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Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2025

Selfie XXVII

Quando saí do Instituto do Emprego e Formação Profissional com o Comprovativo do Requerimento de Prestações de Desemprego na mão, percebi que esta era a minha forma de interpretar a cantata de Bach (baixo contínuo). Pouco dinheiro, mas muito tempo. Estou no bom caminho.

Dos jornais XXX

«Traços de impressões digitais já foram detetados em esmalte húmido ou num caixão, mas é raro e emocionante encontrar uma marca de mão completa sob esta casa das almas. Esta foi deixada pelo artesão que a tocou antes que a argila secasse», observa a Universidade de Cambridge em comunicado.

Walser e o Cinema (uma aproximação breve e provisória)

Tenho de escrever um texto sobre as relações – ou possibilidades de relações – entre Robert Walser e o cinema. A minha primeira frase foi assertiva: (pela sua exuberância e quebra de regras) os textos de Walser não são propícios a adaptações; quanto às idas aos cinemas-cabaret na Berlim imoral, alinho. Branca de Neve abre e logo a seguir fecha o único caminho que consigo ver (em termos de estrelas curriculares, é um dos melhores filmes falhados que conheço).  Mas ontem de manhã, na praia, tive uma ideia para um filme (curto, curtíssimo) que envolve Walser.  Hoje voltei à mesma praia e fechei a planificação – até vi o genérico. Ficou tudo azul e verde diante dos meus olhos . Oh!
 

Andamentos perdidos

Da janela do escritório, ouço os calceteiros a empedrar a Rua de São Bento da Vitória, que está em obras. Dão três pancadas seguidas em cada pedra: a primeira mais forte, a segunda menos e a terceira é uma espécie de eco menor das anteriores. Perto deles, há um rádio sintonizado num canal de êxitos pop dos anos 80. Misturada com os diferentes sons do ferro a bater no granito, a música transforma-se noutra coisa. Andamentos perdidos de um Wagner enlouquecido.

Parece cera escorrendo

Ao atravessar Damião de Góis a caminho da Lapa, passo por um gigantesco outdoor de propaganda de um candidato à Câmara do Porto. Há dezenas de pombos pousados no topo da estrutura. Ocorrem-me, então, as palavras de Buñuel sobre Simão do Deserto : «Era um projecto que eu tinha há muito tempo, desde que Lorca me tinha dado a ler a Legenda Aurea [de Voragine]. Ele ria-se muito quando lia que ao longo da coluna os excrementos do eremita pareciam cera escorrendo por uma vela.»

Eu sou uma colher no parapeito da janela

[Breve estudo de literatura comparada] John Fante acelera a capacidade de levar tudo pela frente em  Estrada para Los Angeles*:  agora são dois (e um deles, completamente destravado) a escrever dentro do livro — é o chamado efeito estéreo literário.  «Elas tinham-me deixado um bilhete em cima da mesa. Dizia que tinham ido a casa do tio Frank e que eu tinha comida na despensa para o pequeno-almoço. Decidi ir comer ao Sítio do Jim, pois ainda me sobrava algum dinheiro. Atravessei o recreio da escola que ficava do outro lado da rua e pus-me a caminho do Sítio do Jim. Pedi uns ovos com fiambre. Enquanto comia, o Jim ia falando.  – Tu fartas-te de ler – disse ele. – Já tentaste escrever um livro?  Foi o suficiente. Daí em diante, eu queria ser escritor.  – Estou a escrever um livro neste preciso momento – disse eu.  Ele quis saber que tipo de livro.  A minha prosa não é para vender – disse-lhe eu. – Eu escrevo para a posteridade.  – Não sabia – di...

Assumir os pressupostos da vida não fascista #7

A CÂMARA NEGRA M. D.  Ela teria falado de muitas coisas, da geografia dos lugares percorridos, do fim do mundo, da morte, da solidão da Terra no sistema planetário, das novas descobertas sobre a origem do homem.  As suas afirmações não teriam vindo nunca de um conhecimento preciso da questão abordada. Ela teria cometido erros — às vezes enormes — sobre… ciência, geografia, as últimas descobertas interestelares.  ZONA INDUSTRIAL DE VERRIÈRES (Saint-Quentin-en-Yvelines). Travelling lateral. Uma fábrica de camiões. Depois, terrenos baldios, depois, ao longe, a floresta. Música. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,  de   Marguerite Duras. BCF editores, maio de 2025. [Apresentação do livro hoje, às 18h00, na Térmita. Com Eduardo Calheiros Figueiredo e Manuel Sá.]

Assumir os pressupostos da vida não fascista #6

M. P.: No filme, há temas que voltam.  M. D.: Há uma permanência de temas, sim. Não sei muito bem porque é que eles voltam tão regularmente. É o vento, por exemplo. O mar. A criança judia.  M. P.: Gosto muito dessas notas físicas no filme, quando ela fala do vento, da geografia das paisagens…   M. D.: Quando falo da terra do vento, onde nenhuma árvore resiste, onde todas as árvores são massacradas, continuo sem dúvida um certo discurso, mas deslocado. Acabei de rever o texto para ser editado e constatei que estou sempre a falar do vento, do mar também, longe e perto, sempre forte como uma espécie de imagem mental constante, penso que o mar é o que vai chegar, é o que vai engolir tudo na sua pureza, acho que é isso, o vento e o mar, porque, para mim, é o vento do mar. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,  de   Marguerite Duras. BCF editores, maio de 2025. [Apresentação do livro amanhã, às 18h00, na Térmita. Com Eduardo Calheiros Figueiredo e Manuel ...

Assumir os pressupostos da vida não fascista #5

Não sei para onde vou em O Camião . Ela, a mulher do camião, também não sabe. E isso pouco importa. Eu não sabia quem era essa mulher. Nada. Apenas isto: sabia que havia uma mulher na curva de uma estrada — vi essa estrada na Mancha, na direcção de Vauville — que esperava um camião e havia eu. Isso durante várias semanas. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,  de   Marguerite Duras. BCF editores, maio de 2025. [Apresentação do livro no próximo sábado, às 18h00, na Térmita. Com Eduardo Calheiros Figueiredo e Manuel Sá.]

Assumir os pressupostos da vida não fascista #4

M. P.: Na projecção desta noite, o aspecto político do filme impressionou-me muito, esta visão completamente desesperada.  M. D.: Desesperada e alegre.  M. P.: No filme você diz: «Que o mundo vá para o inferno, é a única política.»  M. D.: Mas ela vive isso com alegria pois vive a inventar soluções pessoais para o intolerável do mundo, por exemplo o facto de pedir boleia todas as noites inventando a sua vida.  A mulher do camião é-me completamente fraternal, é uma pessoa por quem sinto amor, isso não me acontecia desde India Song , amo-a profundamente, e ao meu redor ela é muito amada, esta mulher do camião, que obviamente não é aceite na sociedade actual, os estalinistas diriam que ela é louca. Como se a alienação em si mesmo fosse uma definição. Os escritores e as pessoas livres são tratados assim. Na sociedade, a liberdade é tratada como a loucura. Esta mulher é livre, ela ri quando ele lhe diz: «Você é uma reacionária», ela ri quando ele lhe diz: «Saiu do hosp...

Assumir os pressupostos da vida não fascista #3

M. D.: Foi tudo filmado entre Trappes e Plaisir, quer dizer, basicamente na capital da imigração em França. Não sei quantos são, talvez um milhão ou dois milhões nesta zona. Todos esses edifícios mortuários que vê foram construídos para eles, são os bancos de ensaio dos arquitectos de Paris. Os franceses fugiram deles. Devo dizer que os portugueses, nos primeiros tempos, também fugiram dos apartamentos que lhes destinámos, para voltarem às suas caravanas e aos seus bairros de lata, porque nos seus bairros de lata estavam juntos, à noite podiam comer juntos, reunirem-se. Havia uma verdadeira comunidade nos bairros de lata. Foi destruída. Foi substituída por esses blocos que vê no filme, esses fabulosos amontoados de alojamentos. Em vez de uma caravana, agora há entre sete e doze casas sobrepostas. Em Pequim é a mesma coisa, no México, em Madrid. Eu prefiro os bairros de lata, sem água, sem conforto, mesmo que faça muito calor, prefiro. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,...

Assumir os pressupostos da vida não fascista #2

Voz off de M. D.  Ela teria apontado para o mar  [ Pausa .]  Ela diz: veja, o fim do mundo.  A toda a hora  A cada segundo.  Por toda a parte.  Espalha-se.  Ela diz: é melhor, sim.  É tão difícil... tão... tão duro... tão...  É melhor assim. É o melhor.  Não valia a pena, é o que eu acho...  [ Pausa .]  Ela diz: antes, já havia mar, aqui,  Além, veja.  Além.  [ Pausa .]  Ele diz: mas de que é que está a falar? Ela diz: eu falo.  [ Pausa .]  Ela canta.  Ela fecha os olhos e canta. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,  de   Marguerite Duras. BCF editores, maio de 2025. [Apresentação do livro no próximo sábado, às 18h00, na Térmita. Com Eduardo Calheiros Figueiredo e Manuel Sá.]

Assumir os pressupostos da vida não fascista #1

G. D. Ela fala? M. D. Sim, ela vai falar. G. D. [ Pausa .] Quem é ela? M. D. Uma desqualificada [ Pausa .] Está a ver? G. D. Sim [ Pausa .] M. D. O único elemento em comum entre eles é uma certa violência no olhar. Face a esse vazio diante deles, o Inverno nu, o mar. [ Pausa .] O silêncio no início do filme teria representado a primeira relação entre as personagens. Relação distante, quase indiferente, maquinal. Teria sido uma espécie de estabelecimento de uma relação por vir. G. D. Essa relação vai acontecer? M. D. [ Pausa .] Talvez nunca. G. D. [ Pausa .] O que é que acha? M. D. [ Pausa .] Nunca. O Camião seguido de entrevista com Michelle Porte,  de   Marguerite Duras. BCF editores, maio de 2025. [Apresentação do livro no próximo sábado, às 18h00, na Térmita. Com Eduardo Calheiros Figueiredo e Manuel Sá.]

Entre parêntesis

Tive de ver várias vezes a cena final de The Horse Soldiers para conseguir traduzir dois parágrafos onde Paulino Viota descreve com minúcia os planos e os movimentos dos actores, principalmente o modo emocionado e contido como Hannah move o braço esquerdo ( a alma nasce da forma do corpo ). Ao fim de algum tempo, apercebi-me que Ford filmou a breve despedida de Marlowe e Hannah entre parêntesis. Uma comoção tremenda que nos afecta ainda mais por ser tão velada.
(...) Translating is always listening, scanning for cadence, texture, influence, weight; the myth of the father is a reminder that Daney listened first.  Close Listening, Christine Pichini, 2025. Sabzian.

Insólito bestiário

Leio no jornal que a Casa do Cinema Manoel de Oliveira inaugura por estes dias uma exposição composta por «um insólito bestiário de bonecos, arte sacra e outra quinquilharia», pertencente a Luis Miguel Cintra. Que extraordinária definição de teatro e cinema: um insólito bestiário de bonecos, arte sacra e outra quinquilharia. Devia constar das respectivas entradas nos dicionários e enciclopédias.

Prestar um favor aos ricos

Sou um vendedor nato: galante, pressuroso, cortês, veloz, lacónico, lesto a decidir, exímio nos cálculos, atento e honesto, mas não honesto ao ponto da estupidez, como talvez possa parecer. Sei baixar os preços quando tenho à minha frente um estudante que não tem onde cair morto e sei subir os preços para assim prestar um favor aos ricos, de quem apenas posso supor que por vezes não sabem o que fazer ao dinheiro. Robert Walser, Os Irmãos Tanner . Tradução de Isabel Castro Silva

Galochas e buraquinhos nas luvas

[Breve estudo de literatura comparada] Por razões de trabalho, o Rui anda a ler Robert Walser de uma ponta à outra. No sentido inverso, isto é, para festejar o fim do trabalho assalariado, resolvi atirar-me de novo a John Fante.  Quando o li pela primeira vez, achei que tinha semelhanças com Walser (Fante ou Bandini?), mas nunca estudei o assunto – nem sempre se deve aprofundar as nossas intuições, pois claro! Agora as relações surgem por iniciativa própria: os objectos mais banais ganham vida própria, movimento, diminutivos; a alegria alastra como uma névoa. (Ah, deve ser o efeito da praia atlântica, da areia, do vento, da liberdade.) Provas materiais: «Rosa, a presidente da Sociedade do Santo Nome, a menina dos olhos de toda a gente, cada vez mais próxima, caminhando sobre as pequenas galochas que pareciam dançar de alegria, como se a amassem também.» «Num dos bolsos laterais encontrou um par de pequenas luvas. Estavam bastante gastas, com buracos na ponta do dedos. Oh, que lindo...

Dos jornais XXIX

A palavra farsa já não serve para explicar o que se passa. Os conceitos de Hegel e Marx ficaram para trás. O presente é uma massa de acontecimentos irracionais. Nada disto é cómico.

Filipe Guerra

Soube há instantes que Filipe Gueŕra faleceu esta madrugada. Não há leitor em Portugal que não tenha uma dívida de gratidão para com ele. Era um escritor sábio. Um tradutor atento, incansável e generoso. Traduziu , com Nina Guerra, largas dezenas de autores russos, muitos deles inéditos entre nós ou traduzidos pela primeira vez directamente da língua original. Os seus prefácios e apresentações, escritos num português límpido, sofisticado e imaginativo, são extraordinárias lições sobre a história e o ofício da literatura. Também fez traduções do francês, italiano e espanhol. Numa colecção que dirigi em tempos, editei uma antologia de contos de Alphonse Allais, que ele seleccionou, apresentou e traduziu. É dos livros de que mais me orgulho . Será lido para sempre e para sempre lembrado. [A qualidade da fotografia é péssima. Podia ter usado outra, mas esta é a minha preferida. O Filipe Guerra com o sempiterno cigarro entre os dedos. A fotografia está cortada. No original, à sua direita, e...

Deixa lá isso

A certa altura, a Branca de Neve exige ao Príncipe que pare com a sua empolada tagarelice e as suas intermináveis promessas de fidelidade: «Porque falas assim sem parar?» Se ele estivesse efectivamente rendido aos encantos da donzela, não precisava de taramelar «como uma cascata sobre o silêncio». Só a infidelidade, diz ela, «palra tão depressa». O Príncipe, lapidar, responde: «Deixa lá isso!» Na voz de um bom actor, é das frases mais desconcertantes e engraçadas do dramalhete de Robert Walser.

Uma vida boa

 De manhã, praia; à tarde, cinema. Tem sido assim, mas hoje vai ser praia todo o dia!

O que eu gosto de musicais

 

Playtime

Parece-me agora óbvio que Monsieur Hulot, de Playtime , é um descendente directo das personagens desarrumadas de Robert Walser. O mundo moderno, organizado como um frio relógio suíço, é para todas estas figuras um imenso parque de diversões. Motivo de prazer e angústia.

Morder o isco

Enquanto o ministério de Bonaparte tomava em parte a iniciativa de elaborar leis no espírito do Partido da Ordem, e por outro lado exagerava ainda a execução e aplicação dessas leis, ele próprio só procurava ganhar mais popularidade através de medidas néscias e pueris, evidenciar a sua oposição à Assembleia Nacional e chamar a atenção para uma secreta intenção, que só as circunstâncias do momento impediam, de proporcionar ao povo francês os seus tesouros escondidos. Por exemplo, a proposta de conceder um aumento diário de uns patacos (quatro sous ) aos oficiais subalternos. Ou a da criação de um banco de crédito (a conceder sob compromisso de honra) para os operários. Dinheiro oferecido e dinheiro emprestado, era esta a perspectiva com que esperava levar as massas a morder o isco. Oferecer e emprestar, a isso de limita a ciência financeira do lumpenproletariado, do mais distinto como do mais vulgar. Nisso assentavam as molas que Bonaparte era capaz de pôr a funcionar. Nunca um pretende...