alguma vez dominado e paralisado por uma autenticidade alheia [...] quando o futuro poeta sente que nada tem de próprio, que não é ele mesmo, não sabe sequer o que é -- suas forças ocultas começam a despertar."
Canetti ainda afirma ser salutar confrontar-se desde cedo com um modelo de rica envergadura, pois força o iniciante a construção de um mundo "tanto mais rico" afim de ver-se livre do jugo do 'mestre'.
Provavelmente um imberbe Henry Miller quedaria humilhado e extasiado diante da descoberta precoce dos tesouros de Rimbaud, mas também certamente tal encontro traria resultados benfazejos. Já Sócrates dizia: "as pequenas coisas só são pequenas em comparação com as grandes". Deveria-se então inverter-se a rejubilosa exclamação final e transformá-la em lamento? "desaventurada seja nossa ignorância!"? Talvez.
Partindo-se do princípio de que todo amante chora o tempo em que ignorou sua amada ("Por que não te encontrei antes, meu amor!?", etc.), lícito seria pensar ocorrência semelhante nas relações leitor-obra. Porém, neste caso, a situação mostra-se sutilmente distinta. O amante lamenta o tempo desencontrado, o leitor, por seu turno, lamenta a perda do primeiro encontro. Daí Hemingway declarando a infelicidade que é a impossibilidade de ler novamente Melville ou Dostoiévski como se fosse a primeira vez. "Nunca se mergulha duas vezes no mesmo rio" é uma máxima indestrutível, mas inaplicável aqui: só se conhece a água (assim como qualquer elementar matéria) "de uma vez para sempre".

Raul Padilha disse…
Quando tinha 15 anos deparei-me com um "Contos Reunidos" de Rubem Fonseca, calhamaço contendo toda sua produção escrita entre 1963-1992, a fase áurea do Rubem. Foi aquele livro o responsável por minha conversão à literatura. Levei pelo menos um ano crendo devotadamente inexistir algo melhor do que a prosa de submundo fonsequiano.
Posteriormente a estrelinha dele perdeu o prestígio e fulgor inicial nesta constelação particular a qual chamamos carinhosamente de "estante". Prova de que nem todo modelo da juventude resiste sem sofrer sérias depreciações com o tempo.
E se brincássemos de listar os escritores que fizeram nossa cabeça quando éramos jovens e que mais tarde beiraram o ostracismo em nossos corações?
Eu começo:
Hermann Hesse, Rubem Fonseca, Bukowski, Manoel de Barros...
Tenho bem poucos, como vê. Serei ainda muito novo?
"Partindo-se do princípio de que todo amante chora o tempo em que ignorou sua amada ("Por que não te encontrei antes, meu amor!?", etc.), lícito seria pensar ocorrência semelhante nas relações leitor-obra. Porém, neste caso, a situação mostra-se sutilmente distinta. O amante lamenta o tempo desencontrado, o leitor, por seu turno, lamenta a perda do primeiro encontro. Daí Hemingway declarando a infelicidade que é a impossibilidade de ler novamente Melville ou Dostoiévski como se fosse a primeira vez."
Bela ideia para um ensaio.
Voltando ao Henry Miller, autor que li na juventude com entusiasmo (no caso da trilogia da "Rosy Crucifixion", com um entusiasmo, digamos, físico...) e de que continuo a gostar, é um caso curioso. Este livro, por exemplo, que inclui dois longos ensaios sobre Rimbaud (umas 150 páginas ao todo), é incrível. O Miller consegue prender o leitor durante dezenas e dezenas de páginas, repetindo sistematicamente a mesma ideia. Nas mãos de um tipo sem imaginação, a explanação da tese não ultrapassaria duas páginas. Mas o Miller consegue embrulhar a ideia em toda a espécie de malabarismos, movimentos de trapézio e truques de magia. É grande literatura. Isto para dizer que a declaração de Miller a propósito do impacto de Rimbaud não passa de um malabarismo para seduzir o leitor. Gosto muito disso.