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Mensagens

As boas percepções

Para que exista uma verdadeira segurança no nosso comportamento e na forma como sentimos o mundo, é preciso que exista sempre um tudo-nada de oscilação, de flexibilidade. O chão debaixo dos nossos pés pode e deve oscilar e, para podermos manter o nosso rumo em direcção à perfeição, precisamos de ter continuamente a percepção de que não nos dominamos ainda perfeitamente e de que, porventura, a nossa evolução não está ainda completa.  O Salteador, de Robert Walser. Trad. de Leopoldina Almeida. Relógio d’Água. Janeiro de 2003.

Observações avulsas sobre o bonfim #76

O partido e a coligação que podem ganhar a presidência da câmara já fixaram os últimos cartazes da campanha no Campo 24 de Agosto. Vêm de um tempo futuro hipotético para além dos indecisos e das sondagens e seguem as mesmas regras de comunicação: já não se trata de mais um candidato, mas do «novo presidente» ou «presidente à moda do Porto» investido do desejado poder. Os dois afirmam assertivamente: Ganhamos! No entanto, em termos simbólicos nem tudo são vitórias. O cartaz de Pizarro é vulgar, mas pelo menos nele reconhecemos o homem (mais ou menos descontraído, em plano americano) e não formas geométricas como no início. Pelo contrário, Pedro Duarte fez o caminho inverso e transformou-se numa verdadeira imagem de banco – parece um protótipo de presidente de câmara, incaracterístico e demasiado pós-produzido, pronto para uma série da Netflix. 

Acertar contas

Então, lembrei-me do Rimbaud e das contas que tinha a acertar com ele e comigo. Parti para a tradução como o pugilista destreinado para o saco de boxe: quis treinar a musculatura. E, com isso, tentar uma nova redenção.   «Se algo há que não me enjoa / São as pedras e os torrões. […] // Fomes são pontas de ar negro; […] / — É o bucho que lateja. / É a desdita.» (’Festas da Fome’, p. 333)

Podem acordar esse senhor?

Ontem à noite, a meio do filme, alguém no público ressonava com um ronco bestial. Devia ser um sonho feliz, aquele que o homem estava a ver com os olhos da alma . Numa sequência longa sem som (um plano dos Lumière de 50 segundos) , o ronco transformou-se na banda sonora. Do outro lado da sala, outro espectador atirou: «Podem, por favor, acordar esse senhor?» Não está certo interromper o sonho de um homem.

Frases finais de alguns contos de Walser

«Com uma risada, bebi a minha cerveja e parti.» «Quem tem vontade de amar levanta-se dos mortos, e só quem ama está vivo.» «Sebastian, por sua vez, fez-se ao mundo e com o tempo tornou-se célebre.» «E assim a nossa história chegava a um fim feliz: e é isso o mais importante, quer dizer que amanhã o tempo vai estar bonito.» «E com isto tomo a liberdade de declarar que esta história chegou ao fim.» «Foi com o coração pesado que me decidi a contar esta história.» «Este burlesco texto em prosa deixou-me sério.»

ZOV #1

Desde que li ZOV , não paro de encontrar personagens do livro por aí à solta. Hoje de manhã, um homem desatou a dar socos no ar na praia de Leça. E eu pensei com os meus botões [ botões na praia não, pensa com outra coisa ]: olha, mais um tipo inventado pelo Rui.

Dos jornais XXXVII

As senhoras da limpeza têm um verdadeiro sentido escatológico da vida das famílias ou empresas para quem trabalham. Aprendi isso nas viagens de autocarro e em muitas conversas pedagógicas. Agora também posso juntar os partidos:  A senhora que limpava a sede do partido revela que «por vezes a sede parecia uma taberna! Rasca! Enfrascavam-se de uma maneira… Se esta gente governasse o país, eu emigrava…»  Creio que temos aqui uma definição lapidar de choldra.

Não é de agora

Inteligência Artificial. Na apresentação do livro de André Príncipe, o autor fez uma blague formidável sobre o assunto. Eu anotei: «A inteligência artificial não é de agora. Houve e haverá sempre pessoas cuja inteligência é artificial. Para elas, isso não é um problema.»
Seguro na palma da mão um tigre branco, perfeito.

Talvez sim, talvez não

«E assim teríamos um final/ agradável com um casório/ feliz», dizem todas as personagens a uma só voz, na última cena da Bela Adormecida . Parece o final feliz de um conto de fadas, mas não. O verbo no condicional – «teríamos» – abre uma ferida na história. Walser escreve a última frase com uma navalhinha.

Como pode ser verdade se tu dizes que é mentira?

O que é «verdade» e o que é «mentira» nos dramalhetes de Walser? Quando é que as personagens estão a ser «verdadeiras» e quando estão a «mentir»? Alguém na mesa diz: talvez a verdade esteja na mentira. Quer dizer, quando estão ostensivamente a «mentir» é quando as personagens são mais «verdadeiras».

Experiência

No monólogo do Príncipe da Gata Borralheira , de Walser, substituir o sapato de prata, que parece «ter boca e o dom da fala», pela caveira de Yorick. E na cena do cemitério, em  Hamlet , substituir a caveira do bobo do Rei pelo sapato da Gata Borralheira .

Imobilidade em movimento

O sentimento de que corre tudo mal existiu em todas as épocas, e com razão, já que o maior prazer dos homens é inventar maneiras de tornar a vida uns dos outros miserável. A afirmação dos conservadores de que a sociedade actual é má, mas a seguinte será ainda pior, é irritante e até mesmo insuportável. E, no entanto, a história confirma este diagnóstico à risca. Que fazer? Tornar-se budista ou aceitar o Progresso de olhos fechados? Esta superstição vem do tempo do Marquês de Condorcet, e a sua influência tem sido enorme. A ideia de Progresso é uma forma atenuada de utopismo, um delírio aparentemente razoável sem o qual as ideologias do século passado, assim como as do nosso, teriam sido impossíveis. A originalidade do ponto de viragem histórico que estamos a testemunhar reside no facto de este delírio estar a ser contestado, submetido a uma lucidez fatal — um despertar ao mesmo tempo libertador e terrível. As velhas categorias de «direita» e de «esquerda» parecem ultrapassadas. Eviden...

Morte programada

O capítulo 33 de Desejar Desobedecer , de Didi-Huberman, é dedicado ao Gueto de Varsóvia: “No interior desses muros, a população judaica foi deliberadamente submetida pelos nazis à fome. Começou, nessa altura, a morte programada de todo um povo.” É difícil não pensar em Gaza. Adenda:  Nem de propósito, a edição de hoje do Público  (21 de Setembro) traz uma longa entrevista com Didi-Huberman. O pretexto é justamente o livro Desejar Desobedecer . Uma passagem: “a actualidade é a continuação da História por outros meios. É fundamental trabalhar sobre a questão da História e de uma forma permanente. O horror de Gaza não nos deve [levar a] considerar o horror da Shoah como coisa do passado. Não concordo nada com essa ideia. É a mesma história, é a mesma história. O passado nunca passa.”

Eu e o Príncipe ficamos a assistir

A certa altura, a Rainha chama o caçador e manda-lhe que represente a cena do assassínio fingido de Branca de Neve: Como se fosse verdade, representa-nos aqui a cena da Branca de Neve em perigo na floresta. Faz como se a quisesses matar. E tu, menina, foge como se fosse a sério. Eu e o Príncipe ficamos a assistir, censurando-vos se fordes demasiado mansos no desempenho dos papéis. Ora bem, começai. De repente, Hamlet irrompe no conto de Walser . A peça dentro da peça, outra vez. Fantasmas por todo o lado.