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A mostrar mensagens de janeiro, 2025
Paulino Viota: (...) seria necessária uma sintaxe feita de condicionais e conjuntivos para dar conta desse cinema espanhol onde o mais importante seria o «não-ser». Porque o cinema que fizemos, pois sim — mas o cinema que não fizemos, ah!

Impressão de realidade

Após a leitura da primeira cena, um actor levanta a hipótese de o Fantasma consistir num simples truque de prestidigitação. O «prodígio» seria, na verdade, alguém disfarçado de fantasma do velho rei. Alguém interessado em forçar Hamlet a agir e a assassinar Claudius. Quem?

Selfie XXII

Sinto sempre uma grande alegria quando um cão me reconhece apesar de nunca nos termos encontrado antes. Cada um desenvolve a vaidade que lhe convém.

O destino do Fantasma

O fantasma do velho rei da Dinamarca começa a assombrar os muros de Elsinore. Para neutralizar o espectro e dar-lhe sepultura, é preciso um sacrifício: o jovem Hamlet deve vingar-se, assassinando o novo rei. Enquanto não forem cumpridos esses ritos funerários, o espectro continuará a errar por Elsinore. No final, o sacrifício cumpre-se: o rei é morto. Mas nada se sabe sobre o destino do fantasma. Desceu definitivamente ao mundo dos mortos? Ou permanece entre os vivos, assombrando um príncipe após outro, exigindo mais um assassínio, e outro, e outro ainda? Até aos nossos dias. Pensa-se que Shakespeare representou, ele próprio, o papel do Fantasma. Era o único que verdadeiramente lhe assentava.

Espérer, plus d'espérance

Quando vi Le Livre d’image pela primeira vez (2018), achei-o um bocado distante, duro e fugidio; um objecto exigente que se dirigia apenas à cabeça. Na altura não soube, ou não quis, interpretar essa impressão. Mas a exposição do Fabrice Aragno no Palácio Sinel de Cordes (2023) emocionou-me tanto que fiquei baralhada. Ontem percebi o conflito: o filme de Godard é um pensamento em acção que passa a grande velocidade — um comboio-bala que não conseguimos acompanhar, que nos olha do futuro (qual distância brechtiana, qual quê!) A exposição Éloge de l’image – Le Livre d’image , pelo contrário, era uma espécie de acampamento onde nos podíamos sentar e chorar como Mouchette.

La Poursuite (1961)

O primeiro filme de Jean-Claude Biette, rodado em 9,5mm. Cinco ou seis pessoas viram a curta-metragem projectada no ecrã, depois La Poursuite desapareceu. Mais uma para As peças que Faltam , de Henri Lefebvre.

A velha tradição dos ladrões de malas

A história do deputado da extrema-direita que roubava malas lembrou-me um episódio contado por Cioran nos Cadernos : «Gertrud Kantorowicz, ao viajar com todos os inéditos de Simmel, perdeu-os a todos, pois a sua mala foi roubada enquanto ela estava no vagão-restaurante.»  (Tradução de Cristina Fernandes.) Na longa tradição dos ladrões de malas, imagine-se um nazi dos anos 20 ou 30 a abrir, ansioso e malandro, uma mala que acabara de roubar, e a descobrir, desiludido, um monte de gatafunhos sobre sociologia.

Dos jornais XIV

A imagem de um deputado a andar pela Assembleia da República com uma mala gigante cheia de malas mais pequenas é grotesca. Parece Marnie filmada pelos irmãos Marx. Ou um filme marado da Looney Tunes.

Para Anne-Marie Miéville e para mim mesmo

Também podemos pensar nas História(s) do Cinema como cartas de amor (para Mary Meeerson e para Monica Tegelaar, para John Cassavetes e para Glauber Rocha, 
para Armand J. Cauliez e para Santiago Alvarez
, para Michèle Firk e para Nicole Ladmiral, para Gianni Amico e para James Agee
, para Frédéric C. Froeschel e para Nahum Kleiman
, para Michel Delahaye e para Jean Domarchi, para Anne-Marie Miéville e para mim mesmo).

Dos jornais XIII

Luísa Ferreira da Silva tem 65 anos e uma banca de charcutarias. Trabalha no Bolhão desde os 10. “Já a minha avó cozinhava aqui as tripas.” Não contesta a decisão da ASAE. Apenas que essa decisão a obrigue a atravessar o Bolhão com quilos de carnes. “Quem eu critico são as pessoas que não me dão condições para poder cozinhar.” Conta o dia a dia: “Carrego as carnes num carro de mão até às cozinhas, que são no lado oposto ao da minha banca. Tenho de subir escadas até ao andar de cima e até as cozinhas não têm condições. E depois dizem aquelas pessoas que não querem acabar com as tripas. Querem e querem correr connosco”, concluiu, secundada por Fernanda, 76 anos, outra das resistentes. “É cruel o que nos estão a fazer. ”   Luísa descreve:  “ Aqui só cheira a massas a cozer e a queijos derretidos. A estrugido, a fritos nas Air Fryer. Tudo é permitido, menos as nossas tripas. ”

Dormir bem

Nazmul Hazari, imigrante no Porto, diz a um jornalista que em Portugal talvez não se ganhe tanto como noutros países, mas «come-se bem, bebe-se bem, dorme-se bem, vive-se bem e isso é o essencial». É a ideia mais bonita que já li sobre este país: um sítio onde se dorme bem.

Paisagem de arcos flamejantes

Ia escrever que o bairro das Fontaínhas era o Monument Valley de Pedro Costa. Mas depois fiquei com dúvidas: Vanda, Ventura, Vitalina e tantos outros é que são o Monument Valley. Todos eles são filmados como se fossem paisagens (nocturnas, lunares, vulcânicas, submarinas, áridas...). O trabalho de Pedro Costa é misterioso: começa como geógrafo de campo e acaba poeta relutante. 

Swell

Vi They Were Expendable pela primeira vez e sem legendas, por isso estive mais atenta ao que as personagens dizem e fiquei admirada porque a palavra mais repetida neste filme amargo, onde morrem tantos homens e tantos ficam para trás, é swell . Só me faltava esta, encostar John Ford aos «linguístas licenciosos».

Visões

Há um triângulo equilátero (ou uma pirâmide?) em História(s) do Cinema: o vértice A é o «(s)»; os segmentos A-B e A-C são «História»; e o segmento B-C é «Cinema».

A foca

Françoise Frontisi-Ducroux explica como a foca representa, nos antigos mitos gregos, a ideia de anfíbio: «Criatura mista, com características de peixe e de mamífero, que gosta de se estender na areia húmida no seu vaivém entre o mar e a terra, a foca é uma figura ideal de intermediário, apta a encarnar fronteiras e passagens entre categorias habitualmente distintas, ou mesmo opostas. É precisamente isto que as histórias de metamorfoses põem em cena.» O general Della Rovere é a foca no filme espantoso de Rossellini , que passou no Batalha, e que ainda não tínhamos visto. De trapaceiro a benfeitor e vice-versa; de colaboracionista a resistente e vice-versa; de Rossellini a De Sica e vice-versa.
Tirando os problemas técnicos (Serralves não tem capacidade de rede para projectar ficheiros sem saltos no som?) e o final abrupto sem qualquer tipo de diálogo, a conferência de Nicole Brenez sobre as conferências de Godard no Conservatório de Arte Cinematográfica em Montreal e o subsequente livro Introdução a uma Verdadeira História do Cinema foi muito interessante. Nicole ofereceu-nos o resultados das suas minuciosas pesquisas sem qualquer tipo de afectação — parecia uma jovem detective excitada com as suas descobertas dotada de um discurso amoroso e inteligente que agarra logo. Em relação à edição do livro (e sabemos como os livros são cruciais na vida do cineasta-historiador), Nicole contou dois factos importantes. Godard escolheu uma pequena editora (éditions Albatros, fundada em 1970 sobre a égide da palavra «liberdade») e não, por exemplo, os Cahiers du Cinéma apesar de na altura até estar de boas relações com a sua equipa editorial. Houve uma primeira tiragem (em 1980:...

Dois filmes realistas

Logo à noite, vou substituir a cinemateca portuguesa pela francesa  (mais à mão). Femmes Femmes (1974, Paul Vecchiali) fica para o fim da semana .

O que era?

O truque é óbvio. Já foi usado mil vezes por mil autores diferentes. Mas é sempre espantoso: «É com grande relutância - confesso - que me disponho a contar o que se segue. Os acontecimentos que pretendo relatar desenvolvidamente são tão extraordinários que não deixo de esperar a mais completa incredulidade e o desdém geral. Aceito desde já ambas as coisas. Creio ter a coragem literária suficiente para aceitar o cepticismo. Após madura reflexão, decidi narrar, com toda a simplicidade e com toda a honestidade de que sou capaz, certos factos que me foi dado observar no passado mês de Julho e que não têm equivalente nas crónicas dos mistérios das ciências físicas.» Fitz James O’Brien, O que era? Tradução de Manuel João Gomes.

«A família do cinema»

Quando se fala da família de actores de Ford, não é bem no sentido literal, de sangue; trata-se um conjunto de actores queridos ao cineasta que passam de filme para filme e transportam um fascínio que se poderia classificar de metacinematográfico. Como John Ford é avesso a esses conceitos académicos, talvez seja mais justo dizer que é uma comunidade (com tantos irlandeses à mistura!) que, após uma breve cisma e alguma insistência, nos abre a porta, aperta-nos a mão e oferece-nos um copo. Por um momento (graça das graças), o espaço entre dentro e fora do filme anula-se, estamos todos no mesmo plano, somos todos espíritos de carne e osso. Mas na sequência no bar d' O Homem Tranquilo em que Sean ganha a confiança da gente de Innisfree quando esclarece quem é, quem foi o seu pai e, acima de tudo, quem foi o seu avô ( his grandfather over grand man he was, was hung in Australia ) — a família é mesmo família. O velho que o ouve é Francis Ford, o irmão mais velho que o levou para o ci...

Um gesto de amor

A forma de encarar o contraponto, proposta por Schönberg, não como uma técnica musical que desenvolve, mas movimento que desemaranha, pode ser um bom ponto de partida para analisar as História(s) do Cinema . A matéria do projecto de Godard é tão desmesurada que podemos passar a vida a pesar, medir, confrontar o que vemos, ouvimos, fica na sombra. Escrever páginas e páginas de relatórios. Dar em loucos.  

Observações avulsas sobre o bonfim #70 (fado da frutaria)

A maior parte das frutarias populares do Porto é território agreste. A fruta é barata, por isso os clientes (gente com pouco dinheiro, muitos imigrantes) aguentam as repreensões constantes e não se melindram com os avisos colados nas paredes. Apanho quase sempre a Sofia irritada e aos berros na caixa. Hoje de manhã, depois das brejeirices habituais, gritou a um cliente: não arranque as folhas do coração, eu não vejo, mas ouço .

A nossa vida

Stagecoach (à esquerda), Bear and Rabbit, Castle Rock. Stagecoach é um western antológico por várias razões: foi um dos primeiros filmes a ser rodado em Monument Valley; lançou John Wayne como estrela (aquele plano para a frente e com desfoque é uma espécie de foguete?); e muitos dos seus planos serão repetidos ao longo da história do cinema porque são cinematograficamente poderosos e, acima de tudo, alimentam os mitos fundadores dos Estados Unidos. Porém, o que mais me agrada no filme são duas coisas um pouco afastadas dos topos, mas mais importantes e regulares na obra conjunta de Ford. 1. A forma como as personagens secundárias (?) brilham, tornando-se inesquecíveis. Em cada plano que aparecem — Peabody, o bêbado e certeiro Doc Boone, o banqueiro golpista ou as velhas harpias que ficaram em Tonto, por exemplo — ganham uma materialidade espontânea que é como o vento nas árvores e nos incita também ao movimento*. 2. E ainda o modo como John Ford trabalha a oposição entre esp...

Enquanto dormia no meu canto

Início do Capítulo IV, de A Estalagem do Dragão Voador , de George Sheridan Le Fanu: «Quando um homem viajou na posta o dia inteiro, mudando de clima de meia em meia hora, quando um homem está satisfeito consigo mesmo, não tem quaisquer aborrecimentos e está sentado à lareira, num cadeirão confortável, depois de uma refeição copiosa, esse homem tem desculpa de se deixar adormecer. Tinha já enchido o meu quarto copo quando adormeci. Devo dizer que o espaldar a que encostava a cabeça não era muito confortável; de mais a mais, quem deseja ter sonhos agradáveis não come toda uma série de petiscos franceses. Ora, enquanto dormia no meu canto, tive um sonho.» Tradução de Manuel João Gomes.

Reflexos condicionados

Acabar 2024 com um plano de Rio Grande . Começar 2025 com um plano d’ O Homem Tranquilo . — What do you think of cinema today? John Ford: I don't go anymore. I don't see why humanity likes that which stresses stupidity and lowliness. Sex, obscenity, violence, ugliness, decadence and degeneration don't interest me. Excesses disgust me. What I like is effort, the will to go beyond oneself. For me, life is to be oneself in the face of friends who you punch in the nose, and then you drink and sing together. It is the attraction to real women, and not the Miss Bovarys. It's the fresh air, the great outdoors, the great hopes.