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Mensagens

31 de Dezembro

Último dia do ano. Ocorrem-me duas imagens de Gangbyeon hotel . A primeira é a da queimadura na mão esquerda da personagem feminina, Ah-reum. E a segunda é a da enorme planta ornamental no bar do hotel que, nas palavras do velho poeta, Yeong-hwan, precisa de ser regada.

Reescrever Casanova

Jean Laforgue, no século XIX, era professor de francês. Trata-se de um laico escrupuloso e sério como os que se fabricavam na época. Pedem-lhe para reescrever Casanova. Mete mãos à obra. Pára nesta frase a propósito de mulheres: "Sempre achei que aquela que eu amava cheirava bem, e quanto mais forte era a sua transpiração, mais suave ela me parecia." Laforgue reflectiu trinta segundos. Não, no século XIX (como acontece hoje, aliás), uma mulher não transpira . Corrige então esta incongruência e escreve: "Quanto às mulheres, sempre achei suave o odor daqueles que amei." Philippe Solers, Casanova, o Admirável . Tradução de Maria Irene Bigotte de Carvalho.
Só tenho jeito para coisas pequenas. Mas às vezes gosto de imaginar edifícios enormes, cheios de pormenores — projectos para abandonar a meio. Por exemplo: um curso de literatura através dos filmes de Godard, à deriva, com pistas falsas e becos sem saída. Podia começar aqui: La poésie, c'est qui perd gagne.

X + 3 = 1

Nota-se nos filmes e nas entrevistas, Godard — e isso quer dizer cada vez mais “o pensamento Godard” — assemelha-se a um monte de silvas, dessas que crescem por aí nos descampados, cheias de espinhos, cobertas de pó. As amoras estão quase todas fora do nosso alcance. Para as apanhar, arranhamos as pernas, os braços e as mãos.

Amo-te Joana

Num painel informativo da estação de metro do Marquês, alguém escreveu: «Amo-te Joana Couto-S. Teu… Hugo.» Podem cortar as árvores dos jardins e derrubar todos os muros. Os livros podem acabar, a literatura desaparecer, o papel extinguir-se. Mas nunca acabarão as declarações apaixonadas por escrito, em locais públicos ou proibidos. Talvez esta seja a prova definitiva da nossa fé no poder da escrita. Mesmo quando o amor se apagar, restarão aquelas longas e perenes reticências.
Como contar, outra vez, uma história de judeus em fuga? Christian Petzold escolheu um modo arriscado de responder a uma pergunta difícil. Ao transpor a deriva de Georg para o nosso tempo, sem roupa da época, sem símbolos nazis, sem qualquer artifício, “Em Trânsito” adquire uma força potencial — como se fosse filmado sobre um vulcão adormecido. A perseguição não é sequer um facto que podia ter acontecido aos nossos avós ou aos nossos pais; a distância foi suprimida — estamos dentro da fuga, da incompreensão, da vergonha, da infâmia, da burocracia, do desespero. Somos obrigados a pensar o que se passa sem os rodeios da História, de uma forma mais crua, talvez, e também mais sensível. O que acontece, outra vez, ao amor num sistema opressor? Cada uma das personagens tem a sua história para contar e, dadas as circunstâncias, precisa de o fazer o mais depressa possível. O filme vai guardando esses relatos que se assemelham a gritos surdos. Melissa, Driss, o maestro, a arquitecta, o médic...
Acto Isolado Podia ser um poema de cinquenta e tal páginas: palavras cheias de pressa; rudes, talvez; um pensamento inacabado; nem sequer ainda um pensamento, apenas um jacto de sons. Mas não, designa a “emissão de um recibo pela prática esporádica e imprevisível de serviços ou transmissão de bens”. Mais uma vez, as finanças passaram a perna à nomenclatura da poesia.

Non capire è importante

Dante è un enigmatico, e almeno una volta accettiamolo per quel che è. Ha i suoi motivi per non farsi capire subito, e qualche volta per essere assolutamente impenetrabile. È una corsa stremante tra luci e tenebre, stelle, lune, soli, misteriosi frammenti di edifici regali e sacri, con mutile, occulte scritte. Il percorso è talora nitido, geometrico; talora è paludoso, è uno strisciar tra cunicoli ed antri. Non capire è importante. Giorgio Manganelli, Corriere della sera, 1984

Férias

Fim de umas curtas férias de quatro dias. Esperei longa e ansiosamente por estes dias para pôr em ordem várias ideias adiadas. E, no entanto, não consegui fazer nada do que planeara. A sensação de «liberdade» bloqueou-me. Já me acontecera antes. Como um preso a quem tivessem concedido alguns dias de liberdade condicional e que não soubesse o que fazer com o tempo. Lembro-me de Austerlitz, o personagem de Sebald, que quando finalmente se reforma e tem tempo para coligir os seus estudos em livro, é incapaz de realizar o grande projecto da sua vida: «Quanto maior o esforço que ao longo de meses dediquei a esta tarefa, mais lamentáveis me pareciam os resultados e mais o mero abrir dos maços e virar das incontáveis páginas por mim escritas me invadia de um sentimento de relutância e asco, disse Austerlitz. E, no entanto, ler e escrever tinha sido sempre a sua actividade favorita.»

Dentro e fora

“Como escrever o romance de toda a gente? Como é estar no Porto quando isso é o mesmo que estar em Aachen? Como é estar impregnado de um  spleen  que subtrai as personagens à História e a todo o enraizamento local? Como é ver o mundo familiar a partir de um olhar que apreende a sua paradoxal estranheza?” O Rui foi para fora. Aproveito para espalhar umas estrelas e depois vou para dentro.

Intimidade dos Armazéns do Chiado

O pajem do pajem

(...) Já o trilho começava a subir e já a noite começava a cair. Simão pegou de novo no bandolim, que manejava como um feiticeiro. A história senta-se de novo numa pedra atrás dele e escuta com grande assombro. É uma tarefa cansativa, esta de contar histórias. Sempre a correr atrás de um rapazote romântico, pernalta e bandolineiro, e sempre à escuta de tudo o que ele canta, pensa, sente e diz. E o diabo do pajem não pára quieto, e nós temos de ir sempre atrás dele como se fôssemos na verdade o pajem do pajem. Ouve um pouco mais, paciente leitor, se tens ainda ouvidos, pois dentro em breve diferentes personagens prestarão as suas mais submissas reverências. As coisas animam-se. Surge um palácio; achado para um pajem à procura de castelos em ruínas. Mostra agora a tua arte, filho, senão estás perdido. E ele mostra. Canta para a donzela que se dá a ver na varanda do primeiro andar com voz tão doce, tão mentirosa, que o coração dela necessariamente se comove. Temos penedos, pinheiros e paj...

Mon Cas

Ando às voltas com Mon Cas , de Manoel de Oliveira. Em especial, a última parte do filme, que adapta o Livro de Jó . Tenho muitas perguntas. Em tempos, Oliveira explicou a escolha deste texto bíblico da seguinte forma: O substracto comum é o homem. É a humanidade. A existência do ser perante os homens e perante Deus. É a posição... a posição do homem, de um lado e de outro.  (...) E a figura de Job é como se fosse a figura da própria Humanidade, da humanidade pecadora, castigada por Deus e que tem que expiar o seu pecado. (Manoel de Oliveira - Cem Anos, p. 114.) A explicação não me satisfaz. Há qualquer coisa muito mais pessoal. Jó não será uma máscara de Manoel de Oliveira? As provações de Jó não serão uma representação dos seus filmes? A escolha do texto não será uma declaração de fé do cineasta em si próprio, no seu trabalho? Uma fé inabalável no cinema, no poder criador da arte? Uma fé à prova de todas as contrariedades? Depois disso, Jó viveu ainda cento e quarenta an...

Lavandaria

Há várias semanas que é impossível secar a roupa em casa. Pequenas multidões socorrem-se das lavandarias de bairro. Um a um, entregamos os lençóis ao olho redondo e guloso da máquina. Enquanto se espera, uns mergulham nos telemóveis. Outros abandonam-se aos rodeios da sonolenta telenovela que passa na televisão. Outros ainda fixam-se nas voltas que a roupa dá no tambor da máquina. E, de repente, numa espécie de estranha simetria, o pensamento também volteia entre o passado, o presente e o futuro, mas sem o programa certo, sem detergente e sem amaciador.