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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2025

Dos jornais XXXVIII

A negligência descrita, a insistência de que nada há de ‘político’ no acidente, como se a culpa fosse do cabo que estilhaçou ou, pior, das vítimas, a falta de exigência na manutenção, que roça a burla, a ausência de diligência mínima na superação de um bizarro vazio de fiscalização, tudo isso é muito mais do que mero amadorismo. É uma grave quebra de um compromisso político e ético elementar de respeito pelas pessoas. Não pode haver coisa mais política.

Ele e só ele

Os politólogos e comentadores descobriram, em triunfo, que o maior partido da extrema-direita portuguesa, afinal, tem o seu calcanhar de Aquiles: depende absolutamente do chefe. O chefe é o partido e o partido é o chefe. Sem ele, o resto pouco vale. Escreve uma comentadora: «Ele e só ele. Presidente da Câmara, deputado, primeiro-ministro, Presidente. Ele mesmo e todos os seus ministros ao mesmo tempo.» Mas em que altura da história um movimento fascista ou protofascista não dependeu exclusivamente do chefe? Essa é a sua força. O contrário é que seria absurdo. Nestas eleições, o chefe, justamente, ampliou ainda mais o seu poder. Não é fácil acompanhar as análises sofisticadas dos nossos politólogos e comentadores.

ZOV #2

Rui Manuel Amaral é um escritor cheio de dúvidas e isso é uma sorte. Só alguém assim, tão ferido na fé literária, consegue escrever histórias que ainda nos atiram ao chão . A número dezoito (páginas 91 e 92) é exemplar: parece um andaime precário em redor de um edifício destruído há muito, tomado pelas heras.  Beckett e Cioran passaram uma noite a discutir a tradução da palavra lessness para francês. Não conseguiram. É uma tarefa impossível. Pois bem, este pequeno texto de Rui é a representação desse substantivo que nos foge. Abre com uma sombra e acaba num esgar de riso amargo. O narrador começa por lançar os dados, mas os dados fogem; começa a urdir uma trama, mas a trama desfaz-se. Ele é teimoso, continua uma e outra vez, sem receio, sem sair do sítio. Vacilar é a arte dos juncos e ele faz-se junco e ventania. No fim, chega ao vazio total. É onde estamos todos.  DEZOITO Uma sombra veloz atravessa a cena. Não, não apenas uma sombre, obviamente. Um homem e a sua sombra atr...

«Há aqui uma festa organizada para nós p’la magia»

Na Gata Borralheira e na Branca de Neve tudo acontece no «doce sonho». O sonho que «vai e vem como as ondas do lago». Quando o Forasteiro da Bela Adormecida , vindo de um outro reino – que reino? –, arranca as personagens do seu «sono secular», elas queixam-se porque não queriam ser acordadas. Diz o Almoxarife: «Durante o sono, não fluía tudo, e excelentemente não nos sentíamos todos?» Mas em que mundo despertam elas? O Forasteiro: «Não será o real também um sonho, não seremos todos, apesar de igualmente agirmos acordados, algo sonhadores, sonâmbulos em pleno dia, que brincam com ideias e agem como se estivessem acordados?» Nas histórias de Robert Walser, realidade e sonho confundem-se, são sinónimos. É impossível perceber onde acaba uma e começa o outro. Onde termina o conto de fadas e começa o seu avesso.

Comida e política

Conclusões de um estudo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa sobre os padrões alimentares dos portugueses: «Exaustão dos mais vulneráveis, reconfiguração estratégica dos mais privilegiados e resistência tradicionalista de uma classe média empobrecida que se agarra a padrões identitários.» Ninguém estranharia se fossem as conclusões de um estudo sobre os novos padrões eleitorais em Portugal. Até o jargão académico é o mesmo.

A morte das cidades

A cidade foi claramente partida ao meio nestas eleições. Ao contrário da nação do futebol, que engole tudo, em termos políticos, já podemos falar de Porto-Este e Porto-Oeste.  Os resultados de Campanhã dão um bom retrato de uma zona pobre, sempre menosprezada e cheia de problemas, mas suspeito que daqui por uns anos os números mudem. O efeito do Matadouro (deitar a mão ao terreno vizinho do Mercado Abastecedor é uma tentação, não é?) e da vista-rio no imobiliário vai provocar  uma inflexão política na freguesia. Os ricos do Porto gostam de boas vistas e de cultura – veja-se como aderem à hóstia domingueira de Serralves. Mais a longo (?) prazo, o sonho dos dirigentes autárquicos do Porto (e Lisboa e outras tantas cidades) é expulsar os pobres e imigrantes para as periferias e transformarem-se num enorme condomínio privado, ou seja, território protegido para a preservação da espécie. Em palavras justas: um antro de primos gananciosos e enfadonhos.

Ninguém acreditará que isto seja tão importante para a nação

O cinema de Pedro Costa tem uma organização do espaço muito própria. Em Vitalina Varela , por exemplo, aproxima-se de um brutalismo orgânico que preserva as texturas e as cores degradadas de um jeito comovente (se houvesse coragem, em cima dessas casas mal levantadas, poderíamos construir verdadeiras casas do povo, à margem da formatação deprimente dos bairros sociais). É raro encontrar equivalentes no Porto, mas há uns tempos descobri uma prolongação dessa arquitectura indisciplinada no número 46 da rua Monte Cativo (belo nome!). Até chegarem os investidores, aquela brecha é território do Pedro Costa e dos gatos. De vez em quando, passo por lá para desentorpecer os olhos.

L'angle du hasard

Há um bilhete preso ao tronco de uma das árvores entre o Edifício Transparente e o mar. Já lá está há bastante tempo. A folha de papel (15 por 21 centímetros) está protegida por um plástico. Tem o desenho de um pequeno rectângulo dividido por uma diagonal. O triângulo inferior foi pintado a vermelho. Por baixo, escreveram: «mas também conseguiu». Desconfio que é uma pista sobre uma conspiração secreta. Sem dúvida, de um filme perdido de Rivette.

Robert Walser vai ao cinema e diverte-se à grande

Finalmente acabei o artigo sobre Robert Walser para o Manual de Leitura do TNSJ . Demorei mais tempo a corrigir do que a escrever. Talvez por isso consegui que a forma se fosse ajustando às ideias (lição de Huillet e Straub), dando origem a um texto saltitão, cheio de acrobacias superficiais. Para comemorar o feito, vou fazer um rösti de batata .

As boas percepções

Para que exista uma verdadeira segurança no nosso comportamento e na forma como sentimos o mundo, é preciso que exista sempre um tudo-nada de oscilação, de flexibilidade. O chão debaixo dos nossos pés pode e deve oscilar e, para podermos manter o nosso rumo em direcção à perfeição, precisamos de ter continuamente a percepção de que não nos dominamos ainda perfeitamente e de que, porventura, a nossa evolução não está ainda completa.  O Salteador, de Robert Walser. Trad. de Leopoldina Almeida. Relógio d’Água. Janeiro de 2003.

Observações avulsas sobre o bonfim #76

O partido e a coligação que podem ganhar a presidência da câmara já fixaram os últimos cartazes da campanha no Campo 24 de Agosto. Vêm de um tempo futuro hipotético para além dos indecisos e das sondagens e seguem as mesmas regras de comunicação: já não se trata de mais um candidato, mas do «novo presidente» ou «presidente à moda do Porto» investido do desejado poder. Os dois afirmam assertivamente: Ganhamos! No entanto, em termos simbólicos nem tudo são vitórias. O cartaz de Pizarro é vulgar, mas pelo menos nele reconhecemos o homem (mais ou menos descontraído, em plano americano) e não formas geométricas como no início. Pelo contrário, Pedro Duarte fez o caminho inverso e transformou-se numa verdadeira imagem de banco – parece um protótipo de presidente de câmara, incaracterístico e demasiado pós-produzido, pronto para uma série da Netflix. 

Acertar contas

Então, lembrei-me do Rimbaud e das contas que tinha a acertar com ele e comigo. Parti para a tradução como o pugilista destreinado para o saco de boxe: quis treinar a musculatura. E, com isso, tentar uma nova redenção.   «Se algo há que não me enjoa / São as pedras e os torrões. […] // Fomes são pontas de ar negro; […] / — É o bucho que lateja. / É a desdita.» (’Festas da Fome’, p. 333)

Podem acordar esse senhor?

Ontem à noite, a meio do filme, alguém no público ressonava com um ronco bestial. Devia ser um sonho feliz, aquele que o homem estava a ver com os olhos da alma . Numa sequência longa sem som (um plano dos Lumière de 50 segundos) , o ronco transformou-se na banda sonora. Do outro lado da sala, outro espectador atirou: «Podem, por favor, acordar esse senhor?» Não está certo interromper o sonho de um homem.