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Mensagens

Acção paralela

«O activismo conhece a lógica e o tempo da revolta, mas sabe que passou o tempo da revolução. Por vezes, esses movimentos assemelham-se mais a jam sessions do que a manifestações que guardam a memória das grandes palavras de ordem que se julgavam perfomativas.» É preciso ler muito, pensar muito, fazer ligações esquisitas e mais não sei o quê, para escrever estas crónicas. Admiro tudo isso, mas o que mais gosto no António Guerreiro é a capacidade para perceber o ritmo do nosso tempo. Estes textos breves — e tão solitários — têm qualquer coisa de transe xamânico.

Para nada! Para nada!

FIOR: Como o tempo corre! Considerem, por exemplo, aquele banco. Parece imóvel, mas como corre! Corre e corre... mas para onde? Hum? Para onde? Em que direcção, porquê? Tudo corre e corre, meu Deus! HUFNAGIEL (canta) : Oh, um galope, galope, galope! Chicoteá-lo uma vez, chicoteá-lo outra vez. (...) Não costumo cair de uma sela. Não, não costumo cair de uma sela. O galope é a minha especialidade! Permita-me, mestre, não partilhar da sua inquietação. Aquele banco? Correr? Galopar? Não saber aonde se vai? E então? Monto, corro, galopo! Não costumo cair de uma sela! (...) FIOR: Galope... sim, sim... galope... Como é fácil montar um cavalo, correr, correr... Mas pior que a corrida de um cavalo É a ideia de imobilidade... Galope imóvel! Galope pleno que não se mexe, mas corre, corre... Toca no banco. Para onde vais, banco? Porque corres como um louco? Hum? Para onde? Porquê? Oh, tudo, tudo, tudo, árvores e pedras, Casas e igrejas, terra, céu, tudo Como cavalos galopando! Mas eu não me mover

Lagom

«… o único segredo da felicidade é renunciar a tudo.» (Cristina da Suécia)  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (escrito em maio de 1968) Volto aos Cadernos de Cioran como quem volta a casa ou, pelo menos, a um lugar conhecido mas estranho ao mesmo tempo. Se ele soubesse deste (nem sei bem que palavra escolher, talvez enlevo com sotaque açoriano a meio do atlântico?) pois sim, enlevo ou alegria, era capaz de ficar um bocado chateado e um bocado vaidoso. Estou em junho de 1968 — temos praticamente a mesma idade.

Very strange

Segundo o catálogo , o único livro da Deborah Levy existente na Biblioteca Almeida Garrett é  Coisas que não quero saber . Então, O homem que via tudo , que encontrei por acaso numa das estantes, é uma espécie de espectro. Esta constatação circunstancial já é uma crítica literária — sem sujeito e, apesar de se tratar de uma imagem intangível, material e elucidativa.

Não é assim tão simples

“Tenho de falar inglês de um modo que não revele a minha personalidade”, respondeu. “A tradução é assim. A personalidade do tradutor tem de se esconder.” “Estás a dizer que te escondes dentro de todas as línguas que traduzes? Como alguém se esconde numa floresta? Encolheu os ombros. “Não é assim tão simples.” Depois riu-se. O homem que via tudo, de Deborah Levy. Tradução de Alda Rodrigues.

Não são dali

Uma plateia de múmias a olhar para um palco cheio de pessoas vivas. É o que sinto quando vejo as peças de Lia Rodrigues e Marlene Monteiro Freitas. Aquelas peças não são dali; são da rua, das praças e dos bosques, deste e de outro tempo, deste e do outro mundo. Dali, dos teatros com talha dourada, das cadeiras de veludo, dos palcos fechados, é que elas não são.

Andar com Claudio Magris

Um dia havia de chegar ao Claudio Magris. Da última vez que fui à biblioteca, trouxe  um livrinho de textos instantâneos  que é mais ou menos como combinar um café com um desconhecido numa cidade estranha a ver no que dá. Na página 25, percebi que ele é fã de Naruse.

E assim por diante

Da janela do Candelabro, observo um tipo que está na esplanada ao lado e que acaba de pedir vinho. O empregado traz a garrafa, serve uma pequena quantidade no fundo do copo e espera que o cliente prove. O tipo é como eu: de vinho, conhece apenas o rústico prazer de beber. Seja como for, compõe o ar mais digno possível, leva o copo à boca, bebe um bocadinho, fixa um ponto vago numa parede do largo e, finalmente, faz que sim com a cabeça. O empregado já serviu milhares de tipos como este. Ambos sabem que todos estes gestos são inúteis. Mas alguém pode estar a olhar, talvez de uma janela próxima. É preciso repetir os gestos outra vez. E outra vez. E outra vez. E assim por diante.

O resto é vício

No dia 1 de Outubro de 1936, Beckett escreveu no diário: «O essencial não é saber se estamos certos ou errados — isso não tem importância. O importante é desencorajar o mundo a preocupar-se connosco. Tudo o resto é vício.» Nesse momento, Robert Walser sentiu um sopro no pavilhão das orelhas e um repentino sobressalto no coração.

Avisem os «criativos»

(...) In his view, this is perfectly natural, since “creativity” was an economic, not aesthetic, notion to begin with. “The concept of creativity,” he concludes, “never actually existed outside of capitalism.”

Tu sabes, tu és uma mulher.

Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles é um objecto de muitas perplexidades: endógenas, históricas, cinematográficas, e outras ainda mais variáveis pois prendem-se com as características de quem assiste à projecção, como se o filme nos convocasse para qualquer coisa. Ainda antes da primeira imagem, o título identifica e regista Jeanne numa morada: cais do comércio, 23 . Mais do que nomear, é apresentada uma sinopse plena de significados. Mas as perplexidades continuam: como é que uma miúda de vinte e cinco anos consegue ter uma visão tão precisa e profunda do quotidiano de uma mulher de meia idade? Como é que ela sabe a este ponto? Como é que consegue detalhar cada movimento do corpo de Delphine Seyrig e ao mesmo tempo deixar na sombra tudo o que se passa na cabeça. Quando a actriz pede explicações 1 , Chantal diz que ignora o que essa mulher pensa, apenas conhece os seus gestos. Talvez seja este avançar teimoso no não saber, esta decisão de afrontar um enigma, que t

Essência-spa

Por falar em programadores , o Festival Dias da Dança enviou para os espectadores o email que aqui reproduzo.  Não ignoro que, nos tempos que correm, os programadores e directores artísticos estão sujeitos, como qualquer assalariado, à terrível ditadura dos números. O «sucesso», no seu caso, mede-se pela quantidade de espectadores, partilhas ou likes nas redes sociais. Mas será que para chegar a esse tal «sucesso» é preciso recorrer à linguagem mais manhosa e infantil da publicidade? Os programadores querem formar públicos ou bandos de consumidores idiotas?

Peter Greenaway

Ontem à noite, vimos The Draughtsman's Contract . O filme continua fresco como o sumo da romã que Mrs. Herbert abre depois de fazer amor pela última vez com Mr. Neville. O que aconteceu para que Peter Greenaway tenha sido varrido das salas e da cabeça dos programadores?

Fish and lingerie

DEBORAH LEVY — My father is Jewish, and his parents were Lithuanians who came to South Africa and owned a fish shop. And then my lovely grandmother Leah decided that she stunk of fish and that she would go into lingerie. I’ve always loved that mix of fish and lingerie.
(...) E diria ainda (por omissão, ou demarcando  o espaço do proibido) como subverter  as instruções. Como fazer do pensamento  carne, da alma olhos, e o resto.  Mas um livro,  uma forma física de literatura. Madalena de Castro Campos , woman as idea as idea

Ganância

Trabalho há mais de 30 anos, passei por cerca de dez pequenas empresas e vi de tudo e era quase tudo mau: gajos orgulhosos de serem cabrões, esquerdistas a fazerem requisições laborais, meninos da mamã a não entregarem os impostos retidos ao Estado, tipos a roubarem descaradamente os outros sócios e os trabalhadores, senhoras de bem a pedirem reduções de salários para fazer face à crise mas a meterem o seu dinheiro intacto na carteira. Suspeito que acontece o mesmo na questão das rendas. Não são apenas os fundos e os grandes proprietários que são gananciosos. É esta classe média que à semelhança do Grão-Vizir Iznogoud quer ser califa em lugar do califa.

«recuso a lógica, a certeza, o equilíbrio...»

Quando era adolescente, apaixonei-me pelo Glauber Rocha. Lembro-me de usar imagens dos seus filmes — nesse tempo longínquo eram recortes e fotocópias — nos trabalhos de filosofia. Escrevia pouco, não  faço ideia que disparates terei escrito — provocações tontas.  Mas ontem, ao rever Terra em Transe , percebi a ligação profunda: foi Glauber que me ensinou o significado de dionisíaco (e não Nietzsche).