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A mostrar mensagens de janeiro, 2024

Saudade do mar

Na terra dos meus pais, é a época das tangerinas e dos limões. As laranjas ainda estão verdes. No limoeiro, encontrei três limões monstruosos, cheios de tentáculos. Pareciam cefalópodes, moluscos marinhos, a debaterem-se com os galhos espinhosos da árvore. A terra com saudade do mar.

Uma história de sentido ainda oculto

Uma das coisas bestiais dos mortos é que aparecem de imprevisto. O meu fim-de-semana foi inteiramente assombrado/iluminado por Cesariny. No sábado, Pedro Costa explicou que o título do filme sobre Danièle Huillet e Jean-Marie Straub começou com a longa cena do sorriso quântico de Silvestro, passou moto-contínuo para o segundo plano de Von heute auf morgen , e daí para o grafito no muro: Wo liegt euer Lächeln begraben ?! Mas a tradução literal para português tinha um ritmo pesado, então o Pedro pediu a alguém para pedir ao Cesariny um golpe de asa . E o jovem mágico das mãos de ouro decidiu muito depressa ( como se fosse de moto ) cortar uma palavra: Onde jaz o teu sorriso escondido ? Só isso. Outra vez a tal redução que intensifica, a elipse que ilumina, o suspiro que se transforma num romance. No domingo, na A3 a caminho de Famalicão, vi um cartaz verde com o nome de Cesariny. Tinha mais palavras escritas mas só li Cesariny, ali sobranceiro à auto-estrada, no meio das árvore...

Coisas escondidas

Uma vez que se tratou de uma encomenda, Onde jaz o teu sorriso?  não devia ser o filme mais indicado para descobrir Pedro Costa. É certo que ele definiu que a melhor forma — a única, aliás — de filmar Danièle Huillet e Jean-Marie Straub era a trabalhar; encontrou uma porta, uma janela e os sítios justos para pôr a câmara; e manteve-se extremamente atento e discreto. Enfim, fez a tal redução que, no fundo, é uma concentração.  Mesmo assim, é assombroso que um filme deste tipo, com constrangimentos e que esteve tão perto de não ser realizado, consiga apanhar tão profundamente não só as características mais inteiras e humanas de Huillet e Straub, mas também o lado mais escondido de Pedro Costa.  «Se houver uma longa paciência, estará carregada do seu contrário, (...) estará carregada de ternura e violência», diz Straub.

Peso e leveza

De volta aos Cadernos de Cioran, na tradução da Cristina. Impressiona-me o número de frases que terminam com reticências. As palavras são firmes, graves, sólidas. Mas também transparentes, leves, musicais. Peso e leveza, em simultâneo. As reticências são talvez um ponto de fuga, um pequeno movimento para libertar energia. Como as pontes que têm de oscilar para não cair.

O mundo que vá para o inferno

Lutei dias e dias com a frase mais forte d’ O Camião . « Que le monde aille à sa perte » só surge quatro vezes (uma delas com todas as palavras encadeadas por hífens, outra com «o mundo» substituído pelo pronome), mas arrasa tudo. Escrevi uma série de frases possíveis, mudando o verbo ou o complemento oblíquo; cocei o queixo, inclinei a cabeça; fui ver se estava a chover. Nada. Conseguia segurar a força, mas faltava o ritmo — um golpe seco de espada. Depois lembrei-me que a Marguerite Duras gostava muito de Capri, c’est fini (a mais bela canção de amor, dizia ela). E partir daí foi mais fácil, uma canção leva a outra.

Um turista mexeu

Notícia no jornal: «O relógio da Torre dos Clérigos, no Porto, está atrasado 40 minutos desde segunda-feira, após um turista ter mexido num dos seus veios mecânicos.»  De repente, um turista trapalhão lança toda a cidade num salto mirabolante pelo abismo do tempo. Um pequeno gesto involuntário e o Porto passa a ser o único lugar do mundo que avança segundo uma escala temporal diferente. 40 minutos, 40 horas, quem sabe 40 anos fora do tempo. Ou simplesmente — outra hipótese — o turista não resistiu ao apelo erótico do veio mecânico do relógio dos Clérigos e tocou-lhe. Com a ponta dos dedos, com a mão toda, talvez.

Benjamin Fondane

6, rue Rollin O rosto mais sulcado, mais escavado que se possa imaginar, um rosto com rugas milenares, mas de modo algum petrificadas, pois eram animadas pelo tormento mais contagioso e mais explosivo. Não me cansava de as contemplar. Nunca antes tinha visto uma tal concordância entre parecer e dizer, entre fisionomia e palavra. É-me impossível pensar na mais pequena das afirmações de Fondane sem imediatamente me dar conta da presença imperiosa dos seus traços.  Visitava-o muitas vezes (conheci-o durante a Ocupação), sempre com a ideia de não ficar mais de uma hora e acabava por passar a tarde inteira em sua casa, por minha culpa claro, mas também por culpa dele: ele adorava falar, e eu não tinha coragem e muito menos vontade de interromper um monólogo que me deixava exausto e arrebatado. No entanto, na primeira visita que lhe fiz com intenção de o interrogar sobre Chestov, eu é que fui descomedido. Pois, sem dúvida por necessidade de me exibir, não lhe fiz pergunta nenhuma, pref...

A vida é uma festa, vamos vivê-la!

Fellini Oito e Meio , de novo. Aquela nave espacial desconchavada a apontar para o céu, espécie de arca de noé para «salvar a humanidade da bomba atómica». O mago com a varinha mágica, que muda o rumo dos acontecimentos, segundo os caprichos do sonho e da imaginação. O realizador que não consegue filmar, não porque lhe faltem ideias, mas porque resiste a fazer um filme ditado por outros. O cidadão que recusa a corda que lhe atam ao pé e que o impede de andar entre as nuvens.  «A vida é uma festa» e o cineasta quer vivê-la com todos e em liberdade.  Desta vez, não consegui ver o filme sem pensar na vida depois de 10 de Março.

Limpeza

A insistência na limpeza. Eles querem «limpar», limpar tudo. Não é de agora, claro. Lady Macbeth continua a lavar as mãos. Lava as mãos, agora e sempre, pelos séculos fora. O sangue não sai. O oficial sádico das SS, no Porteiro da Noite , limpa o tampo das mesas, em pleno campo de extermínio, uma e outra vez. A sujidade não desaparece. Nascemos entre merda e mijo. Morremos da mesma maneira. Limpar o quê? A humanidade?

Er ist das Einfache / Das schwer zu machen ist

A conferência de Bernard Eisenschitz foi interessante e inspiradora. A ideia de fazer um apanhado de pequenas histórias ( anedotas , no sentido das de Kleist) sobre os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub é óptima porque consegue projectar na obra que os dois construíram (filmes simples, difíceis de fazer) um segundo vento que dá prazer e faz sorrir — e tudo que contraria a idolatria no amor é revigorante.  A própria conferência deu origem a duas anedotas. Os problemas na passagem de excertos de som e imagens (parecia que estávamos numa colectividade sem equipamentos) foi, obviamente, a piscadela de olho habitual a Tati (já tinha apanhado o barulhinho das sapatilhas do fotógrafo sobre o chão de mármore do átrio). A outra é de ordem textual: na sua intervenção, Bernard Eisenschitz utilizou várias vezes a palavra comunista e até citou o elogio de Brecht (tantas vezes usado por Straub) que explica que o comunismo é a coisa mais simples que há e a mais difícil de executar ( E...

Ao reler...

Traduzido para alemão por Paul Celan, o Breviário de Decomposição foi publicado pela Rowohlt em 1953. Quando foi reeditado pela Klett-Cotta, há oito anos, o director da Akzente pediu-me para o apresentar aos leitores da revista. É esta a origem deste texto. Ao reler este livro, que remonta a mais de trinta anos, procuro reconhecer a personagem que fui e que se esgueira, que me escapa, pelo menos em parte. Os meus deuses eram Shakespeare e Shelley. Continuo a ler o primeiro; o segundo, raramente. Cito-o para indicar por que tipo de poesia estava intoxicado. O lirismo desenfreado combinava com as minhas disposições: infelizmente apercebo-me dos seus vestígios em todos os meus exercícios dessa época. Quem consegue ainda ler um poema como Epipsychidion ? Enfim, eu lia-o com prazer. O platonismo histérico de Shelley repugna-me e à efusão, seja qual for a forma que apresente, prefiro agora a concisão, o rigor, a frieza deliberada. No essencial, a minha visão das coisas não mudou; o que...

Selfie XVI

Vim a pé desde a estação da Senhora da Hora até Matosinhos Sul. São 3,7 km, mas precisava de andar muito mais. Andar* é a minha forma de ser transcendente. * Ou traduzir Cioran, mas traduzir Cioran equivale a uma caminhada de vinte, trinta, cinquenta ou mais quilómetros.

Uma citação e duas notas

Mas o público de cinema adora os artifícios emocionais, diverte-se participando emocionalmente nos filtros artificiais, e não se pode deixar de compreender quem sai a correr de Diário de um Pároco de Aldeia pelo mesmo motivo que de Sleep (1964), de Warhol — são filmes pura e simplesmente demasiado «chatos». O Estilo Transcendental no cinema (página 138), de Paul Schrader.  Em Bresson e a sua personalidade , na página 157, directa ou indirectamente, Paul Schrader atira as seguintes classificações ao cineasta: estilista consumado, excêntrico, mórbido, hermético, estranho e obcecado com os dilemas teológicos, reaccionário cultural, revolucionário artístico, fanático religioso obsessivo, uma figura romântica, inquieta e torturada, forçado a viver as suas neuroses na tela, inadaptado, um neurótico suicida, génio excêntrico .  Na página 161, num só parágrafo sobre o desconcertante problema do suicídio nos filmes de Bresson, a palavra suicídio aparece quatro vezes, suicida-se ,...

Punhos cerrados II

Em Folhas Caídas , Kaurismäki mostra muito bem como é que são as relações de trabalho nesta grande época . E não é só nos supermercados e nas obras; aquela violência e sacanice também se passa nos escritórios modernos (redacções, ateliers, gabinetes, agências, etc., etc.), em frente aos computadores.

Punhos cerrados

Ligar o rádio de manhã para ouvir o noticiário começa a ser uma tortura. As palavras e os soundbites mais rançosos e poirentos esbarram nas paredes e explodem-nos na cara. O que fazer? O que fazer? Transformar os piores receios, angústias e fantasmas, em punhos cerrados. É o que há a fazer.
O último plano de Folhas Caídas liga directamente aos Tempos Modernos de Chaplin, isso é evidente. Mas também me lembrei de uma coisa que Jean-Marie Straub disse a respeito do bloco sobre o regresso do prisioneiro de Comunistas : que tinha vontade de filmar um par de namorados sem lhes mostrar os rostos.  E ali estão: ele de pé ela sentada, de costas, na varanda, virados para a rua.
Não tenho tempo para mais por isso, enquanto corto as cenouras e penduro a roupa, divirto-me a arranjar etiquetas para o filme de Kaurismäki: musical ( inclui participação do rei do karaoke ), filme irmão de Chaplin e do cinema mudo, manobras cinematográficas de intervenção política, estudos de azul e vermelho, homenagem prolongada a Ozu e Bresson, relatos de guerra, filme de coisas velhas que resistem um pouco, diálogos afiados, resgate de um rafeiro, filme de quem diz não sem baixar a cabeça, filme da tristeza desenganada,

Aki Kaurismäki e os cães

1. Chateado porque não aparece no diagrama do cinema transcendental de Paul Schrader (em contrapartida Andy Warhol está no eixo horizontal à direita e à esquerda).  2. Prepara-se para abandonar o livro e ler aquela revista (?) sobre a Bica Portuguesa.  Os cães, vê-se pelo olhar, são verdadeiros modelos bressonianos. Ela chama-se Alma (diz na plaquinha).

Ah, ah, ah!

Aki Kaurismäki, numa entrevista ao jornal , comenta assim o «sucesso» que o notável  Folhas Caídas tem tido um pouco por todo o lado: «Acho que as pessoas gostam, especialmente os críticos, porque é um filme curto, dura 81 minutos...»

Directamente do Quartel-General do Comando Supremo das Potências Aliadas

Para erguer a tese do estilo transcendental, Paul Schrader cita vários autores conceituados. Os nomes e os títulos das obras agrupam-se nas notas de rodapé. Gosto particularmente da nota 23 que surge na página 85:  A Divisão de Recursos Religiosos Culturais das Potências Aliadas assinalou: «O tipo de conduta que normalmente se exprime através das palavras "espírito japonês" é essencialmente Zen na sua natureza.» 23 23 William K. Bunce (ed.) Religions in Japan , relatório preparado pela Divisão de Recursos Religiosos e Culturais, Secção de Educação e Informação Civil, Quartel-General do Comando Supremo das Potências Aliadas, Março de 1948, Tóquio: Charles E. Tuttle, 1955, p. 90.

Lugares sentados

Não há lugares sentados no autocarro. Alguns passageiros viajam de pé. Um homem sentado começa a falar com outro. A conversa fiada das redes sociais, dos tablóides e da televisão: os «corruptos», os «ladrões», o «país a saque». Estão ambos animados, confortáveis, a flutuar na temperatura amena do ar condicionado. Os passageiros sentados em frente esticam as pernas, cruzam os braços e concordam: a «ladroagem» assim, os «gatunos» assado. Os que viajam de pé não falam. Agarram-se com força aos ferros; receiam uma travagem brusca ou uma rápida mudança de direcção.

O preço das coisas

Dois tipos falam de negócios no Piolho. Um jogador que vai ser transferido e render não sei quantos milhões. Outro que custou uma quantia faraónica e que nem sequer joga. A gestão dos activos que tem sido ruinosa. As opções de investimento que têm de ser mais ousadas. Etc., etc. O café e a meia torrada, felizmente, ainda custam o mesmo.

Passagem entre prédios

Ainda não tive tempo suficiente para ler as quase mil páginas d’  Os Últimos Dias da Humanidade  (devia haver uma baixa médica para resolver assuntos literários deste calibre), mas já deu para perceber que em tempos conturbados o mais importante é aprender a desaparecer numa passagem entre prédios .  GRITOS ENTRE A MULTIDÃO: “Mas que é que querem aqueles dois judeus além?” “Têm cara de também serem dos Balcãs!” “Só lhes falta o cafetã!” “São sérvios!” “Traidores!” “Porrada neles!” ( Os dois historiadores desaparecem num passagem entre prédios. ) ( Muda a cena .)

Palavras de outra ordem

Num dos seus discursos recentes, Pedro Nuno Santos disse: «O Portugal que queremos construir é um Portugal onde todos têm lugar , onde ninguém é esquecido, onde ninguém é invisível e fica para depois.» A referência ao Teatro Natural de Oklahoma é evidente. No cartaz junto ao Estádio do Mar, Mariana Mortágua é empurrada para a acção com a frase «não lhes dês descanso» — sem dúvida, uma variante de «vai e dá-lhes trabalho!».  São palavras fortes e necessárias. Espero que eles estejam à altura das citações.

Folhas caídas

O novo filme de Nuri Bilge Ceylan chama-se As Ervas Secas . O de Aki Kaurismäki é Folhas Caídas . O último de Victor Erice começa num velho jardim meio esquecido e intitula-se Fechar os Olhos . Também entre os mestres, há um vago perfume a fim de qualquer coisa.

Menear-se

Todos esses professores, Heidegger à cabeça, que vivem como parasitas de Nietzsche, e que acham que filosofar é falar de filosofia. — Fazem-me pensar nos poetas que imaginam que a missão de um poema é cantar a poesia. Por toda a parte o drama do excesso de consciência: trata-se de um esgotamento de talentos ou de um esgotamento de temas? Dos dois, sem dúvida: falta de inspiração que acompanha a falta de matéria. Desaparecimento da ingenuidade; muito malabarismo, habilidade , nas coisas importantes. O acrobata suplantou o artista, o próprio filósofo não é senão um pedante que se meneia . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Sobre Chantal Akerman

Imaginei tantas vezes a estreia de  No Home Movie.  Mas nunca assim...  Quero falar-vos de Chantal. Falar-vos de tudo o que me deu, tudo o que me ensinou, tudo o que partilhamos. Contar-vos como era radiante, inteligente, surpreendente e também divertida... Diz-se muitas vezes de Chantal que tinha princípios estéticos. Bom, eu acho que os princípios nos protegem, e Chantal não se protegia. Confiava no que estava para vir, sabia acolher o acaso.  Lembro-me de uma história que lança alguma luz sobre a sua forma de trabalhar. Durante a preparação de La Folie Almayer , ela precisava de um porto. A assistente perguntou-lhe se queria um porto grande ou um porto pequeno. Ela respondeu «um porto grande». Mais tarde, perguntamos-lhe se tinha a certeza que era isso que queria, porque talvez um porto pequeno fosse mais acolhedor. Recordo-me que íamos pela rua e Chantal estava ao telefone. Parou, bateu com o pé e disse «quero um porto grande, foi o que disse, não me peçam para e...

Funcionários

Malditas galinhas cegas às quais os grãos acontecem! Pedreiros cegos que põem tijolo sobre tijolo há milénios sem saber o que estão a construir! Eles são funcionários. Eles são colaboradores. Se um diz a , o outro diz b , e o terceiro c , e assim se forma a Opinião dominante; todos são função de todos, todos se servem de todos, todos são sempre servos - sugados pelo intelecto do vampiro, empurrados para baixo pelo Pensamento que cresce sobre eles, cada vez mais inantigível. Witold Gombrowicz, Diário (Vol. II).  Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.
1 de Janeiro de 1969  Fui passear entre Étréchy e La Ferté-Alais. Neve e nevoeiro, um nevoeiro tão suave que as árvores pareciam fumo imobilizado. Raramente vi uma paisagem tão poética. Tudo era irreal — e depois, por causa do gelo, as estradas estavam desertas.  Entrei num cafezinho em Villeneuve-sur-Auvers, onde ouvi uma canção americana (inglesa?) « Those were the days » que, pela entoação elegíaca, me comoveu mais do que seria de esperar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.