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Mensagens

A mostrar mensagens de janeiro, 2022

I can't afford a carriage

Os simulacros construídos para estas eleições foram muito sofisticados. Conseguiram lançar tantas dúvidas a António Costa que o puseram a saltitar daqui para acolá. E convenceram Rui Rio (e a sua equipa tacanha e bajuladora) da inevitabilidade da vitória. O único problema é que um simulacro é uma visão sem realidade . O discurso final de Rui Rio faz lembrar o HAL 9000 a cantar Daisy Bell .

Licenciado em Direito e Ciências Históricas e Filosóficas

 

Pão de mistura

No café moderno da Baixa, atafulhado de plástico e pechisbeque, a empregada tripeira (o acento é cerradíssimo) explica a um casal de turistas franceses vestidos à moda, que aquele pão é de mistura. «— Pão de mistura. Aqui chamamos “parolo”. — Párrólô? —Isso, parolo!»

Animais domésticos

Um verso de Paul Éluard: «As estradas que ela arrasta atrás de si são os seus animais domésticos...» Eu, que nunca tive um cão ou gato, gosto de imaginar as estradas como animais domésticos. Levar as estradas a passear. Tirar-lhes a trela e deixá-las correr pelo jardim e pela praia. Trazê-las para casa. Dar-lhes biscoitos. E um dia, talvez, acordar com uma ninhada de estradas entre o armário da sala e a parede. Quem sabe?

Ângulo apertado

Sonhei que alguém me pedia um conselho, já não me lembro bem do que se tratava, respondi que devia procurar as cores mais deslumbrantes para além da escuridão — qualquer coisa desse género. Só de manhã é que percebi que a minha resposta era igual às mãos vazias do pároco de Ambricourt.

Compreendes?

Estou a contar carneiros na montra da Académica e há dois tipos a beber cerveja à porta da Mirita. Apanho a conversa a meio. Um tipo conta ao outro que foi falar com um terceiro, a propósito de qualquer assunto cujo teor não chego a perceber. «— E o que lhe disseste? — Disse assim: “Olá, boa tarde, vai para a puta que te pariu.” —... — Isto para ser educado, compreendes? — Compreendo.»

O Diabo, provavelmente.

Laurence Tâcu: Acredita na existência do diabo?  Emil Cioran: O diabo é o símbolo de qualquer coisa. O diabo não é uma invenção habitual. Existe sem existir. Acredito que o diabo é o mestre do mundo . É tão real como Deus. O mesmo tipo de realidade. O diabo é ao mesmo tempo ficção e realidade . Acredito que a história universal, a história do homem, é inimaginável sem o pensamento diabólico, sem um desígnio demoníaco. Na história, ele aparece o tempo todo. O diabo é o símbolo de qualquer coisa. Mas uma vez que o mal é o motor da história, o diabo tem, necessariamente, uma existência implícita. O que se chama, o que os crentes chamam de diabo é muito real, não na sua forma ingénua, evidentemente… mas o diabo é o grande agente do devir da história, e a história universal sem a ideia do diabo é inconcebível . Para mim, é uma convicção profunda. É o mal que é o motor da história. Pode-se conceber isso sem ter necessidade de uma fé negativa. É um princípio, o mal, filosoficamente falando,

Barulho

Manhã de domingo. Sol, um pouco de vento e colunas de som aos gritos na esplanada. Tudo à nossa volta desaba sob o barulho. O barulho remexe em tudo. Este horror ao silêncio é uma coisa difícil de suportar. Não há café, esplanada, restaurante, tasca, sala de espera, estação de metro, lugar público, onde não sejamos esfolados por «música» ou relatos televisivos de jogos de futebol. Que maneira tão triste de evitar a solidão e tornar a morte mais fácil.

A nossa enxada e a nossa pá

Muitas das coisas que Cioran escreveu sobre o misticismo são úteis para perceber — ou tentar perceber — o Partido Comunista Português. Claro que qualquer militante praticante desafiar-me-ia já para uma discussão materialista sobre o assunto. Eu própria, se tivesse cartão, era capaz de o fazer. Horas e horas a esgrimir frases construídas com régua e esquadro.  Dito isto, só posso ser representada por um partido obsoleto. Li demasiado, o meu sonho é fazer ainda a revolução no passado.  A nossa enxada e a nossa pá  Nós usamos pra cavar  Cavando a nossa mina  Noite e dia sem parar

Sienkiewicz/Gógol

Há uns tempos, li com imenso prazer a novela  O Senhor Secretário , de Henryk Sienkiewicz. Na altura, fiquei com a impressão de estar a ler um Gógol meio desfocado. Não sabendo explicar melhor, desisti de tentar desenvolver a ideia. Agora, nos diários , Gombrowicz parece confirmar a minha impressão: E aqui - um paradoxo: este escritor conservador é neste sentido um precursor da actualidade revolucionária, este escritor «crente» está inconscientemente próximo da filosofia que refuta os valores absolutos e vive a dialéctica dos valores relativos resultantes das necessidades, nas quais o homem se torna a medida do valor. (...) Seria impossível um Sienkiewicz ateu, um Sienkiewicz bolchevique? Pelo contrário, é possível na medida em que, se algum dia a modernidade vermelha polaca publicar o seu grande romancista, será justamente Sienkiewicz à rebours . Todavia, ele não se via a si mesmo desta maneira. Disto não se apercebeu. E se se tivesse apercebido, teria acabado consigo mesmo na hora, e

Irmão Gombrowicz

8h30. Meia hora antes de começar a trabalhar - dantes dizia-se «pegar ao trabalho» -, abro o diário de Gombrowicz e leio umas linhas. Página 250, mais ou menos a meio do livro. As mesmas queixas, a mesma cantilena triste, como uma litania ecoando pelos séculos dos séculos, sem princípio, sem fim: «Segunda-feira. (...) Não vejo nada diante de mim… nenhuma esperança. (...) Depois de tantos anos de tensão e trabalho duro, quem sou eu afinal? Um escriturário massacrado por sete horas de trabalho, estrangulado em todos os esforços da escrita. (...) Tudo sofre porque, diariamente e durante sete horas, cometo um homicídio no meu próprio tempo. (...) De quem é a culpa? Dos tempos? Das pessoas? Mas quantas delas foram mais bem esmagadas?» 9h00. É o meu turno.
Começo a ler “Diário de um Zé-Ninguém” no dia em que arranca a campanha eleitoral e esse acaso estabelece uma relação política inesperada entre as duas acções: talvez este Zé-Ninguém seja o tipo indeciso que vota ao deus-dará? Talvez seja este homem palerma e cómico e triste que determina, sem disso se aperceber, o nosso futuro colectivo? Estamos tramados — e condenados a uma farsa infinita.

Ah! estes russos

Li alguns poemas de Alexandre Blok. — Ah! estes russos — como me são próximos! — A minha forma de tédio é toda eslava. Deus sabe de que estepe vieram os meus antepassados! Tenho em mim, como um veneno, a recordação hereditária do ilimitado.  Além disso, sou como os Sármatas, um homem em quem não se pode confiar, um indivíduo duvidoso, suspeito e incerto, de uma duplicidade tanto mais grave quanto é desinteressada. Milhares de escravos clamam em mim as suas opiniões e as suas dores contraditórias. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Via Panorâmica / Rua das Estrelas

Estudos comparados do google maps (agosto de 2021).

É hoje!

O noticiário da rádio abre aos gritos. A primeira página do jornal treme em convulsões. Febre e suores frios nos canais de televisão. É hoje, hoje, hoje! É hoje o grande espectáculo! É hoje o grande combate! É hoje a grande final! Senhoras e senhores, à vossa esquerda, o campeão em título, o leão do Rato, o devorador de comunistas que devoram criancinhas, o homem sem medo, o colosso do punho de ferro. À vossa direita, vejam bem: o cavaleiro sem cabeça, o filho do acaso, o homem invisível, o lidador do vazio, o gladiador que se faz de morto, a grande nuvem. É hoje que tudo se decide. Frente a frente, olhos nos olhos. Quem for ao tapete, está perdido. Se é sensível ao sangue, não se aflija: logo a seguir ao grande combate e aos anúncios publicitários, assista às pequenas lutas de galos entre os nossos comentadores residentes. Eles explicam-lhe tudo o que aconteceu e não aconteceu, entre beliscões benignos e pancadinhas inofensivas, sem fazer feridas ou deixar marcas. É hoje, é hoje, é ho

Dois lados do muro

Leio o texto do Cioran, traduzido pela Cristina , sobre as pessoas que «sentem que estão de passagem», que têm «a sensação de ter entrado na vida como uma ventania», e lembro-me de uma notícia que li há uns dias. Um norte-coreano que tinha conseguido fugir para a Coreia do Sul, voltou para o norte. Ou melhor, fugiu para a Coreia do Norte, escalando uma barreira de cerca de três metros com arame farpado e arriscando assim a vida pela segunda vez, na fronteira mais vigiada do mundo. Na mesma notícia pode ler-se que este caso está longe de ser isolado: pelo menos outros trinta «desertores» norte-coreanos fugiram da Coreia do Sul para o norte nos últimos anos. Talvez esteja a confundir alhos com bugalhos. A misturar filosofia de sábios com tragédia de espoliados. Demasiado romantismo da minha parte. Demasiada ficção e pão na mesa. Sim, é o mais provável.

Como uma ventania

Akhmatova, como Gogol, não gostava de possuir nada. Tudo o que lhe davam, presentes, etc., ela distribuia a torto e a direito. Um xaile que lhe tinha sido oferecido podia ser encontrado na casa de outra pessoa, apenas alguns dias depois. Gosto muito deste traço, que lembra os costumes dos nómadas, que não podiam nem queriam guardar nada, e com razão. Tudo neles é provisório por necessidade e filosofia. J. de Maistre fala de já não sei que príncipe russo que dormia em qualquer lado no seu palácio; não tinha, por assim dizer, cama fixa, pois sentia que estava de passagem. Todas essas pessoas tinham a sensação de ter entrado na vida como uma ventania. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Tempo para ler

A certa altura do seu diário, Gombrowicz fala de um outro autor polaco, Zbyszewski, que tem uma explicação para a «crise da literatura»: «a literatura não tem hipótese em consequência da crise do sector dos serviços domésticos, pois, por falta de empregadas, as senhoras não têm tempo para ler.» Muito acertado e muito lógico. Mas ainda há esperança. Com os novos e modernos robôs de limpeza, que infelizmente ainda não existiam no tempo de Zbyszewski, as senhoras já podem voltar a ler. Talvez os robôs ainda tenham chegado a tempo de salvar a literatura. Uma proposta de campanha publicitária para os supermercados Fnac: compre um livro e receba grátis um robô de limpeza.
(umbigo magazine)
Nem sei para onde me hei-de virar: a tradução de emmerder , a frase “ sou católico, mas não sou crente, não tenho fé ” ou a hipótese de “ uma noite mal dormida ”.

Exijo que se fale de mim com palavras domingueiras.

Gombrowicz escreve ao «Clube de Discussão de Los Angeles», cuja primeira sessão tinha sido dedicada à obra dele. A carta termina assim: «Dissestes-me que fui objecto da vossa discussão. Pois bem, gostaria de vos perguntar: a minha pessoa foi respeitada? Será que as vossas palavras foram guarnecidas com vibração? Falastes de mim com emoção, imaginação e paixão tal como se deve falar da arte? Ou será que de mim apenas retirastes umas “ideias” minhas e as mordicastes como um osso seco do meu esqueleto? Ficai a saber que proíbo de falar de mim de modo entediante, normal, comum. Proíbo-o veementemente. Exijo que se fale de mim com palavras domingueiras. Castigo com crueldade aqueles que se dão ao luxo de falar de mim de modo entediante e sensato: morro na boca deles e eles ficam com a sua cavidade bucal cheia do meu cadáver.» ( Diário: 1953-1958 . Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.) Devíamos pintar estas palavras a vermelho à entrada das faculdades de letras, dos institutos, das esc

Virar a página

O Presidente da República dirigiu-se ontem ao país para desejar um bom ano. «Este 2022 tem de ser o ano de virar a página», disse. E ainda: das eleições de 30 de Janeiro, deve sair um governo «que possa refazer esperanças ou confianças perdidas ou enfraquecidas, e garantir previsibilidade para as pessoas e os seus projectos de vida». Ocorreu-me, a propósito, a primeira cena do filme de Hong Sang-soo, Dia e Noite . O pintor coreano («pintor de nuvens») acaba de aterrar em Paris onde espera reordenar a vida e, à saída do aeroporto, é abordado por um estranho personagem que lhe atira, em jeito de aviso: «Tenha cuidado, tenha muito cuidado por cá.» São as suas únicas palavras. Sem mais explicações. Depois desaparece.

Quarenta rosas brancas

Longa conversa ao telefone. Cioran vai cada vez mais frequentemente à Suíça por causa dos nervos, mas admite que Paris é uma notável almofada protetora contra a neurose. Tem de seguir um tratamento em Enghien onde, lamenta, só se encontram operários. "Só a si é que posso dizer isto", acrescenta. Lê obras sobre Metternich e Nicolau II. Conta-me uma estranha aventura com uma japonesa que, nos últimos quatro anos, lhe envia regularmente rosas brancas — "noutro dia foram quarenta, pensei que estava no meu funeral" — guloseimas e xailes que ela mesma tricota. Ela quer vir a Paris e ligou-lhe de Tóquio. Ele não gostou da sua voz e proibiu-a de vir a Paris, alegando os terríveis ciúmes de Simone. “Não me vejo a passear com ela nos Jardins de Luxemburgo”, confidencia-me. Ela não devia ter ligado. A voz quebrou a magia das cartas. Ela tem quarenta anos e já foi casada duas vezes. Enviou-lhe uma fotografia sua em fato de banho diante de um lago. Ao longe, adivinha-se o Monte

1 janeiro de 1966

Fui passear junto ao Marne, para os lados de Tribarldon (?). As cheias dão ao rio o aspecto do Mississippi. Cinco horas de marcha quase todo tempo com o vento pela frente. Alegria de me mexer, de me esforçar fisicamente, mas por trás desta alegria sentia a presença de uma melancolia que, a certa altura, quase provocou uma crise de lágrimas. Tudo isso, sem a cumplicidade de nenhum pensamento. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972