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Mensagens

A mostrar mensagens de fevereiro, 2022
Bradar aos céus. Podia dia ser o título de uma colectânea de Emil Cioran. A meio caminho entre a poesia dos anjos caídos e a desafinação do death metal.

Guerra

Leio o que posso sobre a invasão da Ucrânia pelas tropas do governo russo e não consigo compreender. Quem ganha com esta guerra? E ganha o quê? Quem perde, sabemo-lo bem: os sempiternos perdedores, os pobres da Ucrânia, da Rússia e de toda a parte, os que não têm meios para se defender das agressões do mundo. Mas o que ganham exactamente os «vencedores»? Trata-se somente de somar mais poder e dinheiro? Se é só uma questão de poder e dinheiro, não consigo compreender. Ou há mais alguma coisa? Provar que se pode desafiar directamente a morte? Ter nas mãos o destino de um número infindável de pessoas? Ser-se deus? Jogar com a nossa estranha atracção pelo fim do mundo?

Os nossos especialistas

Abra-se um jornal, ligue-se a rádio, veja-se a televisão. Impressiona o repentino número de especialistas portugueses em história e cultura russas. No meio de todo este frenesim de conhecimento, fica-se com a certeza de que os nossos bulímicos especialistas sabem coisas sobre os russos que os próprios russos ignoram.

A tua mais completa tradução

Ao mesmo tempo que tento arranjar as palavras mais convenientes para traduzir as confissões e pensamentos irrequietos dos Cadernos , alguma coisa acontece — não é bem uma influência, é mais da ordem do parentesco, creio.  Dou por mim a querer oferecer coisas a Cioran; até um cão já me passou pela cabeça.  Dou por mim a vê-lo como um mestre de artes performativas  ( que, ao ser proferido, corresponde à acção a que se refere ). Começa por fazer de filósofo, de escritor, de místico, de estrangeiro, etc., mas o grande golpe é quando interpreta o ser humano — aí, Cioran supera-se.  As lágrimas, de novo. Uma palavra irradiante.

Extraterrestres

Ontem à noite vi na televisão Viva la Vie , um dos filmes esquecidos de Claude Lelouch. Estava cansado e sem vontade de fazer nada. O filme não é grande coisa. Uma história dentro de outra história, e ambas dentro de um sonho. Ou o contrário. Não sei bem. Não é isso que interessa. O filme passa-se em plena guerra fria. Os ricos constroem abrigos nucleares nas piscinas. Os criados compram fatos de borracha para se protegerem das radiações. No sonho de um dos personagens (Michel Piccoli), a guerra nuclear é evitada através de um simulacro que envolve seres alienígenas: os extraterrestres não estão interessados em explorar um planeta inviável, sem seres humanos e carregado de radiação. Entretanto, na Ucrânia os «esforços diplomáticos» não deram em nada. Nos jornais, a guerra parece «inevitável». Os «enviados especiais» das televisões ao teatro dos acontecimentos estão a fazer o seu trabalho em «condições muito difíceis». Quem nos salva disto? Quem nos protege da humanidade? Onde estão os...

Mais depressa, mais depressa

O contrato prevê um horário flexível, em que o trabalhador é convocado de véspera. Da mesma forma, pode ser dispensado, se a mensagem pretendida pelo patrão for de penalização ou intimidação. Além de tudo isto, aquilo que mais perturba alguns dos manifestantes do dia 11 de Fevereiro, em frente à própria empresa, é “a permanente pressão psicológica”. “Querem que a gente ande cada vez mais depressa, a colher as bagas com movimentos dos braços sem parar. Estão em cima de nós, a gritar: ‘Mais depressa, mais depressa’”, diz Robin Thapa, também nepalês, disposto a protestar. “É muito duro. Estamos a trabalhar num ambiente quente, dentro das estufas, e só podemos beber a água que trazemos de casa. Às vezes por mais de oito ou 10 horas”, diz Pramila. “Se bebemos toda a que trazemos, pedimos, mas eles não nos dão, recusam. Se protestamos, chegam a mandar-nos para casa”, salienta Pramila. “A pressão psicológica faz-nos mal.” Quem não cumpre o objectivo de encher um determinado número de caixas n...

Ah, as laranjas.

De alguma forma parece um paradoxo: um inverno tão seco e por todo o lado, nos quintais mais pequenos, principalmente nos subúrbios, as árvores carregadas de laranjas, tangerinas, tangeras e limões. Nos mercados, os citrinos a menos de um euro o quilo. A vizinha que me deixa laranjas à porta ( ninguém as quer ). Quase dá para acreditar, como em Cioran ou nas tragédias gregas, num deus trocista, e ácido.
Ao ver o documentário sobre a Vivian Maier , percebi que ela tem qualquer coisa de walseriana . Não sei bem o quê. Aliás, nem quero saber — só quero ficar com a suspeita.

Junho de 1962

De novo a constipação. Seis meses por ano constipado! Fenomenologia da congestão nasal  — belo título para uma tese de doutoramento…  Não tenho dores de cabeça, tenho melhor: um peso constante no cérebro, uma nota fúnebre no espírito.   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Juntos no matadouro

No dia 1 de dezembro de 1971, Cioran anota nos seus Cadernos:  Exposição Francis Bacon . Sinistra q.b. e esplêndida.   Não sei desde quando ele conhecia o trabalho do pintor, mas a verdade é que dez anos antes já dominava a sua técnica visual:  Entrar no sono como num matadouro. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 Francis Bacon, fotografado por John Deakin para a Vogue, em 1952.

As paixões tristes

Na ordem cósmica do mercado, como são os técnicos a ser chamados a governar a crise dos Estados para pôr em ordem a economia, também devem ser considerados «técnicos» aqueles a quem é confiado o tratamento da crise psicológica que deriva da falência individual. As paixões do cosmos neoliberal são, de facto, tristes : frustração, impotência e inadequação são os sentimentos predominantes, dependentes de uma performance que não produziu o lucro esperado pelo mercado, ou de uma avaliação negativa das skills que um investimento individual insuficiente não conseguiu tornar competitivas. É, pois, como «técnicos da crise» que os psicanalistas e psicoterapeutas Miguel Benasayag e Gérard Schmit se sentem considerados pela sociedade, e perguntam-se: «Existirá hoje uma real incapacidade de assumir uma situação de angústia, porventura ampla e generalizada, sem considerá-la, acima de tudo, um problema da técnica ?» Segundo os autores de Les passions tristes [As paixões tristes], as crises psicoló...

Observações avulsas sobre o bonfim #45

Ao passar pelo Minipreço de Barros Lima (uma das lojas mais nevrálgicas da zona), ocorreu-me que os poetas já não vivem por cima do Minipreço . A frase podia ser o título de uma tese bastante estrábica sobre os caminhos (mansos?) da poesia contemporânea, ou sobre a estratificação social das cidades, ou sobre o comércio em geral.

Ouro

Página 488 do Diário de Gombrowicz. Um aforismo arrancado ao corpo de um parágrafo: «(...) pois que um artista deve actuar sempre na fronteira entre a vergonha e o ridículo.» Se pudesse, mandava banhar esta frase a ouro. O diário podia terminar aqui. Está tudo dito.

Isolamento obrigatório

Sexta-feira. Passaram sete dias desde os primeiros sintomas. Hoje termina o meu período de isolamento. Dois anos de teletrabalho, dois confinamentos gerais e sete dias de isolamento profilático. Estou exausto. Os nervos doentes. O pó sobre a mesa é uma afronta mortal que o mundo me faz. A mancha de humidade na casa de banho é um insulto . A fenda minúscula no tecto do quarto um capricho truculento que a natureza usa para me atormentar. Tento romper o isolamento com livros, sacudir o ar envenenado de casa com revistas atrasadas. Depois do trabalho, leio, leio, leio. Mas não consigo reter uma palavra. Não compreendo nada. Neblina, fumo. Está tudo em ponto morto. Preciso de caminhar. Preciso urgentemente de me servir dos pés para andar. A minha seita é a dos fanáticos de Walser, não a dos fiéis de Proust.

Insultos

[Cioran tem jeito para escrever insultos. Não recorre nunca a lugares comuns nem a palavras gastas. Pelo contrário, preocupa-se em encontrar os adjectivos mais intensos e adequados à ofensa. Trata-se de um trabalho moroso e frágil — lamentavelmente nem sempre apreciado. Nos seus exercícios insolentes (são tantos, muitos deles contra si próprio), o filósofo eleva o francês ao nível de uma língua profunda e musical: os insultos quase parecem elogios. Talvez isso aconteça, também, porque estas palavras de afronta são arrancadas das entranhas — Cioran é um tipo antiquado que ainda escreve com os órgãos. Em termos literários, são mais poesia do que certos poemas coxos que por aí andam. Merecem ser lidos em voz alta, num palco? — sim, onde podem revelar todo o seu dramatismo. E até algumas lágrimas.] Encontrei X por acaso — sempre essa mistura desconcertante de crápula e louco, mas no fundo inapreensível: um homem que nem sequer tem a noção de “veracidade”, fisiologicamente “inexacto” e amo...

Sem título

Leio no jornal que um tipo que acaba de ser eleito deputado e que se chama Pedro Frazão publicou, em Outubro, uma fotografia nas redes sociais «onde é visto a colocar dois dedos sobre as letras "lo" na palavra "descolonizar", num autocolante posto na porta do gabinete da deputada não-inscrita Joacine Katar Moreira, com a legenda: "Senhora Deputada, prepare-se para desco**nizar a Assembleia da República!"» O que significa «desconizar» a Assembleia? Retirar as mulheres do Parlamento? Retirar a «cona» às mulheres que estão no Parlamento? Até onde tipos como este podem ir? Sabemos muito bem a resposta.

Linhas vermelhas

Os primeiros sintomas surgiram na quinta-feira. Dores nos músculos e um mal-estar geral. Sexta-feira o teste deu positivo. Duas linhas vermelhas paralelas no ecrã do teste de antigénio. E assim se vão acumulando as minhas linhas vermelhas. Umas voluntárias, outras nem por isso. O tempo avança, o cerco aperta.

Um animal estranho

Caminhava eu por uma avenida ladeada de eucaliptos quando uma vaca saiu de trás de uma árvore. Parei e olhámo-nos nos olhos. A sua vacalidade chocou com a minha humanidade a tal ponto - o momento em que cruzámos o olhar foi tão tenso - que perdi a confiança em mim enquanto homem , isto é, enquanto espécie humana. Experimentava pela primeira vez uma estranha sensação - a vergonha de um homem face a um animal. Deixei que ela olhasse para mim e me visse - isto tornou-nos semelhantes - em resultado também me tornei um animal - mas um animal estranho e, diria eu, até mesmo proibido. Continuei o meu caminho, retomando o meu passeio interrompido, mas senti-me desconfortável... na natureza, que me cercava por todos os lados, como se estivesse... a observar-me. Witold Gombrowicz, Diário I . Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

Escrita

Um plano de La Belle Journée , de Ginette Lavigne: do outro lado de um vidro meio fosco, vêem-se umas mãos a matar e a esfolar um coelho; em off , ouve-se o escritor Christian Prigent explicar o seu método de escrita. O coelho debate-se durante algum tempo. É um bicho pequeno e muito branco, como uma folha limpa.

Manter um diário

Manter um diário, que prova de impotência para coordenar os pensamentos! É próprio de um espírito descontínuo, despedaçado nas suas raízes, profundamente cúmplice e vítima das flutuações do tempo, do seu tempo. Inapto para meditar, medita- se ... É filosofia rebaixada a um calendário íntimo.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

O povo

Tenho andado a pensar no que a deputada do PSD disse na noite das eleições: o que falhou foi o povo português .  Há uma classe social que tem dificuldade em se expressar (isso implica que também tem dificuldade em pensar — adiante), acho que o raciocínio completo subjacente à frase de Isabel Meireles é: o que falhou foi o povo português não ter feito  o que nós lhe dissemos que era o melhor para ele .  O que falhou, o que falhou  tremendamente  foi ele (ah, o povo português transformado em ele por oposição ao eterno poderoso  eles , a medir forças pronominais) pensar e agir pela sua própria cabeça — que pode muito bem ser o princípio de uma definição escorreita de democracia.  A frase ganha ainda outras ressonâncias contrárias, pois não só o povo não falhou como não faltou . Quando menos se espera, mesmo não seguindo os nossos desejos, aí está ele: o povo.