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Mensagens

Terminar é começar

Uma linha pode ter um princípio e um fim. Um círculo não tem uma coisa nem outra. O círculo é um movimento perpétuo. Como a Terra que gira em torno de si mesma e em torno do Sol. Como a lua que gira em torno da Terra e todas as luas que giram em torno dos planetas. Como todos os planetas que giram em torno de si mesmos e em torno do Sol. Toda a vida é circular. Eis a lei inescapável. Nascemos, vivemos, morremos e da nossa matéria surgirá outra vida, e desta outra ainda. Ou digamos que o fim precede o princípio, E que o fim e o princípio estiveram sempre ali Antes do princípio e depois do fim. E tudo é sempre agora. (T. S. Eliot, Quatro Quartetos .) O mundo gira sobre si mesmo, o mundo novo e o mundo velho, o mundo velho e o mundo novo, e todos repetimos o mesmo movimento. Giramos sobre nós mesmos, numa espécie de instinto de defesa, que inevitavelmente nos afasta do mundo. O mesmo acontece com as sociedades, as regiões, os continentes, a política. O círculo define uma fronteira...

341 - O peso mais pesado

E se, um dia ou uma noite, um demónio se viesse introduzir na tua suprema solidão e te dissesse: «Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai-te ser necessário recomeçá-la sem cessar; sem nada de novo; muito pelo contrário! A menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande e de indizivelmente pequeno, tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma ordem, segundo a mesma impiedosa sucessão... esta aranha também voltará a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!...» Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando esse demónio? A menos que já tenhas vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: «Tu és um deus: nunca ouvi palavras tão divinas!» Se este pensamento te dominasse, talvez te transformasse e...

Obras ricas em fosfato

Fechou as pastas e, desorientado, voltou a ceder à depressão. A fim de mudar a direcção das suas ideias, experimentou ler alguma coisa que o acalmasse e, na esperança de arejar o cérebro, recorreu a narcóticos literários, aquele tipo de livros que mais cai nas boas graças dos convalescentes e dos inválidos que não podem cansar-se com obras mais tetânicas e mais ricas em fosfato: os romances de Dickens. Mas estes volumes produziram um efeito contrário ao que ele esperava: as suas amantes castas, as suas heroínas protestantes vestidas até ao pescoço, andavam nas estrelas e não iam para além de um baixar de olhos, de um corar, de um chorar de alegria e de um apertar de mãos. Esta pureza exagerada logo o precipitou num excesso oposto. Joris-Karl Huysmans, Ao arrepio . Tradução de Daniel Jonas.

Of course he shot a fucking elephant

George Orwell’s biographer Bernard Crick lunched with the author’s widow, Sonia, at Bertorelli’s in London. They were talking about “Shooting an Elephant,” or, more accurately, about whether Orwell really did shoot an elephant in Burma. “‘Of course he shot a fucking elephant,’ Sonia shouted. ‘He said he did. Why do you always doubt his fucking word?’” Because, Crick replied, “he was a writer, not a bloody cub reporter.” Geoff Dyer, Nothing But - The untruths of memory.

Explicação do mundo

Na arqueologia mexicana cada estátua, cada objecto, cada baixo-relevo, significam alguma coisa que significa alguma coisa que por sua vez significa alguma coisa. Um animal significa um deus que significa uma estrela que significa um elemento ou uma qualidade humana e assim sucessivamente. Estamos no mundo da escrita pictográfica, os antigos Mexicanos, para escreverem, desenhavam figuras e, mesmo quando desenhavam, era como se escrevessem: cada figura apresenta-se como um enigma a decifrar. Italo Calvino, Palomar . Tradução de João Reis.

Ouro, jóias e festas

Existe um princípio elementar no marketing que afirma o seguinte: um produto deve «prometer» mais do que aquilo para o qual foi feito, deve proporcionar uma «experiência». Quer dizer, se um consumidor acreditar que ao comprar um gel de duche está a comprar, sobretudo, uma maneira nova e mais excitante de tomar banho, o marketing e a publicidade foram eficazes. Ao assistir a muito do teatro que se faz hoje entre nós, fico com a sensação de que uma boa parte dos criadores acompanha este princípio de proporcionar uma «experiência» ao público. Claro que o teatro é, por definição, uma «experiência». Mas que «experiência»? Parece-me que vivemos um momento em que se recorre a todos os truques - bons e maus - para transformar qualquer peça de teatro numa «experiência espectacular». Por vezes, parece que a relevância de uma peça se mede pela intensidade das gargalhadas e dos aplausos do público, como num programa de televisão emitido em prime time , mesmo que a peça seja o mais ibseniano dos dr...

Em defesa das coisas inúteis

Perante tais considerações é possível objectar que, enquanto a investigação tem sempre em mira uma utilidade concreta, o mesmo não pode ser dito do estudo, que, enquanto representa uma condição permanente e quase uma forma de vida, dificilmente pode reivindicar uma utilidade imediata. Aqui é preciso inverter o lugar comum segundo o qual todas as actividades humanas são definidas pela sua utilidade. Por força desse princípio, as coisas evidentemente mais supérfluas estão hoje inscritas num paradigma utilitário, recodificando como necessidades actividades humanas que sempre foram feitas apenas por puro prazer. Deveria ser claro, de facto, que numa sociedade dominada pela utilidade são justamente as coisas inúteis que se tornam um bem a salvaguardar. A essa categoria pertence o estudo. Aliás, a condição estudantil é para muitos a única ocasião para fazer a experiência, hoje cada vez mais rara, de uma vida que se subtrai a fins utilitários. Por isso, a transformação das faculdades de human...

Da natureza dos coelhos

Quando o Manuel Resende regressou a Portugal, depois de longos anos emigrado em Bruxelas, instalou-se numa casa nos arredores de Santarém. Em volta da casa havia um terreno de lavoura e a ideia do Manuel era dedicar-se à agricultura. Ainda em Bruxelas, tinha estudado métodos de cultivo modernos, sustentáveis e amigos do ambiente, que dispensavam os químicos. Os progressos agrícolas do novel campino foram lentos, mas encorajadores. Nessa altura, as nossas conversas incluíam beringelas, tomates, pepinos e alfaces. Tudo correu pelo melhor até ao dia em que apareceram os coelhos. Dezenas e dezenas de coelhos. Famílias inteiras de orelhudos arrasaram a delicada e biológica agricultura, e devoraram tudo até ao último pé de alface. O Manuel Resende nada fez para os impedir: roer beringelas sem químicos faz parte da natureza dos coelhos. Hoje, é lançada em Lisboa a Poesia Reunida , do Manuel Resende. Hoje, é o dia em que os coelhos reaparecem para lhe devorar a horta. Nenhum poema, nenhum v...

A origem da couve

No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios. – És bela. – Sou – disse a rosa. – Bela e feliz – prosseguiu o diabo. – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas… – Mas? – Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detêm sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco… A rosa – tentada, como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura. Passou o bom Deus, depois do romper da aurora. – Pai – disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil? – Seja, minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo. E o mundo viu então a primeira couve. Rubén Darío, Curiosidades Literárias e Outros Contos.  Colecçã...

É tudo verdade

Leio numa revista brasileira que, dentro de dias, abre mais uma edição do festival internacional de documentários É Tudo Verdade , no Rio de Janeiro. Em Paris, decorre o festival Cinéma du Réel . Entre nós, o Porto/Post/Doc classifica-se a si mesmo como um “festival de cinema do real” e usa o slogan «As nossas histórias são reais». Curiosa esta recorrente necessidade de afirmar o documentário como o género cinematográfico do «real» e da «verdade». Há aqui uma espécie de horror à ficção que contradiz justamente o tipo de filmes que têm sido premiados - e bem - nestes certames. No Porto/Pos/Doc, por exemplo, que é o caso que conheço melhor, os mais belos filmes do festival revelam sempre um olhar , uma montagem e uma escolha pessoalíssima dos seus autores. Não sei se a «verdade» e o «real» têm alguma relevância para o caso. Há certamente uma contaminação do documentário pela ficção. Mas esse jogo, entre criador e espectador - o que é verdade e o que é ficção? - é a parte verdadeirame...

Dentes portugueses

Adeus, adeus, meus dentes! Só mais outro dia, E vamos dirimir esta pugna entre nós, Divórcio que a dentista estrangeira oficia Num desconsentimento total e feroz. Essa fidelidade tão à portuguesa, Feita de tanto golpe baixo, tantas fintas, Com que me temperastes o prazer da mesa, Fruto de fero amor, tão vero e troca-tintas, Ficai com ela, que eu dispenso despedidas. A culpa é toda minha, devo confessar Que não tinha dinheiro e descurei medidas Evidentes no plano mais elementar. O remorso católico arde-me feridas No sítio que Calvino gosta de brocar. Manuel Resende, Poesia Reunida .

Um Fausto

Dois homens, pai e filho, ambos velhos. Outrora, grandes glórias da ciência e da academia. O pai, de noventa anos, praticamente esquecido pela sociedade, o filho, de setenta, a caminho disso. O pai lamenta-se de não ter morrido antes de cair na implacável espiral de decadência provocada pela velhice. O filho ainda acredita que é capaz de lutar contra ela. O pai aconselha o filho a matar-se enquanto há tempo, enquanto se não transforma num “semimorto” e não começa dentro dele o processo de nascimento do “monstrozinho”. O filho ainda pode aspirar à imortalidade, diz o pai: só alguém que morre no momento certo, no auge da glória pública, pode viver para sempre. “Mata-te”, repete ele ao filho, apontando-lhe a bengala (mais simbólica do que concreta). O filho, por sua vez, diz sentir-se bem, “completamente vivo”, com ânimo para aproveitar a vida e a fama, e afastar o terror da decrepitude e decadência. O pai insiste para que o filho se suicide com uma ampola de cianeto. O filho, calma e pac...

O fantasma do cavalo de Turim em Ödön von Horváth

CAROLINA: Isto é um Austro-Daimler? RAUCH: Acertou! Bravo! CAROLINA: O meu ex-namorado conduziu um Austro-Daimler. Sabe, era chauffeur . Um homem esquisito. Olhe, há três meses, quisemos os dois ir dar um passeio ao campo; pois não é que teve uma bulha dos diabos com um cocheiro porque ele tinha dado chicotadas no cavalo? Por causa de um cavalo, calcule! Quando ele próprio é chauffeur ! Uma pessoa tem de dar valor às coisas. Ödön von Horváth, Casimiro e Carolina . Tradução de Maria Adélia Silva Melo.

O que se passa naquelas montanhas?

“Quando a morte entra no quarto, a poesia é uma idiotice”, diz Ebru Ojen, a narradora de Meteors , numa espécie de eco longínquo da famosa frase de Adorno sobre a impossibilidade de escrever um poema depois de Auschwitz. O mais intrigante desta frase é que o filme de Gürcan Keltek é exactamente o contrário do que ela enuncia: Meteors  é uma obra terrivelmente bela sobre a guerra. A explicação para isto talvez resida no facto de não existirem explicações claras neste filme. O que se passa nas remotas montanhas do Curdistão, na fronteira entre a Turquia e a Síria? O que se passou durante a campanha militar turca contra os curdos, em 2015? Não estou certo de que o filme responda a esta pergunta. Na verdade, duvido que o filme queira responder ao que quer que seja. O que vemos, desde o primeiro plano - a lua crescente a desvanecer-se numa poeira densa, que também pode ser nevoeiro ou nuvens - é uma sucessão de imagens de uma beleza esmagadora. Cenas de caça nas montanhas ne...

O coiso

CALONICE (...) Conta lá que assunto é esse que tanto te preocupa. LISÍSTRATA Eu já conto. Mas, antes de falar, vou-vos só fazer uma perguntita, coisa sem importância. CALONICE À vontade. LISÍSTRATA Dos pais dos vossos filhos vocês não têm saudades, quando estão mobilizados em campanha? Que eu bem sei que todas vocês têm o marido fora. CALONICE Isso é verdade. O meu homem, coitado, há cinco meses que está ausente, lá para a Trácia, de sentinela ao... Êucrates. MÍRRINA E o meu, já lá vão sete meses completos, em Pilos. LÂMPITO O meu, mal está de volta do regimento, lá deita outra vez mão ao escudo e põe-che a andar. LISÍSTRATA E nem mesmo amantes nos sobra para amostra. Que desde que os Milésios nos tramaram, nem sequer uma coçadeira de coiro de dois palmos de comprido eu vi, que nos desse ao menos um triste consolo. Será que vocês estariam dispostas, se eu arranjasse uma artimanha, a juntarem-se a mim para acabar com a guerra? CALONICE Bolas, eu estava! Nem que ...

Nunca mais

GUIL (tenso. Irritado progressivamente ao longo da pantomina, e do comentário) Mas o que é que tu sabes da morte? ACTOR É aquilo que os actores fazem melhor. Têm que aproveitar o talento que lhes foi dado, e o talento deles é: morrer. Sabem morrer heroicamente, comicamente, ironicamente, lentamente, repentinamente, abjectamente, encantadoramente, ou de uma grande altura. (...) GUIL É só o que sabem fazer - morrer? ACTOR Não, não - também matam maravilhosamente. Na verdade, alguns deles matam melhor do que morrem. Os outros morrem melhor do que matam. São uma equipa. ROS E quem é quem? ACTOR Isso não tem grande importância. GUIL (medo, derisão) Actores! os mecânicos do melodrama barato! Isso não é morte! (Mais tranquilo) Vocês gritam, sufocam, caem de joelhos, mas isso não traz morte a ninguém - não apanha ninguém desprevenido para lhe começar a sussurrar dentro do crânio e a dizer - "Um dia vais morrer". (endireita-se) Vocês morrem tantas vezes, como é que podem est...

Comer com os olhos

La Mélancolie des Dragons , de Philippe Quesne é uma história de encantar, um conto de fadas que se podia chamar A Branca de Neve e os Sete Metaleiros . Mas a peça é muito mais do que isso. Quesne encena a construção de um poema. Ou melhor, encena a receita para fazer um poema. Como numa lição de culinária, mostra com arte e paciência, um após outro, os ingredientes essenciais: água, vento, fumo, bolas de sabão, neve, árvores, a forma das letras, um projector, um computador, sacos de plástico e um escadote. Não há truques nem segredos especiais. O resultado depende da qualidade dos ingredientes, dos gestos certos, do tempo dedicado a cada tarefa e, como todos os cozinheiros sabem, da bonomia e amor pela arte. A beleza, como sempre, está na mais completa simplicidade. O poema de Quesne é para comer com os olhos.

Corpo ou fantasma?

Thomas toca com os dedos o rosto do homem morto, abandonado no parque, sobre a erva. Thomas tem de ter a certeza de que o corpo é real, de que não é um artifício da sua imaginação. Ele toca-lhe para se assegurar de que não foi engolido pelo seu próprio sonho, de que não foi traído pelos truques da sua própria arte: ele precisa de ter a certeza de que ainda conhece o chão que pisa. Num filme construído a partir de gestos, movimentos, deslocações, este é o gesto mais significativo de todos. A dúvida conduz à verdade, mas também à ficção. Na manhã seguinte, o corpo já não está no local e não há nenhum indício de que alguma vez lá tenha estado. Desapareceu como se nunca tivesse existido. O momento em que Thomas toca no corpo, como S. Tomé  (Saint Thomas, em inglês), é o exacto momento em que a realidade e a ficção se tocam, em que todas as fronteiras se dissipam. Thomas tocou num corpo ou num fantasma? Esta é a chave de Blow Up .