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A mostrar mensagens de setembro, 2022
Nunca ter visto nenhum filme de Bela Tárr foi uma sorte, agora posso imaginar as imagens d’ O Tango de Satanás  à vontade. São todas assustadoras. É curioso que o filme tenha sido rodado a preto e branco. Ao ler o romance de László Krasznahokai, sinto uma cor a alastrar: um castanho esverdeado profundamente agonizante, uma cor de carácter geográfico, digamos assim, que nunca é nomeada mas entranha-se como uma doença. Tem a ver com a chuva a misturar-se com a terra e restos orgânicos e é um prenúncio de podridão.

Fin de partie

Uma das coisas que mais me impressiona em Godard é a forma como ele se dedica às pessoas e às ideias, como decifra palavras, imagens, gestos, sons, a própria alma; como baralha tudo e depois afasta-se a alta velocidade, ultrapassando os objectos amados. Parece um cometa ou uma máquina inteligentíssima e selvagem feita de luz, sombra, mãos. Também foi assim na morte: antecipou-se a Federer, deixou para trás o estuporado do Cioran. Ficamos tão desamparados.

Dia Mundial do Turismo

(...) O Sindicato recebeu recentemente uma reclamação sobre um hotel de cinco estrelas do Porto em que os trabalhadores saem às 23:00 e às 05:00 da manhã já têm de estar no hotel para servir os pequenos-almoços. (...)

O charme discreto da burguesia

Ontem à noite fomos a Coimbra ver a Companhia de Latão, de São Paulo. Depois do espectáculo , ficámos mais um pouco para assistir à conversa com os actores e o encenador. Quando tudo terminou, e enquanto ainda estávamos dentro da sala, muito filosoficamente distraídos com os amigos, vi os próprios actores e o encenador desmontarem o cenário e arrumarem os adereços. Gestos simples, precisos e experientes de mil anos. Minutos antes, tínhamos estado a falar sobre poder, dinheiro e exploração do trabalho. Voltámos para casa. Dormimos tranquilos. A consciência limpa como um lençol branco e cómodo.

Fórmula negativa

No meu cartão de segurança social figura a menção: escritor não assalariado. Se acrescentássemos um outro «não» antes de escritor, a fórmula seria exacta e a minha situação perfeita e claramente definida. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Cor-de-rosa

Alguém decidiu cobrir o edifício da Câmara do Porto com duas telas colossais onde figuram imagens da rainha de Inglaterra . Parecem as páginas centrais de uma gigantesca revista cor-de-rosa, pousada no cimo da Avenida dos Aliados. Papel de revista sem préstimo nenhum, inútil para acender fogueiras ou embrulhar peixe.

Fazer um bocado de arqueologia

Ao ler a entrevista de Paulo Nozolino , as coisas que ele diz sobre o Mediterrâneo, aquela fotografia do rochedo — ah, é uma alegria estranha perceber que conseguimos adivinhar certas relações invisíveis. Deve ser isto que as bruxas sentem.

Espectros

À noite, sem mesas e cadeiras, as esplanadas que ficaram do tempo da pandemia lembram palcos de teatro. Centenas de palcos espalhados por toda a cidade. Vazios, silenciosos, abandonados. Os fantasmas dos actores do passado divertem-se.

Serviço público

Mais de metade dos comentadores portugueses… Que digo? Muito, mas muito mais de metade dos comentadores portugueses acusam o primeiro-ministro de mentir nas contas do «programa de apoio às famílias». Estão revoltadíssimos com as mentiras do primeiro-ministro. Mas no domínio do chamado «combate político», mentir não é mentir, trata-se apenas de estimular a imaginação. E a imaginação é tudo. Gera notícias, alimenta os telejornais e os debates televisivos, sacode as paixões nos tascos e nas redes sociais, e, acima de tudo, permite aos comentadores soltarem as suas ventosas opiniões.

Igrejas

Passeio pelo campo. Torfou, Saint-Sulpice-de-Favières. Para mim, o único prazer em todas essas aldeias é a igreja. Na verdade, o que mais gosto em França são as igrejas, até mesmo antes da paisagem.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Um exemplo

As senhoras das hortaliças do Bolhão insurgiram-se contra a nomenclatura vigente e ganharam: o limão está nas bancas das frutas e das hortaliças, como é devido.
 

A lei do mercado

Não há casas no Porto para os tripeiros! Não há quartos para os estudantes! Não há sequer um anexo nas traseiras para os professores! A cidade está a abarrotar de turistas e donos gulosos de alojamentos locais. No céu, há mais gruas do que gaivotas. O senhor director do jornal está chocado. Ainda não tinha reparado. Afinal, o Estado deve intervir e corrigir esta «anormalidade do mercado» (as palavras são do senhor director). O mercado tem destas coisas, pobrezinho: às vezes fica a modos que «anormal». Mas é raro.

Oh — a poesia!

Exercício prático n° 1: defender a poesia de uma forma oposta; quer dizer, livrá-la dos seus protectores, deixar que escape aos afagos que entorpecem, que fuja pela janela ou pelas traseiras. Para onde quiser ir — até mesmo para o raio que a parta.

Pessoas desconhecidas em álbuns de família

Manhã de sábado, esplanada da Leitaria. Um guia turístico, vindo dos Leões, aproxima-se, erguendo no ar um guarda-chuva fechado, como um pára-raios a apontar para o céu. Atrás dele, uma palmípede fila de 15 ou 20 turistas. O guia pára junto à esplanada, espera pacientemente que os turistas formem à sua frente um semicírculo perfeito e começa a apresentar a Leitaria: «Fundada em 1920», «há várias gerações que os portuenses amam e frequentam a Leitaria», «a especialidade são os éclairs», «todos os dias produzem mais de 35.000 bolos», «o sucesso levou a casa a expandir-se para outros locais, incluindo o Corte Inglês, em Gaia»… Os turistas tiram fotos à fachada de plástico, às mesas compradas no IKEA, ao preçário com imagens dos bolos, às pessoas que estão sentadas na esplanada. Olho à minha volta. Devo ser o único portuense naquelas fotografias.

Só sou feliz quando encontro uma «fórmula».

Arranjei mais uma possibilidade para traduzir cafard : tristeza constante.  Agrada-me por si mesma, pelo seu ar de fórmula clínica, e também porque estabelece diálogo (ainda que do contra) com a dúvida, medo e desespero de Espinosa.  Agora vou ter de rever de novo o Caderno da Talamanca . E ando nisto.

Pathos

Estão três pessoas na sala. O filme começa com três vozes em off a narrarem uma versão alternativa do mito cristão da criação. Não há imagem, apenas as vozes, o verbo. A imagem entra em fade um pouco mais tarde. No exacto momento em que a imagem surge na tela, o filme encrava. O projeccionista repete três vezes o início do filme e três vezes o computador ou o disco encravam. A sessão é cancelada. A obra chama-se Pathos . A primeira parte da trilogia de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Pathos Ethos Logos . O título fez-se carne.

Fazer aparecer a imagem

A forma perfeita como Violet descreve o mundo ao seu marido cego, no conto As Mulheres do Afinador de Pianos , é idêntica à forma como William Trevor escreve.  Este procedimento atinge o auge na cena que antecede as revelações em Depois da Chuva .  Aliás, suspeito que as revelações só acontecem porque as descrições do quadro A Anunciação  e das videiras são exactas.  Se continuar, ainda acabo por encontrar nestas passagens uma definição de tradução.  É assim que a aranha trabalha.

Conselho à nação

Perguntaram a uma mulher que vivia no campo se o inverno tinha sido muito frio. «Não muito», respondeu. Depois acrescentou: «Houve apenas três ou quatro dias em que tivemos que ficar na cama para nos mantermos quentes». John Cage, indeterminacy #92

Stalker

É mais ou menos a meio do filme. O stalker, o professor e o escritor estão no coração da Zona e a poucos metros do edifício em cujo interior se encontra o «quarto», esse local secreto onde os desejos mais íntimos podem milagrosamente realizar-se. O stalker explica que para lá chegarem não podem optar pelo caminho mais curto e seguirem em linha recta até ao edifício. Pelo contrário, têm que escolher o itinerário mais longo, andando às voltas, como num labirinto. O professor, homem da razão, da técnica e da ciência, aceita e respeita o absurdo da regra do stalker. O escritor, homem da ficção e da fantasia, recusa. É uma rasteira simples, mas espantosa de Tarkovsky.

Premonição

Só quando cheguei a casa é que reparei que dois dos livros, apesar de tão afastados entre si, são de índole meteorológica: Geada e Depois da Chuva . Vai ser um inverno rigoroso.

Ia ser feliz

Muitas vezes um homem desordenado que vai morrer e o pressente, organiza as coisas à sua volta. A sua vida modifica-se. Arruma papéis. Levanta-se cedo, deita-se a horas. Renuncia aos seus vícios. Os que o rodeiam, felicitam-se... A sua morte brutal parecerá por isso ainda mais injusta. Ia ser feliz. Raymond Radiguet, O Diabo no Corpo .

Disneylândia

Oito da manhã. Ligo a rádio para ouvir o noticiário. O jornalista dispara: «Marques Mendes considera…», «Marques Mendes entende…», «Marques Mendes pensa…», «Marques Mendes observa…» A peça termina ao fim de uns penosos dez minutos, mas a imaginação continua: «o Rato Mickey opina…», «o Pato Donald avalia…», «o Tio Patinhas reputa…»