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Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2022

Cimeira dos passos perdidos

Para além das palavras (banir os trabalhadores, saturar a resiliência, afrouxar a disrupção, etc. etc.), as agências de comunicação também deram cabo das camisas brancas. Vesti-me como Asako e afinal parece que vou para uma cimeira.

Gralha

Num dos textos de Grãos de Pólen , Fernando Guerreiro escreve sobre as emendas a lápis que faz nos seus próprios livros e que constituem «uma marca do seu constante inacabamento»: «Essa errata permanente do texto (...) tem a ver com o simples facto de que dou erros e que, sendo míope, mesmo revendo as provas há sempre coisas que me escapam.» A única gralha que encontrei no livro, pelo menos até agora, aparece exactamente no início desse texto. A palavra «desaparecimento» está grafada «desaparecimenrto». Não interessa se o erro é voluntário ou não. É um momento de pura epifania.

Tango gregueríano (operação Ramón e um palito)

Não me saiu nada na raspadinha (o destino despreza sempre as boas intenções literárias, raisoparta), mas já desviei 21 euros para ajudar o querido Ramón a pagar à gráfica .

Tango finlandês

Às vezes a entrada envidraçada do abandonado Hotel Nave parece uma cena do Kaurismäki: mantas de diversas cores e sacos de supermercado cheios. Dois homens sentados em cadeiras — calados. Bebem (vodka ou cerveja?) e ouvem música (em língua russa?) Nem de propósito, no JN de hoje: (...) Sobre o aumento do número de sem-abrigo na cidade, Fernando Paulo salientou que o Porto tem "uma forte atratividade" para as pessoas em Situação de Sem Abrigo (...)   Por este andar, “a forte atratividade” ainda há-de aparecer na Monocle em fine papers.

A Grécia de que falas

Bastava o nome Manuel Resende ou, se quisesse somar qualidades, o trabalho meticuloso do Rui Manuel Amaral e da Tatiana Faia, a intrepidez editorial da Língua Morta. Mas não foi nada disso, o amor também tem minudências: abri o livro à sorte, encontrei a palavra “ganapos” na página 149 e caí na armadilha de uma relação inevitável.

Mesa de São João

Sem saber, herdei da minha avó um jeito especial para cozinhar. Hoje resolvi homenagear a aldeia de Moreanes (e a Adriana) ao almoço: costeletas de borrego com favas e hortelã para acompanhar vinho da casta baga. Agora vinha mesmo a calhar mais um filme do Hong Sang-soo no Trindade.  Como não há, vou ter de o imaginar.

Utopia

(...) Apesar de não ser considerado um dissidente, Boris Barnet situava-se claramente fora do cinema soviético instituído. Os seus filmes eram demasiado inclassificáveis e, digamos, de uma natureza mais dionisíaca do que real socialista. Foi o que aconteceu com À Beira do Mar Azul , realizado em 1936. Ninguém compreendeu o filme, atacaram o argumento simples, fútil, emocional, uma realização demasiado feérica e pouco credível. Mas de que serve uma história num filme, se todo ele é ritmo? De que serve uma imagem frouxa da realidade, se temos à nossa frente um confronto íntimo com os homens, os seus sentimentos, a sua gravidade e a sua leveza, o maravilhoso desequilíbrio humano? A beleza e graça que passam pelos corpos e pelos planos (a «alegria física dos encontros», de que fala Bernard Eisenschitz ), deixou indiferente a crítica. E, no entanto, agora à distância, percebemos bem que esta pequena aventura numa ilha perdida ao Sul do Cáspio, em que os heróis afogam-se e renascem, chegam e...

Escravos

Há um pequeno conto de Giorgio Manganelli que, filmado por Stéphane Brizé, podia ser uma versão alternativa, com ligeiras alterações, do seu mais recente filme, Um Outro Mundo . É o conto oitenta e um, de Centúria : Na cidade governada pela Princesa Sanguinária, todos os homens, uma vez ou outra, se apaixonam pela Princesa, e se apresentam na corte para pedi-la em casamento. Ela nunca diz que não, mas propõe ao homem que pretende casar com ela uma questão: por vezes é complicada, outras vezes é simples, exactamente uma pergunta de escola primária. Em todo o caso, o pretendente cometerá inevitavelmente um erro, talvez um erro irrelevante, mas que não escapará nunca à Princesa, e o pretendente será morto. No dia seguinte, apresentar-se-á um novo candidato, e não terá sorte diferente. Na realidade, a Princesa é mulher delicada, afectuosa, que nada de melhor desejaria que casar com um jovem sem nome nem fortuna, e abandonar aquela sua terrível função, já que se trata apenas de uma função q...

Fadiga da Ucrânia

Os analistas e comentadores encontraram um termo novo para embrulhar os tópicos relacionados com a guerra: a «Fadiga da Ucrânia». O termo não se refere ao cansaço dos ucranianos após meses de guerra, morte e destruição, mas ao nosso cansaço no chamado «Ocidente». Segundo os analistas e comentadores, «o cansaço já é visível». E é visível onde e em quê? Um artigo de hoje no Público explica: «As interacções nas redes sociais (likes, comentários, partilhas) caíram 22 vezes entre a primeira semana da guerra e a última semana de Maio: de 109 milhões para 4,8 milhões. (...) Durante um período de seis semanas, entre Abril e Maio, houve seis vezes mais interesse em notícias sobre o caso Johnny Depp-Amber Heard do que sobre a guerra na Ucrânia.»

Nuvem

No lançamento de um livro sobre as relações entre a arte contemporânea e o capitalismo financeiro, alguém na assistência pergunta: — Mas afinal onde está o dinheiro? Outro responde: — O dinheiro está na nuvem.

As montras das salsicharias

Na primeira nota, para explicar que se trata de um texto autobiográfico, o tradutor refere que Lichtenberg era corcunda. Isso acontece na página 9. Porém, conforme vou lendo os aforismos , a corcunda do autor vai diminuindo. Quando chegar ao fim, aposto que desaparecerá por completo — como nos contos infantis. ••••••• Podia passar o dia a publicar estas ferroadas de Lichtenberg, a pretexto disto e daquilo, com dedicatórias ou sem motivo nenhum, por puro divertimento, por exemplo: Um selvagem canadiano a quem se mostraram todas as maravilhas de Paris foi, em seguida, interrogado sobre aquilo de que mais gostara. As montras das salsicharias, respondeu ele.

A/C João César Monteiro

Em Brunschwig, vendeu-se em hasta pública, por uma soma muito elevada, um chapéu confecionado com os pêlos mais íntimos de uma jovem. Aforismos, de Lichtenberg. Tradução de João da Fonseca Amaral. Livro B da Editorial Estampa. Lisboa, agosto de 1974.
Este excelente Chanturgue, sem dúvida que Pascal o deve ter bebido, já que era de Clermont. O que lhe critico não é ter-se privado dele — sou a favor da privação, do ascetismo, da Quaresma, sou contra a abolição da Quaresma —, é não lhe ter prestado atenção quando o bebia. Como estava doente, seguia um regime e só comia coisas boas, mas nunca se lembrava do que tinha comido. — Sim, é a sua irmã Gilberte que conta isso. Ele nunca disse: "Isto está mesmo bom!” — Pois bem, eu digo: isto está mesmo bom! E não reconhecer o que está bom é um mal, falando cristãmente. Eu digo que é um mal.

Uma outra beleza

Sangok conta ao realizador que pensou matar-se quando tinha 17 anos e só não o fez porque viu clara e inesperadamente a beleza dos rostos das pessoas na praça junto à estação de Seul. — É uma definição perfeita de epifania. No decorrer do filme há uma interpretação discreta dessa revelação quando a mulher que tira a fotografia reconhece Sangok e fica admirada com a sua beleza intacta. Também ela é tocada directamente no coração por qualquer coisa. A cena entre a miúda e a amiga da mãe que a acolhe na Alemanha em  Apresentação — em termos narrativos, muito diferente de Perante o teu rosto   — é semelhante. Descobrir a beleza dos rostos dos outros, e assim atingir um pouco a essência da vida, é um grande feito. Mas, para que tal aconteça, é necessário engendrar um novo conceito de beleza não subjugado às convenções vigentes e aborrecidas. É preciso pôr em prática uma pequena revolução (também no sentido: marcha circular de um corpo celeste no espaço, em torno de um o...

Ninguém sabe

O comentador, vestido de cinzento, repete várias vezes num tom grave, sábio e definitivo: «Ninguém sabe quando e como esta guerra vai terminar.» Oh, e alguém sabe como é que os delicados ombros do comentador vestido de cinzento suportam o peso de tão laborioso pensamento? E até quando, até quando, meu deus, conseguirão eles suportar?

60 euros

Ao jantar, um amigo conta-nos que coleccionou durante muitos anos todos os números dos jornais Blitz , Sete , Independente , Público , e das revistas Kapa , Sábado , Visão e Time Out . Tudo rigorosamente organizado por título e ordem cronológica, e arrumado na cave da casa dos pais. Quando o espaço na cave acabou, começou a guardar na despensa do apartamento onde vive. Há pouco tempo, o pai precisou de usar a cave. Ou ele tirava os jornais ou tudo desapareceria numa alegre fogueira. O meu amigo conseguiu vender a colecção do Blitz a outro coleccionador, manteve os números da Kapa e um ou outro jornal que considerava mais importante, e o resto acabou vendido a peso. Mais de uma tonelada de papel: 1300 quilos. 60 euros. E aqui termina a história de milhares de jornais e revistas em papel.

Beber à morte

Estão sentados num café fechado ao público*. Sangok diz ao realizador que os seus filmes parecem contos. Está a falar com Jaewon e também com Hong Sang-Soo. Aceito e gosto desta interpretação: a mancha de molho na blusa, por exemplo, tem a economia, o peso e a ambiguidade que existem nos melhores contos e nos fazem tremer — aquilo a que podemos chamar augúrios narrativos. Mas a analogia que me parece mais justa é menos conceptual e mais orgânica; relaciona-se com a luz e as cores fortes do filme, com os movimentos livres das personagens (cenografia e coreografia) e apreendi-a há três anos num romance de Iris Murdoch (para continuar com os pés enterrados na literatura). Assim, roubando as palavras finais de uma das personagens d’ O Sino , posso dizer que em Perante o teu rosto vi Sangok virar-se toda para a vida e para a felicidade, como uma planta robusta se vira para o sol, e assimilar tudo o que encontrava pelo caminho . Que esta energia surja nos cinco ou seis meses (o tempo de r...

Uma vida sem narrativa

Os filmes de Hong Song-soo são, muitas vezes, sequências de fragmentos desgarrados no tempo e com poucas explicações — e está bem assim, não precisamos de nos preocupar com o desenvolvimento da história; o que for, será.  Em  Apresentação este método é tão intenso que parece que estamos a ver um exercício de filmagem ou até mesmo restos, filme perdido. A representação excessiva do velho actor com alguns fotogramas desfocados; os enquadramentos dos actores quase sempre de perfil ou mostrando os pés e as pernas, as calças curtas; os abraços tímidos mas prolongados; o rapaz a entrar na água fria — tudo isso ajuda a reforçar essa ideia de improvisos desajeitados, material que seria deitado ao lixo da mesa de montagem. Mas a justificação maior acontece do lado de fora; creio que é por esse carácter de película sem interesse nem significado se assemelhar tanto à nossa vida que aderimos tão profundamente aos filmes de Hong Song-soo. A precariedade na tela é uma interpretação da noss...

Discussão sobre as coisas altas

De manhã, praia (vento sul). Ao fim da tarde, Ozu (saké, cerejas). Doce engano, parece que o mundo vive em harmonia.

Sereias

Uma sequência de A Pereira Brava , de Nuri Bilge Ceylan. Um jovem escritor chamado Sinan acompanha um escritor mais velho pelas ruas da cidade turca de Çanakkale. O jovem, que anda às voltas para publicar o primeiro livro, provoca o mais velho, acusando-o de ceder às pressões e chantagens do métier para conseguir manter os seus múltiplos privilégios. A sequência avança. A conversa azeda. Entram numa ponte. A meio da ponte, o mais velho perde a paciência e manda Sinan dar uma volta, gritando-lhe que se está nas tintas para a pureza da literatura e que a única coisa que o preocupa é uma terrível dor de costas. O escritor consagrado afasta-se e o mais novo fica parado, a observá-lo. Encosta-se a uma escultura que decora o muro da ponte. É uma sereia. O braço direito da sereia está partido e desprende-se da figura. Sinan evita que o pedaço tombe na água e coloca-o no lugar, num gesto rápido e assustado, de pura intuição. Depois, pensa melhor. No plano seguinte, a câmara mostra o pedaço a ...

Parece um conto

Por circunstâncias cinéfilas, admito, mas diversas, fui apanhada a ver Perante o teu rosto com duas pequenas garrafas de saké na carteira. Se fosse soju (neste caso, e apenas como excepção, também servia licor chinês), passava logo ao nível de especialista avançada em Hong Sang-soo. Saké, creio, só permite equivalência a iniciante. É onde estou sempre.

Condições climatéricas

Comprei outra vez o Tripass por causa do Hong Sang-soo. Há dois dias, quando fui ver Apresentação , estava a cair morrinha. Hoje faz um calor de verão que me parece favorável às cores de Perante o teu rosto . Na verdade até podia nevar; todas as condições climatéricas — se nos apercebermos delas, se as interiorizarmos — combinam bem com estes filmes. À parte a questão do tempo, não sei explicar o que me atrai tanto em Hong Sang-soo, ainda não pensei bem nisso e se calhar nem quero, não vá o pensamento estragar o enlevo. Gostava de passar um mês a ver todos os filmes dele, um por dia — mais ou menos o equivalente a férias (ou tratamento?) numa estância de verão abandonada (fora da época alta e fora do turismo). Ah.

O saké tem um gosto amargo como um insecto

À primeira vista — quer dizer, enganadoramente — O  Gosto do Saké  ( Sanma no Aji ) é mais um filme japonês sobre o casamento, sobre as relações entre pais e filhos; pode-se até mesmo dizer que é uma espécie de compêndio ( monogatari ). Aceitemos a premissa.  A personagem principal chama-se Hirayama Shihei: viúvo, cinquenta e tal anos. Sabe-se que entrou para a Academia Naval Imperial Japonesa depois do liceu e foi oficial naval de carreira até 1945. Quando a guerra acabou e o Japão ficou de rastos, um amigo (talvez Kawai) arranjou-lhe emprego e ele conseguiu aguentar-se e vingar. Durante a acção do filme é director numa fábrica (faz parte da pequena burguesia urbana que vive mais ou menos desafogada e que Ozu gosta de filmar). Tem três filhos: Koichi, o mais velho, casou há pouco tempo e vive com a mulher num pequeno apartamento; Michiko e Kazuo ainda vivem com o pai. Mantém relações com alguns colegas do tempo do liceu com quem costuma comer, beber e jogar. Dois deles, ...

4 Aventuras de Reinette e Mirabelle

Sem a avalanche habitual de palavras, os filmes de Rohmer seriam outra coisa. E, no entanto, em Reinette e Mirabelle busca-se o silêncio. Um silêncio que só é possível «escutar» longe das cidades e durante um breve minuto, na hora azul, quando os animais nocturnos adormecem e os diurnos acordam. Mesmo assim, há um motor que se ouve ao longe. Ou quando Reinette quer provar, num jogo com Mirabelle, que é capaz de passar um dia inteiro sem dizer uma palavra. Reinette ou Rohmer em modo auto-irónico?

Segunda-feira, 1 de junho de 1953.

Com o mês de junho, vêm também as tristezas e a melancolia.  Diário de Ozu

Heinrich von Kleist

Cioran tem uma pancada por Kleist (é fácil de perceber porquê); escreve muitas vezes sobre ele nos  Cadernos . Ainda vou em 1964 e já traduzi três notas (até ao final há mais quatro):  Tento reler Faust , depois de mais de trinta anos. Sempre a mesma impossibilidade: não entro no mundo de Goethe. Só gosto de escritores doentes, afectados de uma forma ou de outra. Para mim, Goethe continua frio e rígido, alguém a quem não pensamos recorrer num momento de aflição. Não é dele, é de um Kleist que nos sentimos mais próximos. Uma vida sem fracassos consideráveis, misteriosos ou suspeitos pouco nos seduz.  Nos últimos dias tenho lido os contos de Kleist. São belos; mas é o seu suicídio que lhes dá uma dimensão que de outro modo não teriam. Porque é impossível ler uma linha de Kleist sem pensar que ele se matou. O seu Freitod  (suicídio) confunde-se com a sua vida, como se se tivesse suicidado o tempo todo.  Ontem li Heinrich von Kleists Lebenspuren — um...

Pipocas

Título de um jornal de ontem: «Pipocas podem escassear nos cinemas norte-americanos. Em Portugal, o preço pode tornar-se proibitivo.» Outro título no mesmo jornal e na mesma secção: «Ausente do concerto do Jubileu, Isabel II surpreende o país ao tomar chá com o urso Paddington.» Outro ainda, na mesma edição e na mesma secção: «Cansada ao fim de um dia de festejos, Isabel II não vai à corrida de cavalos do Jubileu.»

Jacarandás

Foi um Inverno seco. Talvez por isso os jacarandás do Porto estejam tão tristonhos. São muito poucos e este ano quase passam despercebidos. Um jacarandá que nesta altura não se assemelhe a uma estrela rock, exuberante, desmesurada, megalómana, num palco iluminado por mil focos de luz roxa, é uma árvore tão macambúzia como um eucalipto.

A Ilha dos Amores

Hoje, no Público, Augusto M. Seabra escreve: É imperioso e de absoluta urgência ir ver em sala A Ilha dos Amores porque só o ecrã grande permite apreender a imensidão do filme. O DVD e as plataformas ficam para as revisões.   Falámos disto em Coimbra. É o tema cinéfilo por excelência. Creio, aliás, que a influência grega de filos começa aí: a afeição precisa de contacto corpo a corpo, tensão física, um vínculo sensorial que só se concretiza plenamente numa sala escura e com uma tela grande. Este era o meu primeiro — deveria, talvez, dizer antigo? — raciocínio.  Na contramão, Osvaldo Silvestre referiu e defendeu o exemplo do aluno de Armamar que se relaciona com o cinema noutra escala, que nunca viu um filme projectado numa sala dedicada à função. Na altura, e apesar de à partida e em todos os cenários aceitar qualquer tipo de relação, reduzi-a a uma actividade intelectual de olhos, ouvidos e cérebro, logo empobrecedora. Porém, aos poucos começo a dar-me conta que pode ser a...

Traços de cançonetista macabro

Das mais de mil páginas dos Cadernos , pode-se fazer uma série de antologias: sobre filosofia, música, doenças, geografia, clima, etc. — o que se quiser. A mais polémica seria, sem dúvida, sobre escritores e literatura (mais sobre escritores do que literatura, suspeito). Cioran nem sempre é justo nas diatribes, mas tem uma linguagem viva e pulverizadora e isso é tão raro de encontrar que merece muitos aplausos. Exemplo Gottfried Benn (três entradas): Li os primeiros poemas de Gottfried Benn: Morgue — em certos momentos é exatamente assim que vejo a vida . Mas que prazer saber que outros experimentaram e imaginaram os mesmos horrores que nós! Benn falava como um médico; a sua visão, por terrível que seja, é normal e, até certo ponto, sã. Ah, imaginar as imundícies da carne sem necessidade exterior, por simples impulso mórbido!  Gottfried Benn — um poeta bastante grande com traços de cançonetista macabro.   Li as cartas de Gottfried Benn a mulheres com o mais vivo interes...

Mesa

Há um protocolo nos filmes de Hong Sang-soo: os personagens devem passar longas sequências à mesa, entre comida, muita bebida e pausas para cigarros. É assim em todos os filmes. A mesa é o lugar das histórias que valem a pena ser contadas. Dessas e talvez mais ainda das que preferimos calar. É o lugar da verdade, quer dizer, o ponto geodésico entre a realidade e a ficção. Enquanto escrevo isto, recebo a mensagem de um amigo: «Estive a ver o Resende a dizer poemas. Vou escrever sobre isso. Nem sei dizer o que sinto ao vê-lo no Facebook e no Youtube. Não é saudade, é mais uma coisa do tipo puta que pariu a vida e quem lá ande . Bom, vou dormir.» O Manuel Resende foi o personagem mais completo de Hong Sang-soo. Não, é ao contrário. O Manuel Resende inventou o Hong Sang-soo.