Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2023

Alguns dizem que não há mundo fora do capitalismo

Eduardo Viveiros de Castro: Todas as nossas liberdades, de ir e vir, de viajar, de não precisar de lavar roupa à mão, estão assentes numa economia de combustíveis fósseis. Isso explica muito da hesitação do pensamento clássico de esquerda de considerar a catástrofe ecológica como uma questão crucial e perceber que a justiça social e a justiça ambiental são a mesma coisa. Sempre houve no pensamento progressista a ideia de que a dominação do homem pelo homem, como se dizia, só acabará quando o homem dominar completamente a natureza, que sempre foi o projecto da modernidade. Déborah Danowski: O contraponto disso é achar que nós só nos devemos preocupar com as questões ecológicas depois de resolvermos os problemas do homem, a pobreza. E.V.C.: Há uma famosa frase do Aristóteles que está no fundo disso, que era ele justificando a escravidão em Atenas, dizendo que o dia em que os fusos trabalharem sozinhos já não precisaremos de escravos. Como fazer isso? A tecnologia, um dia, vai-nos livra...

Afinidades

Junto aos moralistas franceses do século XVIII — era aí que, em parte, Cioran sentia pertencer.  Por duas vezes, regista nos Cadernos que os espíritos de que se sente mais próximo são Job e Chamfort. Numa das formulações escreve mesmo:  sou um aluno de Job e Chamfort . Pela forma como estrutura o pensamento, pela delizadeza do seu francês, e principalmente por mais qualquer coisa que não se deixa definir, é uma afirmação verdadeira.  No entanto, se tivesse que descrever as suas afinidades com as minhas próprias palavras, correndo o risco de parecer que estava a apresentar um namorado recente, diria que Cioran está entre Bach e Francis Bacon (o pintor).

Mercado regulado

Nos Estados Unidos, um bando de malucos fortemente armado e encorajado pelo presidente, invade o Capitólio, mata polícias, pilha e parte tudo o que encontra pela frente. Na Rússia, o CEO de uma empresa privada de guerra, cujo principal cliente é o Estado, ameaça marchar com os seus colaboradores até Moscovo, numa espécie de operação comercial falhada e sem consequências. Conclusão: o capitalismo russo é mais ordeiro.
Até estava inclinada para os dois filmes do João Canijo, mas o Mal Viver deixou-me com tantas dúvidas. É fácil gostar do hotel já um bocado estragado e da paisagem (conheço aqueles pinheiros da minha infância) filmados daquele jeito, no entanto há ali qualquer coisa que não funciona; um desavindo entre a forma e o conteúdo? Parece que elas estão num filme de Cassavetes, mas por engano. É como o livro da Clarice Lispector e o filme do César Monteiro —  mais duas pistas deslocadas. Mesmo assim, vou insistir na perspectiva dos outros. Boa vontade não me falta.
Os cartazes de Cidade Rabat ao longo da linha do metro abrem uma brecha na realidade. Às vezes, o cinema começa antes do cinema.

Il s’agit bien de cela

Nunca deixo de me espantar com a capacidade de Jean-Luc Godard pensar o cinema por dentro. Em 1981, aproveitou uma passagem pelos estúdios Zoetrope para filmar Une bonne à tout faire . À primeira vista parece uma espécie de ensaio de Passion .  Mas com Godard as coisas nunca são o que parecem, e passado algum tempo ocorreu-me que também podia ser um aforismo cinematográfico , o cinema a dizer mais uma vez a frase do carteirista: Pour aller jusqu'à toi, quel drôle de chemin il m'a fallu prendre . Mas, a quem?

Morrer no Verão, nunca!

Esta manhã, fui à Vandoma e comprei um Mishima que ainda não tinha: Morte em pleno Verão . O livro parece ter pertencido a dois leitores ou leitoras antes de mim. Na folha de rosto, e numa espécie de comentário ao título, o primeiro escreveu: «Que a dita [morte] seja só no Verão e depois da minha. Natal 88.» Mais tarde, o segundo acrescentou: «No Verão nunca! Talvez no Outono, mas com chuva e no ano de 2500 d.C.»

Ajuda para comer

No Largo da Lapa, um homem pede-me «uma ajuda para comer». Deve ter cinquenta e muitos. Provavelmente, dorme na rua. Enquanto procuro a carteira no fundo da mochila, o homem acrescenta: «Isto se não lhe fizer diferença. Não quero prejudicar ninguém. Isto está fodido para todos.»

Mulheres doentes

Os meus «escritos» só tiveram algum sucesso junto das mulheres, de umas quantas, muito raras. Encontro a explicação para isso na sentença tão justa de Hipócrates: «A mulher é a doença.»  Uma pessoa saudável não pode interessar-se pelo que faço.     Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (setembro de 1964)

Aprender a conviver com os ratos

Uma das coisas que invejo a Cioran são os passeios nocturnos com Beckett pelas ruas de Paris. Gosto de imaginar as conversas sobre palavras que não existem, as interjeições de Cioran e os silêncios de Beckett. As ruas ainda sem turistas, vazias. Também consigo ver o lixo e os ratos. Ah, os ratos.

Pratos do dia

Fotografias da Linha de Sombra

Três filmes

Por razões práticas, fui rever Da Vida das Marionetas , de Bergman (1980). O que une este filme a Warum läuft Herr R. Amok? , de Fassbinder (1970), e Jeanne Dielman , de Akerman (1975), é muito mais do que um ténue fio agitado pelo ar daqueles tempos. (Escrevo «ar daqueles tempos» para facilitar.) O que os une é uma corda de aço.

Apenas a matéria vida era tão fina

Noutros tempos teria ido à Cinemateca ver Retrato de uma rapariga do fim dos anos 60 em Bruxelas , mas agora já não me apetece viajar mais que 20 quilómetros e acabei por ver o filme no pequeno ecrã do iPad . A experiência até nem é má, quer dizer, esta versão reduzida e um bocado estragada combina com a história de evasão de Michèle, partilham o mesmo carácter improvisado e precário — quase que podemos dizer que são feitos da mesma matéria. Logo no início, e depois de uns planos hitchcockianos, Michèle senta-se num café, acende um cigarro e começa a rabiscar uma justificação para faltar às aulas. Escreve em nome do pai (aquele homem que a levou até à paragem de autocarro e de quem ela fala muito ao longo do filme). Começa por explicar que a filha está gripada. Corrige: teve que ir a um funeral, a avó morreu. Afinal quem morreu foi o tio. Não, foi a tia que morreu a seguir à morte do tio. Segue-se a morte do pai e por fim a morte da própria Michèle: Veuillez excuser ma fille Michèle, ...

Promessa

Um velho amigo, do meu círculo mais íntimo, diz-me que não quer ser cremado e as cinzas lançadas ao mar como lixo. Apesar de gostar muito do mar, quer ser enterrado no sítio onde nasceu, a três mil quilómetros daqui, segundo os ritos. Quer que lhe prometa que farei o possível para que o seu desejo seja cumprido. Digo-lhe que não será cremado e que não percebo onde foi ele buscar a estranha ideia de que as suas cinzas seriam lançadas ao mar como lixo. Ele insiste e repete tudo outra vez. Prometo.

Livros do Desassossego

Só se deve escrever e sobretudo publicar coisas que fazem mal, quer dizer, que não conseguimos esquecer. Um livro deve remexer feridas ou até mesmo provocá-las. Deve estar na origem de um desassossego  fecundo ; mas acima de tudo um livro deve constituir um perigo . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Retrato de uma rapariga do fim dos anos 60 em Bruxelas

— Não sentes que está para acontecer alguma coisa?