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Debaixo da pele

O grande motor da tragédia é a morte. Ao contrário dos deuses, nós morremos e somos presa fácil de todos os seus caprichos. Mas se a morte é a nossa grande tragédia, é também o nosso ponto de fuga. O fim de tudo. O que acontece em Tatuagem , de Dea Loher, é que a morte ganha vida, reproduz-se e avança como um cancro. A tatuagem está inscrita pelo lado de dentro, no avesso da pele, não se pode arrancar senão arrancando o próprio coração. Não existe fim para a tragédia em Tatuagem . Primeiros indícios Uma família de quatro pessoas vive encerrada no interior de quatro paredes, um segredo quadrado, “a incurável doença da gaiola”. O pai Wolf, a mãe Juli, e as duas filhas adolescentes, Anita e Lulu. Os indícios começam aqui. O pai é o lobo (Wolf); a mãe é uma espécie de cão fiel do pai (Juli dos Cães), incapaz de ladrar e de mostrar os dentes; Anita é a filha mais velha, vítima silenciosa dos abusos sexuais do pai; e Lulu, a filha mais nova e rebelde . Segundos indícios Wolf é p

Leia Cícero!

Arnaud conhecia bem o fruto que se pode tirar da leitura atenta de um autor. Como lhe perguntassem o que era preciso fazer para se obter um bom estilo, respondeu: - Leia Cícero. - Mas - tornou a pessoa que o consultara -, eu queria aprender a escrever bem em francês. - Nesse caso - tornou Arnaud -, leia Cícero! Antoine Albalat, A formação do estilo pela assimilação dos autores . Tradução de Cândido de Figueiredo. "A formação do estilo pela assimilação dos autores." O título é todo um programa.

Kiarostami filma Dante

Fomos rever, após tantos anos, O Sabor da Cereja . Um aspecto que agora me parece estranhamente óbvio é a relação com A Divina Comédia , de Dante, e em particular com a primeira parte,  Inferno . É impossível não comparar a topografia de O Sabor da Cereja com os negros vórtices dos nove círculos infernais. Os longos planos de Badii percorrendo os estradões sinuosos, secos e empoeirados dos subúrbios miseráveis de Teerão, lembram a viagem de Dante pelo Inferno. Os mesmos personagens perdidos e condenados a uma vida de eterno martírio, as máquinas a revolverem constantemente a terra como demónios cegos e obstinados, os caminhos intermináveis abertos sobre abismos, exactamente como no cone invertido do inferno dantesco. O próprio projecto de suicídio de Badii, que inclui um buraco aberto junto à base de uma cerejeira e a ajuda de alguém que o cubra com “vinte pás de terra”, remete para Dante. No primeiro grande diálogo do filme, Badii tenta convencer um jovem recruta a ajudá-lo, dizendo-

Dez cavaleiros retorcendo os bigodes

"Ah, então reconheces que a gente se diverte bem na taberna de Havrda! Se conhecesses a Vlasta! Ela, antes de ser puta, era cabeleireira no teatro, e lá já era famosa, ocupava-se de perucas, uma vez, segundo me contou, esqueceram-se da caixa de maquilhagens e barbas durante uma tournée em que representavam uma comédia espanhola, chamada Cid ou Kid... e sabes como é que a Vlasta arranjou as barbas e bigodes?" O pai preferiu não responder (...). "Então a Vlasticka levantou as saias, depois pegou na tesoura e zic, zic, cortou os pelinhos, ficou toda rapada, e como ainda faltava para os bigodes, ainda cortou metade dos pêlos da ajudante de cabeleireira... colaram-nos sobre as faixas de esparadrapo, ou seja, emplastro, e dez cavaleiros andavam, pelo teatro, retorcendo os bigodes, a Vlasticka recebeu depois uma menção de felicitações do director...". Bohumil Hrabal, A terra onde o tempo parou. Tradução de Ludmila Dismánova e Mário Gomes.

Campo e Contracampo

O auditório onde fomos apresentar  Medeia , de Jean Anouilh , fica no interior de um shopping no Cacém . Um daqueles centros comerciais encapsulados no tempo desde os anos 80. Na parte central, há uma espécie de "selva" com palmeiras e plantas exóticas, atravessado por um regato artificial onde vivem peixes de aquário com tamanhos monstruosos e dezenas de cágados e tartarugas. Foi aí que Miguel Gomes filmou alguns planos de Tabu : a sequência que marca a transição para a segunda parte do filme, “Paraíso”, a partir da qual se narra a história dos amantes Aurora e Gian-Luca Ventura. Ali parado, na esplanada onde se filmou a conversa entre o velho Gian-Luca, Pilar e Santa, percebe-se melhor a intenção de Miguel Gomes: tudo o que resta daquela grande história de amor, passada em tempos coloniais portugueses, é uma "selva" de plástico, dentro de um shopping no Cacém.

Um processo simples

- Papai saiu; e o Armando está lá embaixo escrevendo. De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o clássico um grande artigo sobre "Ferimentos por arma de fogo". O seu último truque intelectual era este do clássico. (...) O processo era simples: escrevia de modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar , ao redor por derredor , isto por esto , quão grande ou tão grande por quamanho , sarapintava tudo de ao invés , empós , e assim obtinha o seu estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral. Gostava muito da expressão - às rebatinhas ; usava-a a todo o momento e, quando a punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalinos e às suas ideias uma suficiência transcendente. De noite, lia o Padre Vieira, mas logo às primeiras linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se fís

Uma estrada demasiado longa

AMA lança-se aos pés de Medeia Medeia, eu estou velha, eu não quero morrer! Segui-te, deixei tudo por ti. Mas a terra está ainda cheia de coisas boas (...). Esta versão de Medeia , da companhia Público Reservado, é pontuada por várias cortinas, reais ou metafóricas, que abrem e fecham cenas. Como um dedo invisível que virasse uma página e criasse um breve parêntese na história. Num desses momentos, a Ama é a única personagem em palco. Olha em frente, movendo um pau como se fosse um remo e estivesse a remar. Gestos lentos no início, mais velozes depois. Foi a Ama que criou Medeia, foi ela que a alimentou com o seu próprio leite, que a acompanhou na fuga com Jasão e os argonautas desde a Cólquida, testemunha silenciosa de todos os seus crimes. "Uma estrada demasiado longa.” Mas desta vez a Ama recusa acompanhá-la: não quer morrer. E à medida que Medeia atravessa o rio Aqueronte aproximando-se do mundo dos mortos, a Ama rema em sentido contrário, esforçando-se por alcanç

Uma despedida

A peça abre com Creonte a preparar-se para mais um dia, o dia em que vai morrer. Os gestos são lentos, de velho. Creonte parece já não reconhecer o seu corpo, a pele, os músculos, os dentes, os nervos. Já não é o guerreiro ágil e forte do passado. A sua história pesa toneladas sobre o corpo e a consciência. Há um momento, no entanto, em que o personagem ganha uma frescura e um brilho raros, e o tom muda. É um momento curto, mas que contém quase todas as ideias essenciais desta Medeia , da companhia Público Reservado. Creonte abre uma janela (o objecto não existe no cenário; o espectador imagina-a), o braço direito erguido, os dedos envolvendo a fechadura. O gesto é o mesmo de uma mão que erguesse um punhal. Um raio de luz incide directamente no seu peito. Creonte reage com um movimento que revela dor, mas também prazer. Uma espécie de golpe duro, mas igualmente misericordioso. A mão esquerda pousa no lugar onde a luz bate como que protegendo o coração. Ele ainda não sabe que é o ú

Pecado original

JASÃO volta-se para os homens.   Que um de vós faça guarda à volta do fogo até que não haja mais do que cinzas, até que os últimos ossos de Medeia estejam queimados. Os outros, venham. Regressemos ao palácio. É preciso viver, agora, assegurar a ordem, dar leis a Corinto e reconstruir sem ilusões um mundo à nossa medida para esperarmos morrer nele. Eis uma das marcas essenciais do texto de Jean Anouilh : a ironia. Ou melhor, um profundo pessimismo existencial que só pode traduzir-se numa longa e permanente ironia. Que mundo podemos reconstruir a partir da “nossa medida”? Se a medida do mundo é a de Jasão - que não é mais nem menos humano que os restantes personagens, incluindo Medeia, obviamente - não será um mundo condenado desde a primeira hora? Acontece que é o único que existe. Não temos outro. E o que Anouilh diz, parece-me, é que estamos condenados a viver nele sem possibilidade de salvação, manchados pelo pecado original da nossa imperfeita condição. Um mundo onde inevita

Fúria

A versão de Medeia , de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado, inclui a intervenção ao vivo de uma banda rock. É uma originalidade que não está obviamente no texto de Anouilh, mas que, na leitura de Eduarda Neves , funciona como uma tentativa de introduzir na peça uma espécie de coro grego. É uma hipótese muito curiosa e estimulante. Aceitando essa hipótese, a banda rock é um coro “negativo”, quer dizer, não ajuda a “esclarecer” a história; pelo contrário, acentua e aprofunda o drama e a solidão de cada personagem. As intervenções do coro excluem e afastam ainda mais os personagens do mundo: “não há razão, não há luz, não há descanso.” Medeia , de Jean Anouilh, pela companhia Público Reservado.  Teatro do Campo Alegre, 4 a 7 de Outubro.

Já não gosto de sangue

MEDEIA coloca-se diante de Creonte   Creonte, tu estás velho. És rei há muito tempo. Já viste homens e escravos que cheguem. Já fizeste cozinhados ignóbeis. Olha-me bem nos olhos e examina-me. Eu sou Medeia. (...) Eu sou da tua raça. Da raça daqueles que julgam e que decidem sem voltar atrás e sem remorsos. Não estás a agir como rei, Creonte. Se queres dar a Jasão a tua filha, mata-me imediatamente com a velha e as crianças que dormem ali e com o cavalo. (...)  CREONTE Por que é que tu queres morrer?  MEDEIA  Por que é que tu queres que eu viva, agora? Nem tu, nem eu, nem Jasão têm interesse em que eu ainda esteja viva dentro de uma hora, sabe-lo bem.  CREONTE faz um gesto, diz de repente em surdina Já não gosto de sangue. (...) Vês, estou a ficar velho. Uma noite é demasiado para ti. É o tempo de dez dos teus crimes. Eu deveria recusar o teu pedido… Mas também eu matei muito, Medeia. E nas aldeias conquistadas onde entrava à cabeça dos meus soldados bêbados, muitas c
UMA PALAVRA Longe de mim querer corromper a juventude, É um trabalho que sobreleva as Minhas capacidades. Antes cicuta. Mas tenho que explicar o sentido Da palavra "desesperança". É uma esperança negativa. A gente senta-se num cais E deixa o sol trabalhar. O sol minúsculo, isto é, o calor na pele. Chamo a isto a experiência mínima. Feito isto: Venha de lá então Essa catástrofe. Manuel Resende, O mundo clamoroso, ainda.

A realidade é teatro e o teatro é realidade

O aspecto mais fascinante de Five Easy Pieces , de Milo Rau, é a arquitectura. Quer dizer, a maneira como os elementos encaixam entre si, sugerindo uma construção de Lego com instruções precisas de montagem e sem margem para o improviso. Se retirarmos os elementos acessórios, ficam duas peças-mestras: a peça das crianças, que acontece no palco, e a peça para adultos, que se desenrola na cabeça dos espectadores. Em Five Easy Pieces há, pois, duas peças dispostas de maneira a evoluírem em simultâneo. Os actores crianças representam uma história que funciona para eles como uma fábula, à maneira tradicional dos irmãos Grimm, com vítimas inocentes e um lobo mau, e interpretada segundo a lógica de uma série televisiva de detectives. Trata-se de um jogo de faz-de-conta, excitante e, de certa forma, divertido. E há uma segunda história, baseada no caso real de Marc Dutroux, pedófilo e assassino confesso de várias crianças, que horrorizou a Bélgica e a Europa nos anos 90. As duas perspecti

Preparação para Medeia: mulher cão

[Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre.]

Preparação para Medeia: o desejo

All human activity is prompted by desire. There is a wholly fallacious theory advanced by some earnest moralists to the effect that it is possible to resist desire in the interests of duty and moral principle. I say this is fallacious, not because no man ever acts from a sense of duty, but because duty has no hold on him unless he desires to be dutiful. If you wish to know what men will do, you must know not only, or principally, their material circumstances, but rather the whole system of their desires with their relative strengths. Bertrand Russell, discurso na Academia Nobel, 11 de Dezembro de 1950. [Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre.]

Um post saído directamente do meu umbigo

2017 está a ser um ano bom. Em pouco mais de dois meses, conseguimos partilhar com amigas e amigos, conhecidas e desconhecidos, leitores e engenheiros astrofísicos, dois livros de que nos orgulhamos até à baba: 63 histórias de Humor e 1 Poema Melancólico , de Alphonse Allais, com tradução, introdução e notas de Filipe Guerra - um dos monstros da tradução, cuja amizade e confiança nunca saberemos agradecer convenientemente -, através da Colecção Avesso , e, agora, 145 Poemas , de Konstantinos Kaváfis, com tradução e apresentação de Manuel Resende, através da nossa editora, a Flop .  Não sei falar sobre Manuel Resende sem usar adjectivos. Dizer que é um dos mais originais poetas portugueses não chega. Lembrar que é um dos três ou quatro maiores tradutores da sua geração é pouco. Declarar que é um dos nossos sábios da literatura é curto. Dizer que é um dos nossos amigos mais queridos também está longe do que queremos realmente dizer. Manuel Resende fez o favor de confiar na Flop para e

Este é o meu corpo

Num livro esquecido dos anos 60, Jorge Semprún conta uma história que tinha lido ou ouvido de Ievtuchenko sobre Pasternak. “Certo dia” - escreve Semprún - “um operário pediu a Pasternak que lhe apontasse o caminho da verdade. O escritor respondeu: ‘Que ideia a tua! Nunca tive a intenção de apontar a alguém fosse o que fosse. O poeta é como as folhas duma árvore que sussurram com o vento, mas não tem o poder de encaminhar ninguém.’” Semprún comenta então: “Todos conhecemos este hábito dos poetas se confundirem com o reino vegetal: comparam-se a árvores, folhas, algas.” Claro que Pasternak, talvez por humildade, talvez por orgulho, não disse ao operário tudo o que pensava. É óbvio que o poeta não pode apontar o caminho da “verdade” porque ninguém sabe exactamente o que é “a verdade” e, portanto, ainda menos o caminho para lá chegar. Mas a poesia, e isso sabemo-lo todos, encerra uma espécie de verdade própria, essencial, subterrânea, capaz de revelar territórios desconhecidos no avesso d

Preparação para Medeia: ela é a mosca dentro do frasco

No peitoril estava um frasco de vidro posto de bocal para baixo. Uma mosca, não se sabia como, fora parar dentro do frasco. Não havia maneira de ela sair, e a mosca andou lá dentro todo o dia. Dentro do frasco, batido pelo sol, pairava um calor lento, indiferente, impenetrável (...) Evgueni Zamiatine, Inundação . Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. [Medeia, de Jean Anouilh. Estreia 4 de Outubro, no Teatro do Campo Alegre.]

Allais regressa aos jornais

A edição de hoje do  Jornal i  inclui um extenso texto de Diogo Vaz Pinto dedicado a 63 Histórias de Humor e 1 Poema Melancólico , de Alphonse Allais . Texto completo aqui: página 1 e página 2 .

Conto para Sara

O que aconteceu a uma menina Era uma vez uma menina pequena que foi passear a boneca e encontrou dois passarinhos muito simpáticos. Fez-lhes uma ligeira reverência e disse-lhes: «Bom-dia, passarinhos!... Querem brincar comigo?... Tenho pevides no meu saquinho e dou-lhes também.» Um dos passarinhos disse: «Eu quero!» E o outro disse: «Eu também!» E divertiram-se muito quase até à noite. A certa altura, os passarinhos disseram: «Agora queremos ir embora.» Ora bem, juntamente com a noite a chegar, chegou também à cabeça da menina um pensamento maldoso; disse aos passarinhos: «Ainda tenho pevides no fundo do meu saquinho; se quiserem, podem vir buscá-las.» Os passarinhos foram muito depressa e, crac!, a menina apertou logo os cordões e os passarinhos ficaram presos. De nada lhes valeu gritarem e gritarem: a menina levou-os no saco. Nessa mesma noite, rondava precisamente por ali um gatarrão. Ao ouvir gritar os passarinhos, apareceu logo a correr. Quando a menina o viu fez-lhe uma das suas