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Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2021

Na Rua das Lojas Escuras

Para além do mistério amnésico do narrador, Patrick Modiano entretém-se a desvendar as ruas de Paris. Logo na primeira página, por motivos paralelos à acção principal, surge a rue Vital, depois nunca mais acabam: rues ,  quais ,  avenues ,  boulevards , places , etc.. (Nota: no fim, arrumar em literatura topográfica, ao lado do Alexandre Andrade e dos mapas.) Gostava de ler o livro em Paris, em movimento — seguindo o narrador, parando nos cafés, restaurantes e hotéis mencionados. (Nota: criar um novo tipo de leitura ou crítica: em marcha, de preferência, lenta.) A alternativa pobre é usar o google maps . (Aqui apanhei um tipo a transportar uma escada numa mota e alguém colou um coração na placa com o nome da rua, pas mal .) Até agora, o meu capítulo preferido é o sexto, sobre Galina, conhecida por «Gay» ORLOW .  Gosto dele pela amplitude geográfica (alongar) e pelo estilo seco (recolher).  Também porque tem este parágrafo  (nunca citado na operação Marquês...

Observações avulsas sobre o bonfim #27

Papoilas junto às escadas que vão dar às Eirinhas (lá no alto). Uma tomada de electricidade na parede exterior da Casa das Artes do Bonfim.  Dois cartazes da exposição da obra gráfica de Francis Bacon nas paragens do autocarro. Os miúdos da Soares dos Reis. Homens de fato protector com capuz a retirar placas de amianto nas traseiras (antes da construção da ESAP). 

Census

A certa altura, o inquérito do Census pede uma resposta para a seguinte questão: «Usando a língua em que habitualmente se expressa, tem dificuldade em comunicar com os outros, por exemplo compreendê-los ou fazer-se entender por eles?» As opções são quatro: a) Não, nenhuma. b) Sim, alguma dificuldade. c) Sim, muita dificuldade. d) Não consigo compreender os outros ou fazer-me entender. Hesito. Não sei o que responder. Os técnicos do Instituto Nacional de Estatística conseguiram resumir a história da humanidade e um dos mistérios da existência numa pergunta do Census. Sinto-me como um daqueles bichos que roem o próprio rabo para escapar duma armadilha. Avanço para a próxima questão sem responder.

E depois.

(...) Ou talvez a própria vida seja uma espécie de arte de má qualidade. Não tem enredo propriamente dito e os temas são arbitrários e confusos. Uma história vai decorrendo e depois é abandonada e depois as personagens reaparecem e depois morrem sem razão aparente e sem seguir uma ordem dramática particular.  E temos tantas vozes interiores que nos dizem o que devemos pensar, o que devemos fazer, onde devemos ir. É como se houvesse demasiados argumentistas a trabalhar a noite inteira, como os autocarros vazios que circulam pela cidade durante a noite, sem passageiros. Como que em piloto automático.  E depois, por baixo disso tudo, está o subconsciente. Sempre a tentar comunicar. Mas o problema é que não pode usar palavras. Não conhece nenhuma palavra. Por isso mostra-nos coisas. Vês este azul? O que é que te faz lembrar? E uma pessoa pode passar anos a tentar decifrar estas mensagens.  E depois há os buracos da linguagem. Cá está um. Vou esconder-me aqui durante alguns mi...

Os Vermelhos

- (...) Estes Vermelhos, e os da Confederação Geral do Trabalho, e quejandos... porque não fazem a sua revolução? Porque temem o resultado. Não têm medo de enforcar todos os capitalistas e outros que tais; mas assustam-se à ideia de pôr depois a máquina em movimento. Assustam-se mortalmente. - Sorriu e soltou uma risadinha. - Nada os aflige tanto como a circunstância de manter a ordem após a bernarda. Por isso nunca vieram para a rua. E nunca virão, a não ser que alguém os empurre. Assim, inventaram este estribilho: faça-se a mudança gradualmente, através de vitórias políticas. Ora isto não é revolução. Conserva-se tudo na mesma, com uma pequena diferença, tão pequenina que nem sequer se nota.   - É a pura verdade - volveu Richard. - Ninguém receia mais a revolução vermelha dos que os próprios Vermelhos. Aterrorizam-se. D. H. Lawrence, Canguru . Tradução de Cabral do Nascimento.

Baixo contínuo

Se juntarmos as imagens geográficas da Google (maps, earth) e as fotografias que tiramos a todo o instante (auto-retratos, gatos, comida, sexo, paisagens, etc.), conseguimos um retrato muito aproximado da nossa vida. Uma espécie de fotografia contínua (ainda ninguém registou o conceito? talvez acrescentando a palavra baixo?), omnipresente — o contrário exacto do que é a fotografia .  Mais do que imagens, parecem um sinal de qualquer coisa — como os gráficos das máquinas dos hospitais que provam que ainda estamos vivos. 

Verão quente em Talamanca

Um francês pergunta a um delegado sindical sueco: “Que pode ainda desejar um operário na Suécia? Tem tudo, não pode querer mais nada”. O delegado responde: “Sim, um segundo quarto de banho”. Emil Cioran, Caderno de Talamanca, agosto de 1966.

Magnórios

O fruto que sempre conheci como magnório chama-se agora nêspera . Na verdade, o fruto sempre se chamou nêspera, menos no Porto e no Minho (que, no fundo, são a mesma coisa), onde era conhecido como magnório. Ignoro a origem do regionalismo. Em todo o caso, é uma mudança estranha. Não se fala de nêsperas, imagino eu, na televisão, nas telenovelas e telejornais. As frutarias da cidade, como os talhos e as padarias (onde os pães de trigo vulgares se chamam moletes ), são talvez dos últimos locais onde ainda se conservam os nomes antigos e as vogais fechadas. Onde é que a senhora da frutaria, tripeira de Paranhos, foi, pois, desencantar o termo nêspera? É uma mudança para pior. Magnório é muito mais redondo, sumarento, luminoso. Imagino Nabokov a dizer a palavra: Mag-nó-ri-o, a ponta da língua faz uma viagem de quatro passos pelo céu da boca abaixo e, no quarto, recosta-se e sonha. Mag. Nó. Ri. O.

Go, go, go,

Não é só da fotografia de Cioran, ando quase sempre à procura de qualquer coisa — uma frase, uma imagem, uma cor, o que seja — que não existe ou então é totalmente diferente da minha percepção. Ainda agora, estava tão certa que o pássaro que nos enxota e diz que não aguentamos muita realidade era do mundo aventuroso de Alice.
 

Os sapatos de Pascal

Já não sei como é que começou esta mania de associar a filosofia a sapatos e botas, mas a verdade é que volta e meia lá avanço mais uma casa neste jogo particular. Desta vez, descobri isto no livro “A caballo entre milenios” , de Fernando Savater: El encanto de Cioran reside en que expresa los vapores del spleen romántico con una prosa disciplinada en el potro de tortura de los moralistas clássicos: como apuntaba con agudeza Adam Gopnik en un artículo aparecido hace pocos días en el New Yorker, “efectúa los paseos de Baudelaire con los sapatos de Pascal”. — É uma descrição formidável.
 

Momento filosófico

Lembrei-me, agora mesmo, desta história passada num café no Boulevard Saint-Michel há cerca de vinte e cinco anos. O engenheiro C. explicava-me, em romeno, como tinha inventado um novo tipo de hélice para avião. Naturalmente, não compreendia nada das suas explicações, mas fingia ouvir. Ao lado, um jovem estende à sua frente uma grande folha de papel branco. Observo-o; ele assume uma expressão meditativa, apoia o queixo nas duas mãos, assume uma pose de pensador e fica muito tempo com o olhar fixo na distância. Não se perturbou com o monólogo do meu camarada, que aconteceu, como já disse, em romeno. Continuava a contemplar o vazio quando, de repente, pegou na caneta que tinha pousado sobre a folha e escreveu em letras grandes: "A vida, que mistério insondável!" E foi tudo. Retomou a sua atitude pensativa, por apenas alguns minutos. Depois, dobrou o seu papel e saiu. Tinha acabado de passar por um momento filosófico . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

A Quimera do Ouro

Trambolhões, cambalhotas, escorregadelas, passos em falso à beira do abismo, montanha acima, montanha abaixo. Estes tempos da grande corrida ao ouro das farmacêuticas pedem desesperadamente um novo Chaplin. Onde está ele? Em que canto do mundo continua confinado?

Destorce, destorce.

Suprimir todos os desejos! — esse é o meu propósito, o meu desejo absoluto! 12 fevereiro 62 Sinto-me fora de tudo, do que chamamos tudo . Devem me ter lançado mau-olhado. Estou enfeitiçado. Apanharam-me. Mas quem me apanhou?  Dias, semanas sem escrever uma palavra, sem comunicação com os outros nem comigo. Esta tarde observava as nuvens a passar, parecia que tocavam, que envolviam o meu cérebro. Precisava de sair disto, precisava de rezar... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Quase meio da semana

Repetição, repetição, eterna repetição dos dias. A corrente mansa dos mortos, infectados, vacinados, internados e em cuidados intensivos. Um rio quase sem ondas, sem profundidade, feito de gotas de água todas iguais. Quem poderá desvendar o seu segredo? Haverá um segredo?

Design

Em Design e Crime , Foster começa por um tema que nos remete para o universo acutilante e impiedoso de Karl Kraus (aliás, um dos protagonistas de Design e Crime ). Pensemos, pois, neste problema à maneira de Kraus: qual é a causa do amolecimento cerebral contemporâneo, e a quem serve? Foster, peremptório: é a transformação da ética de vida (Nietzsche, Foucault) num mero décor ; é o design global : aí cada indivíduo é, ao mesmo tempo, “designer” e “designed”. A manipulação pelo design é total: da casa (design de decoração) ao rosto (cirurgia plástica), da personalidade ( drugs design ) ao DNA ( children design ), de um candidato presidencial ganhador à Young British Art (nos livros-objectos de Bruce Mau, por exemplo), passando pela memória histórica ( museum design ), à arquitectura-espectáculo de Frank Gehry (“este designer de museus metálicos e salas de concerto curvilíneas,”) e à teoria-espectáculo de Rem Koolhaas (ver caps. III e IV) que não resistiria à realidade (o 11 de Setembro)...

A regra do jogo

Contaram-me que, durante a rodagem de A Regra do Jogo , nas vésperas da Guerra, Jean Renoir e a equipa tiveram de esperar quinze dias para filmar as cenas da caça. Durante esses quinze dias, de chuva ininterrupta, ficaram confinados perto do local das filmagens. A paragem mudou, de certa maneira, a vida de Renoir: o filme ultrapassou largamente o orçamento previsto, foi um fracasso comercial e o realizador endividou-se. O confinamento forçado da equipa em A Regra do Jogo transformou-se na pandemia particular de Jean Renoir. E entre as criaturas que tombaram na sequência da caça, também estava ele.

Mão de Deus

Uma enfermeira brasileira criou a Mão de Deus: duas luvas de plástico com água morna no interior e os dedos atados para formar uma só peça envolvente. Serve para dar algum conforto aos doentes que estão hospitalizados sem contacto com ninguém. Tem substância material e simbólica como uma obra de arte sem cair no experimentalismo afectado. Apesar da serventia, é uma obra de arte em acção — como uma ponte?

Excesso de exercícios físicos e imprudente uso de drogas

É por volta dos 36 anos que aparecem os sintomas da doença que aniquilaria Guy de Maupassant. Escreve menos, e Le Horla sugere que ele está sujeito a alarmantes desvios da imaginação. Em 1890, a sua carreira está praticamente encerrada. Começa então a tomar interesse pelos problemas religiosos e, por algum tempo, faz da Imitação o seu livro de bolso. Mas doenças nervosas herdadas, além do excesso de exercícios físicos e o imprudente uso de drogas, acabam por abalar-lhe a forte constituição; sua misantropia agrava-se e sofre curiosas alucinações. Atingido de paralisia geral, de que a mania das grandezas fora um dos sintomas, ia ele passar o Inverno de 1891 em Cannes, quando sua razão começa lentamente a soçobrar. Em Janeiro de 1892 tenta suicidar-se e é removido para Paris, onde morre em penosas circunstâncias a 6 de Julho de 1893. Mário Quintana, Guy de Maupassant, sua vida e obra.

Hábito

Ao fim de um ano, passado o primeiro terror, instalou-se uma nova calma. Uma calma que tem menos que ver com esperança e mais com impotência. Pouco a pouco, a cidade retoma a vida, com ou sem restrições. As pessoas formigam pelas ruas e praças, ocupando-se de mil e uma insignificâncias. A vida não depende dos números, mas do hábito.

Masterclass de storytelling

Bárbara passou outra vez na televisão. Gravei. Vale a pena rever os filmes de Christian Petzold; o olhar vai-se desviando da história e encontramos imagens que pouco nos dizem sobre o que está a acontecer, mas que ficam a ressoar na cabeça para sempre. Por exemplo, as cenas na banheira: o pneu da bicicleta e o dinheiro embrulhado à prova de água. Ou no hotel, as raparigas com as pernas ao alto. Quando se deita fora o storytelling , o que fica é cinema. Se não me engano, no Party , de Manoel de Oliveira, Michel Piccoli diz qualquer coisa do género?

Coisas que saem ao escrever

(...) o Manoel confessou um dia ter ficado intrigado com a afirmação de Fanny — a alma é um vício; isso não deixava de o inquietar, e por mais voltas que desse, e perguntas que fizesse, não conseguia obter um significado plausível! Um dia, perguntou mesmo a minha Mãe o significado de tal afirmação, mas a resposta foi simplesmente: não sei, foi coisa que me saiu ao escrever!

Possibilidade de trovoada

Sexta-feira santa. Segundo a tradição cristã, o dia em que Jesus foi crucificado. O céu está nublado, mas não chove. De vez em quando, o sol irrompe. Uma luz coada pelas nuvens, amarela, pesada, doente. Até ao final do dia, talvez troveje. A meteorologia alinha no tempo cristão com um toque de melodrama.

Observações avulsas sobre o bonfim #26 (anexo)

O senhor Pedro atende à porta sobre duas caixas de plástico transparente empilhadas. Um cesto para o pão, pilhas, detergente, o que calhar. Desejam-lhe boa Páscoa, ele responde “igualmente” e despede-se com “tudo de bom”. Apesar do sotaque, o senhor Pedro já domina a linguagem local. Nota-se que não é completamente português porque agradece e sorri muito.

Deserto

A chuva de lama, prevista pelos meteorologistas , não se confirmou. Pelo menos no Porto. Mas dentro de casa há uma película de areia muito fina espalhada pelo chão. O deserto avançou até ao quarto.