Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2020

Mais actividades lúdicas

Sempre considerei a “escrita feminina” um conceito literário parvo e sem interesse. Mas agora que ando a reler — muito devagar, nunca mais do que um por dia — os contos tardios da Flannery O’Connor, resolvi reabilitá-lo por algum tempo. Uma técnica de provocação que aprendi ontem com Rufus Johnson.

Máscara

Os jornais dão conta de que o uso de máscara vai ser obrigatório em múltiplas situações. É impossível não pensar no teatro. De um momento para o outro, somos forçados a usar máscara para continuar a desempenhar o nosso papel na grande representação do mundo. O teatro já não imita a vida. É a vida que imita o teatro. DUQUE SÉNIOR Bem vês que não estamos sós no infortúnio: Este teatro imenso e universal Tem representações mais lastimáveis que a cena Em que entramos. JAQUES O mundo é um palco E todos os homens e mulheres simples actores: Têm as suas saídas e entradas, E, em vida, um só homem tem vários papéis (...). Shakespeare, Como vos aprouver. Tradução de Fátima Vieira.

Estado de excepção

Prolongar a “Memória e Esquecimento”, adiar a “Velocidade, Aceleração”. A revista Electra está a comportar-se à altura das circunstâncias.

Vizinho

Não sei o nome. É o homem que passa a manhã à janela, no prédio em frente. Começámos a cumprimentar-nos com um gesto silencioso de mão e um sorriso tímido de cortesia. A pandemia devolveu-nos alguns gestos, mas também algumas palavras. As palavras «janela», «vizinho», «rua», «bairro». Ou o termo «redes sociais». Pouco a pouco, entre uma janela e outra, de um lado ao outro da rua, limpamos a gordura que se acumulou sobre as palavras e redescobrimos a sua pureza.

Revolução

Chega sempre um dia em que as coisas mudam, explica o personagem Rublev, no epílogo do monumental O caso do camarada Tulaev , de Victor Serge. A Revolução é uma aventura e um risco. «Para o mundo exterior, tão sedento de estabilidade», manter em aberto a grande pergunta sobre o sentido da vida é uma audácia demasiado perigosa. «[Nós, os revolucionários de 1917,] exigíamos a coragem de prosseguir as façanhas, mas o povo queria segurança, descanso, esquecer o esforço e o sangue.» Robert Kramer diz qualquer coisa bastante parecida em Outro País , o filme de Sérgio Tréfaut sobre o 25 de Abril: «É uma situação muito perigosa, assustadora, caótica, que nos pode explodir na cara. Historicamente, a riqueza da experiência humana é elevada por esses momentos. São muito instáveis. Aparentemente, as pessoas não aguentam viver assim por muito tempo.» No ciclo cardíaco, uma sístole é seguida de uma diástole. E depois de uma diástole vem necessariamente uma sístole. Em que ponto da história estamos

25 de abril

A CMTV desapareceu da grelha de canais cá em casa. Deve ser uma comemoração espontânea do 25 de abril. —— Voltei atrás para confirmar, Jerónimo de Sousa disse mesmo “salamizar” quando comentou o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa. Não encontrei a palavra no dicionário, mas apenas por distração dos lexicógrafos pois “salamizar” e “salamização” já têm um percurso histórico e materialista . —— Jerónimo de Sousa ofereceu-nos ainda uma definição do 25 de abril formidável: (não deixaremos de comemorar, celebrar, aquele que foi)  o acto mais moderno e avançado da nossa época contemporânea . —— A fotografia de José Sena Goulão . A bandeira é enorme e pesada, mas o olhar foge-me para o saco de plástico branco na mão esquerda.

Evolução no sentido intelectual

Wesley, o filho mais novo, tivera febre reumática aos sete anos e Mrs. May pensava que esse fora o factor determinante para a sua evolução no sentido intelectual. Greenleaf, de Flannery O’Connor. Tradução de Clara Pinto Correia. Cavalo de Ferro, novembro de 2006.

- E agora?

Lembro-me daquele plano de um dos filmes mais misteriosos de Herzog. O carro a rodar em círculos, sem parar e sem ninguém ao volante. Como um estranho relógio a marcar as horas de um outro mundo. De um outro mundo ou deste mundo?

O chapéu

surge logo no segundo parágrafo e estende-se até ao nono. É verde e púrpura. Tem um aspecto desconchavado. Avança no conto como um som baixo e grave — que é o que costuma acontecer às peças de roupa quando desempenham papéis perturbantes na literatura. A mãe de Julian não vê nada de ridículo no chapéu. Pelo contrário, usar um chapéu assim — um pouco mais caro mas, por isso mesmo, distinto — e luvas é uma marcação social, diz aos outros que ela é alguém  (uma Chestny) e sabe quem é ( se tiveres consciência de quem és, podes ir seja onde for ). O chapéu é um estandarte da sua dignidade imaginária , sublinha Flannery O’Connor. O chapéu desdobra-se na missão. A frase que a empregada da loja usou para convencer a mãe de Julian a comprá-lo — com esse chapéu, não vai andar por aí igual às outras — aparece em duas conjugações quase seguidas. Apesar da tradução do Rogério Casanova me agradar mais do que a da Clara Pinto Correia, é preciso recorrer à expressão original — you won't meet

Ponto de situação

O que se sabe, com segurança, sobre o vírus? Sabe-se que pode ser fatal, que em alguns casos provoca sintomas graves, noutros apenas ligeiros e, noutros ainda, não provoca sintomas nenhuns. Pode acontecer tudo, incluindo nada. Exactamente como numa história de Daniil Harms.

Divertimento com chapéu verde e púrpura

Comecei com “Tudo o que sobe deve convergir”. Li o conto que dá nome ao livro, uma edição de 2006 da Cavalo de Ferro, traduzido por Clara Pinto Correia. Depois descobri a tradução, mais recente, de Rogério Casanova para a Relógio d’Água . No confronto das duas versões apercebi-me de uma frase muito discordante e fui procurar o original . A este ritmo, nem o lay off chega para me divertir a sério com a Flannery O’Connor. Ah, em “Tudo o que sobe deve convergir” o humor é o chapéu. (...) O chapéu era novo e custara sete dólares e meio. Ela não parava de dizer «Se calhar não devia ter gasto tanto dinheiro. Não, não devia. Vou devolvê‐lo amanhã. Nunca devia tê‐lo comprado.» Julian ergueu os olhos para o céu. «Não, claro que fez bem em comprá‐lo», disse. «Agora ponha‐o na cabeça e vamos embora.» Era um chapéu hediondo. A aba de veludo púrpura, dobrada para baixo de um dos lados, arrebitava do outro; o resto era verde e com o aspeto de uma almofada vazia. Decidiu que era menos cómic

Corredor

O minúsculo corredor de casa. Dois ou três passos são suficientes para o percorrer de um extremo ao outro. Até há pouco tempo um simples espaço de passagem, meio despido e cinzento. Agora, o coração da casa. A grande artéria urbana que liga a cozinha e a sala, com os seus néons, montras e bugigangas.

Bandeiras despregadas

Acabei de receber uma mensagem da ARS Norte a oferecer apoio psicológico por telefone, de segunda a sexta-feira, das 8:00 às 20:00. É um gesto simpático, mas em vez disso vou reler o que tiver cá em casa da Flannery O’Connor. Desta vez vou ter em atenção apenas o humor das situações. Desconfio que vou rir a bandeiras despregadas.

São todos perigosos

Tenho andado a pensar nisto: quando devolver os livros à biblioteca, os livros vão ser considerados suspeitos. Imagino que antes de voltarem às estantes sejam recolhidos com luvas, levados para uma câmara de desinfecção, higienizados. E isso vai acontecer a todos os livros das bibliotecas que estão — por agora e sabe-se lá até quando — retidos nas nossas casas possivelmente contaminadas. São todos perigosos. Os livros à nossa semelhança.

Câmara ligada

Longas e intermináveis reuniões de teletrabalho. Horas e horas com a «câmara ligada». O meu rosto no ecrã tem uma força magnética qualquer. Não consigo desviar o olhar de mim próprio. Todos os movimentos e gestos me atraem. Mexo no cabelo com a intenção de me ver. Sorrio e passo a mão pelo rosto como num filme. Os gestos mais simples e involuntários parecem controlados, estudados, ensaiados, falsos. Estou a representar o meu papel e sou um péssimo actor. Bresson jamais me contrataria.

Onde crescem os citrinos

Primeiro a biblioteca prolongou a entrega dos livros 15 dias, agora o prazo é indefinido: quando as coisas voltarem ao normal funcionamento . Mesmo assim, com tanto tempo disponível, tive de me obrigar a acabar as “Viagens” de Olga Tokarczuk. Fiz alguns sublinhados, mas não consegui desenvolver uma ideia íntegra da obra. De repente, a literatura parece uma tarefa desproporcionada. Características do Peregrino Certo amigo de longa data confessou-me que não gostava de viajar sozinho porque, quando via algo invulgar, novo ou belo, queria partilhar essa experiência com outra pessoa e sentia-se muito infeliz se não tinha ninguém com quem o fazer. Em minha opinião, uma pessoa assim não serve para peregrino. (Página 144) Acrescento apenas que, contrariamente ao mestre, van Horssen não tem jeito para o desenho. É um anatomista que contrata um desenhador profissional para cada uma das suas autópsias. O seu método de trabalho consiste em apontamentos rigorosos, tão pormenorizados que, qu

Da Corujeira à Foz

Quem anda pela cidade percebe que o medo do contágio também tem uma geografia. Enquanto na parte oriental nota-se já — ou ainda — uma certa descontração (os pobres estão habituados a tudo). Nas zonas mais ricas a apreensão é maior: as pessoas fecham-se em casa, só saem de carro, usam máscaras, luvas e tudo que puderem para se proteger. Não é só medo da doença.
Podemos denunciar os anúncios inspiracionais covid-19 à ASAE por prática de pieguice especulativa?

Lento regresso à normalidade

Os jornais de hoje dão conta de que entramos numa nova fase da gestão da pandemia: começa agora o «lento regresso à normalidade». A primeira imagem que me ocorre é a do velho Biaggio, em Roma, Cidade Aberta , que durante a rusga das tropas nazis não quer fazer-se de morto, expondo familiares e vizinhos ao risco de prisão ou, pior do que isso, à morte. Para o convencer, Don Pietro, o padre da comunidade, usa um argumento de peso: uma sertã aplicada com afinco no cocuruto do velho. Após a rusga e passado o perigo, Don Pietro tenta reanimar o pobre ancião desmaiado, como a Itália do pós-guerra, que acorda para um lento e penoso regresso à normalidade.

Protocolos

Desconfio que os portugueses vão usar a máscara social  do mesmo jeito que decidiram vestir os coletes refletores nos bancos dos carros. Les portugais sont toujours gais. C’est ça le miracle.

Lições de literatura

Ela sorriu-lhe, com o seu cabelo castanho e olhos encovados, com os seus dentes irregulares mas bonitos, com os seus lábios... Como definir uns lábios? «Você tem uns lábios encantados», pensou Kostia, olhando-a directamente, sem timidez; mas nunca se atreveria a dizer o que estava a pensar. Victor Serge, O caso do camarada Tulaev . Tradução de Francisco Silva Pereira.

Rubem Fonseca

À rudeza do seu estilo de base, feito de concreto, acrescenta a extravagância do vitralista. E ainda deixa toda a construção à mostra: betão, vidros coloridos, andaimes, entulho, a exuberância da língua. Ah, a exuberância da língua.

Fantasia submarina

Leio em Truffaut que os primeiros filmes de Rossellini foram documentários sobre peixes. Mordo o isco e encontro Fantasia submarina , uma curta-metragem, de 1940, que não é bem um documentário, mas uma fábula com animais marinhos. Rossellini construiu um aquário em casa para filmar o oceano. Segundo parece, o realizador e o director de fotografia, Rodolfo Lombardi, usaram vários peixes mortos, que animaram com truques engenhosos para dar vida à narrativa. Uma mentira para dizer a verdade. Hoje, encerrados nos nossos aquários de peixes mortos, falta-nos o sabor benévolo da mentira. Só há verdade.

Primeiro dia de lay off

Nunca liguei muito ao carro. Sempre utilizei os transportes públicos para ir trabalhar. Agora o meu carro transformou-se num instrumento de libertação de fronteiras. Nota: o relógio da Estação de São Bento ainda está pela hora antiga.

Fronteira

O CoVid-19 deslocou as políticas da fronteira que tinham lugar no território nacional ou no superterritório europeu em direcção ao nível do corpo individual. O corpo, o teu corpo individual, como espaço vivo e como trama de poder, como centro de produção e consumo de energia, converteu-se no novo território sobre o qual as agressivas políticas de fronteira que temos vindo a desenhar e a testar há vários anos se expressam agora sob a forma de barreira e de guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica passou das costas marítimas da Grécia para a porta do domicílio privado. Lesbos começa agora na porta de tua casa. E a fronteira não pára de te cercar, de se aproximar cada vez mais do teu corpo. Calais explode agora na tua cara. A nova fronteira é a máscara facial. O ar que respiras deve ser só teu. A nova fronteira é a tua epiderme. A nova Lampedusa é a tua pele. Paul B. Preciado, no jornal Punkto.

Nota prévia

Todos os livros que um dia se escreverem sobre este período de confinamento poderão usar, como nota prévia, este parágrafo de Fran Ross : «Neste livro não existe estado do tempo propriamente dito. Numa ou noutra ocasião, fazem-se vagas alusões às condições meteorológicas. O leitor deverá, ao longo da narrativa, imaginar o estado do tempo que mais lhe agradar. O Verão é o que faz mais sentido num livro desta extensão. Assim, não é preciso gastar páginas e páginas a descrever pessoas a despir e a vestir sobretudos.»

Influenciadores do século XX

(Godard — magnífico estilo Luiz Pacheco —  em diferido .)

A ilha

Há mais de um mês que, após um estranho naufrágio, uma onda vigorosa nos lançou para esta ilha. A ilha é pequena, plana e praticamente não tem segredos. Já percorremos mil vezes as costas e o interior. Nada de novo. Neste momento, já não sei qual dos dois é Crusoe ou Sexta-feira. Talvez sejamos ambos ao mesmo tempo. Às vezes penso que não existe uma maneira de sair daqui e que vamos ter de viver para sempre com os nossos machados, os nossos papagaios e as nossas pequenas provisões de latas de conserva. E o pior é que sinto um vago e secretíssimo prazer nisso.

Um mundo de acordo com os nossos desejos

Há muitas maneiras de traduzir lay off . As que mais me agradam são “deslargar”, “descartar” e “desamparar” — como na frase “desampara-me a loja”. Como quem enxota uma mosca. É preciso o máximo de informalidade na tradução para desmontar a hipocrisia dos actos empresariais. Só assim conseguiremos agir de acordo com os nossos desejos. Não esperem gratidão.

The weather in Wrocław is almost summery

From my window, I can see a white mulberry, a tree I’m fascinated by—one of the reasons I decided to live where I live. The mulberry is a generous plant—all spring and all summer it offers dozens of avian families its sweet and healthful fruits. Right now, the mulberry hasn’t got back its leaves, and so I see a stretch of quiet street, rarely traversed by people on their way to the park. The weather in Wrocław is almost summery: a blinding sun, blue sky, clean air. Today, as I was walking my dog, I saw two magpies chasing an owl from their nest. At a remove of just a couple of feet, the owl and I gazed into each other’s eyes. Animals, too, seem to be waiting expectantly, wondering what’s going to happen next. (...) By Olga Tokarczuk, The New Yorker, April 8, 2020

Ficção

O vírus tirou o tapete aos artistas, os grandes criadores de fantasmas. O que escrever, o que filmar, o que pintar, quando a ficção se transformou literalmente na realidade? Há um mês, a ideia de um mundo suspenso, com as ruas desertas, as escolas vazias, lojas e cafés fechados, milhões de pessoas em prisão domiciliária, funerais sem familiares, há um mês, dizia, todas estas ideias podiam ser pistas para uma ficção meio distópica. Hoje, no momento em que escrevo, a distopia é pensar no mundo em que vivemos até aqui. A realidade dita «normal» é agora uma ameaça à nossa condição. Uma esplanada na Baixa, alguns amigos, algumas cervejas, sem luvas e sem máscaras, eis a distopia dos nossos dias.

Life is sweet at the edge of a razor

Por volta das 13h00 aqueço o almoço no micro-ondas. Como em frente à janela (copas de árvores, telhados de casas, duas gruas ao fundo). Massa com brócolos e queijo; descasco uma laranja. Depois vou apanhar sol como os trolhas. Subo Antunes Guimarães até Pereiró, viro à esquerda, desço por Aarão de Lacerda. A minha rotina já era assim, nada mudou — apenas agora tudo ao redor está em suspensão. And I want to know the same thing everyone wants to know: how it going to end?

Litania

Escrevo porque não quero morrer. A escrita é uma maneira duvidosa de enganar a morte, mas é a única que conheço. Quando não escrevo, leio. O sentido é o mesmo: distrair a morte com palavras, jogos, histórias. Ler e escrever são sinónimos. Em ambos os casos, actua a imaginação com todo o seu poder de fogo. Claro que isto não passa de uma bagatela, mil vezes repetida por toda a espécie de aprendizes de feiticeiro. Mas talvez essa ideia vulgar de que a escrita ajuda a adiar a morte nunca tenha estado tão próxima da verdade mais íntima do tempo e das coisas. Ao escrever isto, uma e outra vez, como uma litania, estou a viver mais umas linhas, um parágrafo.

Caracol entra com um passo firme

Hoje de manhã estava um caracol no pára-brisas do carro. Quando todos ficam em casa, a natureza avança — parece que é esse o ritmo. Nem raposa, nem corças; calhou-me o passo lento do caracol. © The Trustees of the British Museum

Retrato-robô psicológico para apanhar um criminoso

A maior parte dos adjectivos utilizados para caracterizar o coronavírus COVID-19 são de cariz psicológico: inteligente, agressivo, imprevisível, perverso, perigoso, bem-sucedido, potente, teimoso, forte, resistente, comum, ruim, letal, persistente, novo, sorrateiro, exigente, desafiador, mutável, desconhecido, mortal, discreto, sério, grave, e por aí fora. Parece que estamos a elaborar um retrato-robô psicológico para apanhar um criminoso.

Relógios

Dir-se-ia que o domingo não passou de um sonho. Sem horas, sem minutos. Um sonho de paredes brancas e relógios sem ponteiros, como no pesadelo que anuncia ao Prof. Isak Borg a sua própria morte.

Imagens

A imagem do vírus está por toda a parte: nas capas e nas páginas dos jornais, nos cenários virtuais dos noticiários televisivos, nos cartazes das lojas e dos supermercados. É representado como uma esfera estilizada coberta por uma espécie de espinhos. Faz lembrar as velhas almofadas de alfinetes usadas pelos alfaiates. Somos assim. Precisamos desesperadamente de imagens. Precisamos de ver «o rosto do inimigo». Como as representações do Mal na iconografia cristã. O diabo nas pinturas de Bosch.

Glossário básico COVID-19

Achatar a curva, ADC, aerossolizar, agente de saúde pública, álcool, assintomáticos, aviso, barreiras de protecção, centro de rastreio drive thru, cerca sanitária, compressão na mola, confinamento, contágio, controlo de fronteiras, coronabonds, dar negativo/positivo, dificuldades respiratórias, distanciamento social, drone, encerrado por tempo indeterminado, equipamento de protecção individual, estado de emergência, etiqueta respiratória, febre, ficar em casa, gel desinfectante, grau de incerteza, guerra, hospital de campanha, hospital de primeira linha, infectados, inquérito serológico, isolamento profiláctico, layoff, letalidade, luvas, máscara cirúrgica, máscara FFP2, máscara social, médicos intensivistas, medidas de contenção, mitigação, morbilidade, morrer com/ por Covid, pandemia, papel higiénico, passear o cão, planalto, quarentena, rastrear, Rt, teletrabalho, testar testar testar, teste de imunidade, tosse, triagem smart, UCI, vacina, ventiladores, vírus, viseira, vulnerabilida

Pietas

Já referi que os negócios começaram a prosperar. O dote de Friederike viera em boa altura; tornou-se independente e autónomo, fundando a conhecida agência funerária «Pietas». O momento foi favorável pois coincidiu com uma epidemia de gripe. Os médicos e os farmacêuticos não tinham mãos a medir; e os cemitérios encheram-se. Na Baixa-Saxónia costuma dizer-se: «O que para um é uma coruja, para outro é um rouxinol.» Ernst Jünger, O problema de Aladino . Tradução de Ana Cristina Pontes.

Diário da guerra aos porcos

O livro de Bioy Casares pode resumir-se mais ou menos da seguinte maneira: uma manhã, os velhos e reformados de Buenos Aires descobrem que se transformaram num alvo a abater. Grupos de jovens percorrem as ruas e os lugares da cidade à caça de idosos, considerados inúteis e um peso para a sociedade. Começa então uma cega e bárbara «guerra aos porcos». A primeira vítima é o velho vendedor de jornais, Don Manuel, brutalmente assassinado ainda no capítulo inaugural do livro. Eliminar os velhos e os jornais. Eis o programa perfeito para começar um suicídio colectivo. Bioy Casares morreu vinte e um anos antes da grande pandemia. Mas não dá ponto sem nó.

Aviso

O espectáculo desenrola-se no interior de uma estrutura fechada. Não é aconselhável a pessoas que sofrem de claustrofobia ou transtorno de ansiedade. Ao aceder à estrutura, os espectadores terão obrigatoriamente que desinfectar as mãos e depositar todos os seus pertences (sapatos, casacos, sacos, carteiras, mochilas, etc.) no bengaleiro. O espectáculo é falado numa língua misteriosa e sem legendas em português.

Comment c'est

Tantas recomendações de leitura, mas só me apetece ler a realidade. Como se fosse um filme de Godard, o velho. Cortar, colar. E um cão.

Endgame

Ao redor do bunker alternam-se dia e noite, sol e chuva, vivos e mortos, infectados e recuperados. Do lado de dentro, somos dois: Hamm e Clov. Tu és Hamm e eu sou Clov. Ou tu és Clov e eu sou Hamm. É a minha vez de jogar. Ou é a tua. Já não sei. Não interessa. Cada vez conto pior esta história.

It was a bright cold day in April, and the clocks were striking thirteen.

Os direitos de autor de 1984 deviam ter entrado no domínio público este ano, este mês, hoje, por voto próprio. Empurrar a caducidade para o ano seguinte àquele em que o prazo se completa, conforme prevêm os Códigos, é deixar escapar um  raccord  orwelliano perfeito. Ganha a lei (“Embora eu não seja contra os piratas, esta edição é pirata”), perde o nome (Antígona).

Há pouco, ouvi na rádio um «elemento das autoridades» dizer que a resignação e o sacrifício são coisas a que «muitos portugueses» já estão habituados durante o período pascal. A «esses portugueses» não faltará a fé para suportarem melhor o confinamento. Senti-me agoniado.