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Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2025

Gaza

Nunca compreendi a leviandade dos alemães e do mundo perante o crescimento do estado nazi, a aceitação da caça e extermínio de judeus, ciganos e todos aqueles que não encaixavam na proclamada superioridade física ou ideológica do regime. Por mais que leia, não compreendo como foi possível aceitar a maldita eficiência dos campos de concentração. Mas a história tem recuos espantosos e agora compreendo um pouco, apenas um pouco: não é connosco, não mexemos uma palha, nem sequer temos a curiosidade (ou os remorsos?) de Mr. Klein. Vamos ficar na história como um bando de gente muito indiferente e muito cruel que compactua com o intolerável. Temos um peso enorme às costas.

Filosofia em acção

Na sexta-feira de manhã tivemos formação sobre Inteligência Artificial generativa. Muito deslumbre sem justificação (só têm olhos para o raio da eficiência, quando é o contrário que é preciso) e, para finalizar, a ideia ingénua de que vamos voltar à filosofia e à Grécia antiga (aposto mais no deboche do império romano). Quando saí da sala, disse que no futuro seremos todos filósofos . À tarde encontrei esta notícia . Um belo raccord .

Ir ao mercado

Ouvido no mercado. Duas mulheres velhas e gordas prestes a terminar a conversa. Uma diz à outra: «Para se viver tranquilo, não devemos sair do rame-rame da vida.» Uma manhã destas, fui ao mercado (como todos os dias). Depois de dar três voltas, saí incapaz de me decidir por o que quer que fosse. Nada me tentava, não tinha vontade de nada. Em tudo, a escolha tem sido a minha perdição ao longo da vida. Noutro dia, no mercado, olhei por um instante para uma cabeça de boi cuja pele tinha sido arrancada. Os olhos, ou o que deles restava, deram-me um calafrio terrível. No mercado, uma mulher horrível, com cabeça de águia, começou a gritar comigo porque eu tinha acabado de passar entre ela e a banca. «Você não é educado. Um cavalheiro não deve passar à frente de uma mulher, etc.» Ela insiste. Fraqueza incrível da minha parte, tento justificar-me e enervo-me tanto como a mulherzinha. Nisso, como sempre, sensação de mal-estar físico. Decididamente, só morto alcançarei a indiferença. ...

O público espera que a história acabe mal

«Conta-se que Jean Gabin exigia antes de assinar um contrato para fazer um filme que o argumento contivesse uma cena em que ele se encolerizasse e matasse alguém. A história é provavelmente falsa, mas merece ser verdadeira. Não seria um capricho de vedeta, mas a consciência do seu personagem. Seja qual for o argumento do filme, Gabin não pode ter um destino que não seja o seu. Se fosse necessária uma prova suplementar do destino excepcional de Gabin, bastaria notar que ele é talvez o único ator do mundo diante do qual o público espera que a história acabe mal. Por conseguinte, Gabin tinha razão em exigir o ataque de fúria homicida, pois este constitui o momento significativo de um destino imutável, no qual o espectador reconhece, de filme em filme, o mesmo herói de uma Tebas suburbana e operária.» André Bazin, citado por Antonio Rodrigues.

Dos jornais XXIV

Numa reportagem de um canal de televisão, um homem disse que o que falta aos políticos é imaginação. Já passaram uns dias, mas são essas palavras e não outras que ressoam na minha cabeça.

Dos jornais XXIII

«Ontem de manhã, dia de eleições, fui repescar uma grandiosa frase de Salgueiro Maia que devia estar escrita na pedra. Numa altura em que, no País, se questionava se o povo tinha instrução e capacidade de fazer as suas escolhas nas primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte, o Capitão de Abril veio, numa rara entrevista em 1974, simultaneamente afastar partidarismos e resumir ao que vinha. “Não há limites para as possibilidades de opção, e se o povo quiser ir para o inferno, é para o inferno que iremos”, disse ao Expresso. (...)» Mafalda Anjos, CNN.

Pensar com as pernas

Desci Fernão Magalhães e depois fui da Senhora da Hora até ao Pedro Hispano a pé a ensaiar a aula sobre o filme de Ford. Que maravilha: as palavras circulavam na minha cabeça com uma fluidez espantosa — pareciam bolinhas de sabão. O problema é que quando páro, lá se vai a graça, meto os pés pelas mãos

O estado a que chegámos!

João Bénard da Costa: (...) Num filme, como em qualquer visão, é sempre preciso olhar segunda vez porque há sempre um fundo sobre um fundo e sobre outro fundo. Diz-se, e tem-se dito muitas vezes, que John Ford é um cineasta evidente; tudo se percebe à primeira vista. Se há filme que desminta totalmente essa teoria — todos a desmentem, mas neste flagrantemente — é Liberty Valance. É preciso ver muitas vezes para chegar a ver. Se há cineasta em que o campo é o mais profundo esse cineasta foi John Ford. Estas palavras do Bénard são tão certeiras. Estou a preparar a aula da próxima terça-feira sobre O homem que matou Liberty Valance e fico espantada com coisas que nunca tinha visto, por exemplo, o corte radical entre o plano da casa de Tom Doniphon a arder e a chegada de Ranson Stoddard a Capitol City. (A economia de meios é assombrosa, como é que Ford consegue dizer tanto com tão pouco? Como é que consegue ir à raiz da realidade? Que cinema é este?) Os 16:44 minutos seguintes da ce...

Observações avulsas sobre o bonfim #72

O Rui das Frutas Frescas mudou para a Rua do Bonfim (junto à Confeitaria Abreu) e a movida dos sábados de manhã no Campo 24 de Agosto perdeu profundidade de campo. Agora, passa-se tudo no outro passeio: o vai e vem da vendedora de meias e o friso de cervejas matinais no Café Saudade.
 
«Nestas páginas bravias, descobrimos uma mulher que diz o que pensa, filma como quer e já não tem nada a perder. Trabalhando nas margens e sobre as palavras, Duras prefere vaguear sem destino. Não sabe para onde vai, diz ela, mas não aceita que lhe cortem o direito à inteligência ou às suas próprias contradições — ora aqui está uma bela definição de liberdade! De certa forma, ela foi sempre uma estranha no cinema, alguém que veio da escrita e não foi aceite pelos «polícias do cinema, esses que o guardam, que dizem: aqui, é a imagem, e não palavras à-toa». Talvez tenha sido essa estranheza que a empurrou para tamanha insolência. O cinema só poderá continuar se cortar com as amarras monetárias que o dominam e fecham, diz ela. É isso. Um apelo destemido, sem dúvida, mas como nos mostrou a mulher que pede boleia na estrada e todas as noites inventa a sua vida, um acto de loucura pode ser um acto de amor — o maior de todos.» Apresentação do livro O Camião seguido de entrevista por Michelle ...

«Pensei muitas vezes nessa mulher»

Devia ter vinte e tal anos quando vi O Camião pela primeira vez numa sessão no antigo Instituto Francês, na Praça da República. Era um objecto estranho e atraente como um redemoinho. Depois vi tantos filmes que o fui esquecendo. Nos últimos anos voltou a surgir, mas agora as imagens, palavras e música vinham de dentro de mim, um reflexo, um filão de memórias que se impunham. Comecei a fazer o caminho do reencontro. Os travellings que imito aos domingos de manhã pelas estradas nacionais dos subúrbios. A aproximação àquela mulher louca e politicamente tão lúcida. O exercício de tradução. A tradução é o passo mais arriscado — até tremo.

Coisas para arreliar a autora

Foi editada dois anos depois da Chantal (ajuste de contas com 1975). O Camião está encostado a O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, de Karl Mark ( Ela diz: sabe, Karl Marx, acabou-se ). A fotografia na contracapa é do Saviem azul de trinta e duas toneladas (tão assustador como o carro assassino de Carpenter). A Ana Jotta partiu o livro de cima abaixo. E eu, com a ajuda valente do João, tomei muitas liberdades. No fundo, adoramos O Camião .

Que tudo vá para o inferno!

Na próxima quinta-feira vou a Lisboa . Vai ser o ponto alto da campanha eleitoral.

É para nós um enigma

O salteador afastou as abas da camisa e o referido membro da associação viu o que nunca esperaria ser obrigado a ver e empalideceu. (...) Mas que terá o salteador mostrado ao membro da associação? Não fazemos a menor ideia. Robert Walser, O salteador . Tradução de Leopoldina Almeida.
Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Que se lixe o céu

Foi logo no início do filme. Enquanto Cary se veste para ir a uma festa, a filha anda pelo quarto a serigaitar e a dizer uns disparates freudianos aprendidos à pressa; às tantas pega num livro que está pousado na mesinha de cabeceira e pergunta-lhe: estás a ler isto? Nem espera pela resposta, ao ver a mãe, belíssima num vestido vermelho decotado, larga o livro e volta a palrar, agora sobre as mulheres egípcias enterradas vivas (depois havemos de saber que a miúda é tremendamente conservadora e as suas ideias — mais os óculos e o lencinho — não passam de teorias pré-casamento).  É um pormenor que passa despercebido, em princípio não é importante. Pois, mas esse livro cujo título fica fora de campo criou um sobressalto na minha cabeça — igualzinho à ervilha debaixo do colchão. No regresso a casa ainda vinha a pensar no mistério. Queria que o livro fosse para Cary o que Walden era para Ron. A cada hipótese que lançava, criava uma mulher diferente, menos medrosa, mais descarada, etc...

Livro e rua

Passo a tarde de sábado a ler no Célia. (A seguir, escrevi a frase «uma tarde tão doce e macia como um biscoito», mas entretanto risquei-a.) De vez em quando, levanto os olhos do livro e observo as pessoas a caminharem entre Miguel Bombarda e o Rosário. E tudo se mistura: as pessoas na rua e as personagens no livro; as personagens na rua e as pessoas no livro.

Lexicografia

cioranesca/o   (cio·ran·es·ca) adjectivo e nome feminino e masculino Diz-se da pessoa que cita Cioran em demasia.  Origem etimológica: cioran + esca . [A sonoridade romena dá e tira gravidade à classificação; pode ser elogio ou insulto. Na frase «ela não passa de uma cioranesca», porém, não há nenhuma ambiguidade.]