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Mensagens

Disposições morais

Voltamos sempre, ou pelo menos eu volto muitas vezes, à cena final d’ O Carteirista . Talvez seja mesmo assim, talvez seja preciso tempo e caminhos estranhos para chegar onde sempre estivemos, uma espécie de andar sem sair do sítio. Nem todos os problemas pedem uma resposta, mas sim uma disposição.

Algures a meio

Em O Sabor da Cereja , de Kiarostami, há um personagem que procura desesperadamente alguém que o ajude a morrer, numa espécie de suicídio assistido. Em 3 Rostos , de Panahi, há um personagem que procura desesperadamente alguém que o ajude a viver, simulando para isso um suicídio. Ambos os caminhos são estreitos. Só passa um personagem de cada vez. Um desce a encosta escarpada, o outro sobe. E algures a meio, no coração misterioso do mundo, o destino dos dois funde-se, como no conto do Virgilio Piñera.

Gabinete de Patentes, Lda

Em rigor e ao contrário do que apregoa, o mercado é preguiçoso e não se ajusta aos nossos desejos mais profundos. Há por aí tantos dispositivos tecnológicos que não servem para nada e outros, que nos fazem uma falta tremenda, ainda não existem. Neste momento — posso afirmá-lo com absoluta certeza — é urgente a invenção de um detector de arte contemporânea. Já pensei no assunto e tenho uma ideia para o protótipo: deve ser um objecto portátil e discreto feito de material nobre (titánio ou zircónio são boas hipóteses), com um olho a meio como os ciclopes e um rasgão por onde sai uma tira de papel, semelhante às mensagens dos bolinhos de sorte chineses, com o veredicto. O procedimento é fácil. Exemplo um: vamos pela rua fora, encontramos um volume indefinido debaixo duma arcada, apontamos o detector e, se for uma obra de arte, paramos para observar e tecer alguns comentários elevados. Se for um tipo que está para ali a dormir, “é a vida” e seguimos caminho. Exemplo dois: deparamos

Querido Ozu,

o Japão está a ganhar a guerra.

Particular orgulho

Mas o filho, João Brito, também editor, diz que teve um particular orgulho em ter publicado o monumental “Bela do Senhor”, de Albert Cohen, com tradução de António Pescada, e o desgosto de o ver fracassar. Há livros que são como ervas espontâneas, existem por si próprios, são necessários e é isso que importa, encontram sempre uma brecha, uma saída, o êxito. A “Bela do Senhor” não fracassou nem poderá nunca fracassar. Há quanto tempo foi? 20, 25 anos? Estava de férias em São Pedro de Moel e andava a ler “Bela do Senhor” (antes ou depois do “Trincapregos”?) Nessa altura nem sequer tinha carro, levei-o na mochila, na camioneta, nos braços, para a praia e para a esplanada de um café velho junto às rochas, sobranceiro ao areal. O livro dava nas vistas pela espessura (900 páginas) e pela capa amarela. Lembro-me de uma rapariga dizer ao namorado, alto e com enjoo, “Ei, já viste aquele calhamaço!?” Ela não fazia ideia da minha monumental sorte.

Odisseia

Retomo o fio à meada e volto ao personagem de Joan Cornellà, « aquele gajo aleatório da vida real que finge que tem uma vida ok, mas que está a vender produtos de merda de bancos.» O gajo que é segurança num supermercado , o gajo que trabalha na fábrica da Renault , o gajo que não tem onde cair morto , a gaja que procura desesperadamente um amor . A gaja, o gajo, eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas. Todas as gajas e gajos que ficcionam vidas excitantes nas redes sociais como um antídoto para a doença negra dos dias. Todas as gajas e gajos que sempre ficcionaram uma outra vida como um antídoto para a doença negra dos dias. Hoje, ontem, há vinte anos, há cem anos, há milénios. E amanhã e depois, e daqui a mil anos. O «gajo aleatório da vida real» tem uma história. É Ulisses ou Telémaco. A gaja é Calipso, Circe, Atena ou Penélope. Tantas Penélopes e tantos Ulisses. Tantos quantos os homens e as mulheres que «atravessaram este vale árido», amarrados a uma infelicidade, no esforço ridí

Como uma planta robusta se vira para o sol

Lembrava-me do sentimento de quando, há alguns anos, li “O Mar, o mar”, ou ainda mais afastado com “Henry e Cato”; quer dizer, sabia bem o que me esperava ao ler “O sino”: exaltação. E não basta escolher e seguir um dos sentidos da palavra; é um e depois afinal é outro e ficamos nessa indecisão, nunca estamos seguros e isso já faz parte da experiência, do distúrbio. Através de todo o livro parece que se ouve uma música ( de onde vem esta música? do ar ou da terra? ) e ao mesmo tempo: há uma tempestade com chuva e trovões (não estou certa dos trovões), uma morte, um desatino mental, um sino que é retirado dum lago e um sino que cai num lago, o próprio lago cheio de zonas obscuras, três sermões divergentes, simetrias feitas e desfeitas a alta velocidade, acidentes, um cão chamado Murphy, as habituais dificuldades em lidar com o amor e outras mais inconfessáveis — e é tudo tão forte que está para além do medo. Porque Iris Murdoch transforma o que é terrível numa coisa imensamente viva e

Cabras, bois e porcos

— Quer-me parecer — disse ele — que a senhora Greenfield é aquilo a que popularmente se chama uma cabra. Tenho muita pena de te dizer isto, mas é preciso que nos habituemos a chamar os bois pelos nomes. Só podem resultar sarilhos intermináveis se não o fizermos. — Tu dizes que não ouviste barulho nenhum durante a noite? — perguntou Michael. — Absolutamente nada. Mas ultimamente tenho andado tão cansado que durmo como um porco. Nem a trombeta do Juízo Final me acordaria; teriam de mandar cá abaixo um mensageiro especial. O Sino, Iris Murdoch, Relógio d’Água, julho de 2016, páginas 229 e 230

Real e perfeito

Os quadros comoveram sempre Dora. Mas hoje a comoção que sentia era de natureza diferente. Ficara maravilhada, e com uma espécie de gratidão, pelo facto de continuarem ali, e o coração enchia-se de amor pelos quadros: pela sua autoridade, pela sua maravilhosa generosidade, pelo seu esplendor. Ocorreu-lhe então que aqui estava algo de real e algo de perfeito. Onde ouvira ela dizer qualquer coisa acerca de a perfeição e a realidade coexistirem no mesmo lugar? O Sino, Iris Murdoch, Relógio d’Água, julho de 2016, página 190.

Aquele gajo aleatório

O rosto sorridente do teu personagem principal tornou-se quase o teu cartão de visita, tendo chegado a significar um sentido de desespero, negação e mania no teu trabalho. Ele é baseado numa pessoa real? O meu personagem não é baseado em ninguém específico, mas mais numa mistura de rostos. Podes ver esse tipo de sorriso nas imagens gráficas do Aphex Twin, em alguns personagens do Goya e naquele gajo aleatório da vida real que finge que tem uma vida OK, mas está a vender produtos de merda de bancos. Joan Cornellà.

Close-up

A origem da revolução

O [café] "Rã Verde" possuía um certo passado histórico, porquanto se dizia que ali nascera a revolução de 1848. Tal era, noite após noite, o tema da conversa dos frequentadores habituais, que nas diversas mesas se interrogavam se a revolução não teria sido consequência do vinho ligeiramente ácido que o patrão daquela época servia aos seus clientes, ou se teria sido devida a outras causas. Gustav Meyrink, A Noite de Walpurgis . Tradução de Maria Teresa Antunes Cardoso.

"Isto é arte"

Obra de arte em galeria lisboeta mobiliza polícia, bombeiros e INEM
Há um momento em Vida e Destino , a obra-prima do escritor soviético Vassili Grossman, em que o leitor percebe que o protagonista Viktor Strum não é o "herói" do romance, mas apenas mais uma das suas vítimas. Um físico nuclear talentoso e inteligente, Strum vê o valor objectivo do seu trabalho oscilar ao sabor de caprichos ideológicos, e as suas pesquisas sobre mecânica quântica são publicamente vilipendiadas por não serem "reconciliáveis" com a doutrina do materialismo dialéctico. O processo era típico e tipicamente racional. O dissipar de recursos humanos valiosos era instrumental para a sobrevivência do sistema. Se alguém mostrava qualidade suficiente para ser útil ao país, o raciocínio era que mais tarde ou mais cedo mostraria qualidade suficiente para ser uma ameaça ao regime. Só a mediocridade era considerada inofensiva e, portanto, tolerada; o talento - qualquer talento - tinha de ser controlado, ou neutralizado. Isto pode parecer uma patética subordinação

Literatura pesada

Depois de alguns desencontros, consegui trazer “O Sino”, de Iris Murdoch para casa. A última pessoa que requisitou o livro na biblioteca devolveu-o antes do prazo, creio que não o leu até ao fim. Compreendo a desistência; os romances de Iris Murdoch são tremendamente maciços. Observar a pequena comunidade laica anglicana de Imber Court ao microscópio pode revelar-se um exercicio demasiado pesado. Mas é isso que me atrai na escrita de Murdoch: a densidade, os tormentos morais das personagens — ah, como elas sofrem e como, apesar de tudo isto, talvez até por causa de tudo isto , é bom viver.

Observações avulsas sobre a boavista #4

Há vários hotéis na avenida da Boavista e nas ruas vizinhas, mas são todos insípidos — acho que a definição que se usa nestes casos é “estilo internacional” (ver Playtime , de Tati). Onde eu gostava de passar uma noite, ou até várias noites, era na sede do Partido Comunista. O que é que se passa naquelas habitações por cima da zona comum (nem sequer sei se esta é a nomenclatura correcta — sala de reuniões, de trabalho?), por trás dos estores e das cortinas? Como é que se acede a esses andares? Quem vive lá? Durante quanto tempo?

Película aderente

— O Walter Benjamin está quase todo em saldo na Flâneur . — Não deve vender muito… — Talvez. Mas é estranho, não achas? — Estranho? — Sim, estranho. Afinal, é um dos pensadores do século XX mais citados do mundo. — Do mundo ocidental é, com certeza. Não há ensaio, artigo, nota de rodapé, que não inclua uma citação de Walter Benjamin. — O mais citado, sim, mas será o mais lido? — E os que o leram, tê-lo-ão compreendido? — Li tudo o que está traduzido e há muitas ideias que não compreendi. A maioria, devo confessar. — Sim, há qualquer coisa difícil de definir e que nos impede de chegar ao verdadeiro sentido das suas palavras. Uma espécie de falsa transparência. — Como se os textos estivessem envolvidos em película aderente. Consegues ver o que está por baixo, mas não lhe tocas verdadeiramente.

18

Cada rua de Paris é como uma noveleta cheia de incidentes e isenta de moral. Também há ruas tão pequenas que parecem coexistir, na sua materialidade de pedra e cimento, com a vergonha e a modéstia próprias da sua condição de notas de rodapé urbanístico. Essas não se confundem com uma ficção: são frases, interjeições, fragmentos, aparas de madeira, trocos esquecidos no bolso do casaco. As próprias fachadas, os algerozes, as portas, os marcos de correio, os sinais de trânsito, existem numa harmonia cuidada, mas sobretudo eloquente. Os objectos nas montras das lojas também servem com naturalidade de pasto para os apetites narrativos que se encontrem à solta, para todas as ocorrências da mais poderosa pulsão de todas, que é a de fazer sentido e de narrar. Rue Ernest Cresson. Alimentação geral. As cores vivas das latas de bebidas, alinhadas como um exército. Tomates, cenouras, couves-de-Bruxelas, chalotas. Alguns passos mais adiante: cabeleireiro para damas e cavalheiros. Frascos de lo