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A mostrar mensagens de novembro, 2023

Os olhos não querem estar sempre fechados

Um dos obstáculos ao trabalho de Huillet e Straub é o próprio cinema, isto é, a forma como ele se optimizou para ser uma actividade extremamente lucrativa que começa e acaba em classificações: a produção define o tipo de história (policial, comédia romântica, musical, etc. etc.), arranjam-se verbas enormes de financiamento, formam-se equipas (talvez fosse mais certo dizer esquadrões?), o filme entra no ciclo rápido de execução e, no fim da linha de montagem, os críticos classificam-no com estrelas. Trata-se de toda uma constelação fictícia, tão alheada do que se passa em redor que é raro encontrarmos nesses produtos audiovisuais a mais pequena centelha de vida — se cheiram a alguma coisa é a dinheiro. Mas é esse cinema que as pessoas reconhecem e esperam encontrar nas salas e na televisão, nos computadores e nos telemóveis. É uma corrente de imagens com uma força incrível que varre tudo e que já passou para as séries e para a publicidade e para a comunicação unipessoal das redes so

Até que elas adormeçam

[Matthew] Guthrie descrevendo os velhos costumes da Rússia, diz: «Observa-se também nas casas dos grandes, mulheres encarregadas de contar contos, Skaski … A sua ocupação consiste em entreter suas amas até que elas adormeçam, com contos semelhantes às Mil e Uma Noites árabes, antiquíssimo costume entre os orientais.» Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português , Vol. II.

Um filme de Danièle Huillet

Na apresentação de L’itinéraire de Jean-Bricard (2008) na Cinemateca Francesa, Jean-Marie Straub afirmou, para surpresa e confusão de todos, que se tratava de um filme hitchcockiano. Ele gostava dessas frases bombásticas e, creio, num sítio cheio de cinéfilos, deve-lhe ter dado ainda mais gozo deixá-los de boca aberta. No entanto, tudo o que ele diz é verdadeiro, mesmo que se encontre sob o efeito de fogo de artifício. Depois de recusar os raciocínios mais evidentes (e falsos), acabei por perceber que talvez Straub se referisse ao método. O filme já tinha sido discutido e estava todo planeado. No fundo  L’itinéraire de Jean-Bricard já existia, só faltava filmar . É nesse sentido que é hitchcockiano. É nesse sentido que é um filme (essencialmente) de Danièle Huillet. 
Chantal Akerman: (...) Quando estava a filmar D’Est na Ucrânia, ficamos sem gasolina. Uns agricultores sugaram gasolina dos seus carros para nos dar, depois não queriam que fôssemos embora, prepararam-nos um banquete. Por mais pobres que fossem, conseguiram juntar o suficiente para nos oferecer uma refeição de rei. Não conheciam Prokofiev ou Shostakovich, mas sabiam que quando alguém está com fome é preciso dar-lhe de comer. Estaline «esqueceu-se» de planear as sementeiras e provocou uma fome na Ucrânia que fez 7 milhões de mortos. E, no entanto, ele era de lá, da Ucrânia. Nada é simples. Estes mesmos camponeses poderiam ter massacrado judeus durante a guerra. Estes mesmos ou outros.
D’Est , de Chantal Akerman, não teve estreia comercial em Portugal, apesar da RTP estar envolvida na produção. O filme, de 1993, passou pela primeira vez no nosso país no dia 15 de Janeiro de 2002, na Cinemateca Portuguesa (inserido no ciclo «Cinema e Pintura» / Módulo III, apresentado por Dominique Païni). Alguns sites classificam-no como muet .

Mulheres, homens e árvores

Por um improvável alinhamento das leis da física, cruzámo-nos no fim-de-semana com Chantal Akerman, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. No sábado, vimos D'est e, no domingo, Europa 2005, 27 Octobre , Le Genou d’Artémide e Itinéraire de Jean Bricard . As semelhanças entre D'est (1993), de Akerman, e Itinéraire de Jean Bricard (2007), de Straub/Huillet, são muito surpreendentes. Em ambos os filmes, há longos travellings laterais sobre elementos ordenados em filas. Filas de pessoas à espera de um comboio, de um autocarro ou de vez para comprar pão, em vários locais do Leste da Europa, em Akerman. Filas de árvores , nas margens do rio Loire, em Straub/Huillet. As pessoas lembram árvores de um bosque, as árvores lembram pessoas paradas no Inverno.  Em ambos os filmes, há um mundo em extinção. Em D'est , o fim do bloco soviético. Em Itinéraire …, o fim da paisagem natural da Île de Coton, ameaçada por um desastre ecológico.  Nos dois, o som dominante em grande parte das seq

Enquanto ainda é tempo

Gostava de fazer uma grande viagem através da Europa de Leste, enquanto ainda é tempo. Rússia, Polónia, Hungria, Checoslováquia, ex-Alemanha de Leste, até à Bélgica. Gostava de filmar por lá à minha maneira documental a roçar a ficção. Tudo o que me toca. Rostos, ruas, carros que passam e autocarros, estações de comboios e planícies, ribeiras ou mares, rios e riachos, árvores e florestas. Campos e fábricas e mais rostos, comida, interiores, portas, janelas, preparação de refeições. Mulheres e homens, jovens e velhos que passam ou que param, sentados ou de pé, às vezes até deitados. Dias e noites, chuva e vento, neve e a Primavera. Tudo isso que se transforma docemente, ao longo da viagem, os rostos e as paisagens. Todos esses países, em plena mutação, que passaram por uma história comum depois da guerra, ainda muito marcados por essa história nas próprias sinuosidades da terra, mas cujos caminhos agora divergem. Gostava de gravar os sons dessa terra, fazer sentir a passage

Uma certa alegria enterrada

Uma das piores coisas que podem fazer aos filmes de Huillet e Straub é cortar-lhes o diálogo, apresentá-los como obras cinematográficas desgarradas ou, pior ainda, como  objectos artísticos . Esse isolamento não é mais do que um caminho de redução, esquecimento e morte. Pela minha parte, faço tudo o que posso para os aproximar do ar livre, dos outros, dos meus pequenos gestos diários (ajudam-me tanto a ver a ouvir e a descobrir no fundo de tudo uma certa  alegria   enterrada ). No sábado levei Karl Rossmann ao Nimas para falar de O sangue .  Amanhã, levo o método de Trop tôt, trop tard para encostar a D’est,  de Chantal Akerman .

É aí que ele encontra o seu melhor alimento

Ora, estas mesmas pessoas não só estão atemorizadas, como são ao mesmo tempo temíveis. Quando vêem enfraquecer aqueles mesmos que ainda agora temiam, o estado de espírito passa da angústia para o ódio declarado. E não é só na Europa que se encontram grupos desta espécie. O pânico condensa-se, no momento em que o automatismo aumenta e se aproxima de formas perfeitas, como na América. É aí que ele encontra o seu melhor alimento; expande-se através de redes que competem em rapidez com o relâmpago. Já a necessidade de receber informações várias vezes por dia é um sinal de angústia; a ilusão cresce e paraliza-se em rotações aceleradas. Todas estas antenas das cidades-cogumelo assemelham-se ao cabelo eriçado. Eles desafiam os contactos demoníacos. Está visto que o Leste não constitui uma excepção. O Ocidente tem medo do Leste e o Leste do Ocidente. Vive-se em todos os pontos do mundo na expectativa de ofensivas temíveis. Em alguns deles, acrescenta-se o medo de uma guerra civil. O mecanismo

A estranheza do branco

Quatro horas de caminhada. A Beauce completamente coberta de neve. Frio intenso: 5°. Avanço nesta pequena estrada que mal se distingue da camada branca: um simples ponto na imensidão. Estou impressionado com a estranheza do branco. Diz-se, creio, branco como a morte. Sensação de caminhar noutro planeta. Total irrealidade. O sol alinhava no jogo. Também ele irreal. Se todo o universo estivesse contra mim, se eu fosse execrado quer por homens quer por deuses, nada me podia tocar ou abalar: que se pode fazer contra um ponto? um ponto no meio de uma extensão cor de nada? um nada no inexistente?   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (3 de janeiro de 1971) 

Linha amarela, 8h50

Quarta-feira, 8h50. Um tipo entra no metro com um acordeão e toca a Bella Ciao . Depois, deseja um «bom dia de trabalho a todos», recebe uma ou duas moedas, e sai. Uma mulher comenta: «Mais vale isto do que roubar.» Outro passageiro acrescenta qualquer coisa. Um rastilho. Num instante, a carruagem transforma-se em papel de tablóide a arder.

Condição de sobrevivente

Esta manhã, por volta das 3h, do Colégio Militar ao Odéon, meti por ruelas completamente solitárias. Nem vivalma. Frio. E ocorreu-me a ideia de que caminhava por uma cidade onde todos os vivos tinham sido exterminados instantaneamente (guerra bacteriológica?). Nenhuma angústia nem satisfação. E pensei que nos adaptamos depressa à condição de sobrevivente. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (22 de novembro de 1968) 

Epitáfio

Perdi-me em Lisboa à procura do Palácio Sinel de Cordes. Fartei-me de andar e quando subi as escadas e entrei na sala 1. Remakes estava exausta. Talvez o cansaço tenha influenciado o que me aconteceu: mal me sentei e olhei para as telas e ouvi a voz de Godard parecia que o coração ia saltar e não consegui segurar as lágrimas. — Caramba, isto é um Epitáfio! O ritmo das imagens e sobreposições, as telas ondulantes, os sons, os pequenos candeeiros de luz ténue, os livros, o sofá, o tapete, os pedaços de textos, as reproduções dos quadros, os cordéis vermelhos e a escuridão. A escuridão.  La guerre est là .   Fabrice Aragno transformou   Le livre d’image num lago profundo onde não paramos de cair. Estava sozinha, chorei de sala em sala. Passei mais de duas horas no velho Palácio arruinado e no jardim, mas foi pouco. Precisava de lá voltar. De noite, como me disse o Andy.  Exposição: “Éloge de l’image – Le Livre d’image”, Jean-Luc Godard  (1. Remakes, 2. Les Soirées de St Pétersbourg, 3. C

Two Rode Together (for Andy)

 

Desportos e divertimentos cinematográficos

Os filmes de Jacques Tati são documentos antropológicos que mostram o aspecto ridículo e risível da nossa Grande Época . Passado um tempo nem é preciso estar a vê-los para rirmos; é fácil — oh, tão fácil — encontrar à nossa volta réplicas desses gags . Geralmente é na rua que se apanham: prédios sofisticados ao lado de baldios, moradias modernaças, sons cómicos que se repetem, pequenas frases alfinetadas — às vezes até basta um cão rafeiro a correr ou um miúdo que suja a cara com açúcar ao comer um bolo.  Quando estava a subir as escadas, com as minhas sapatilhas cambadas, para o Pap’açorda, percebi que não se tratava de um jantar de cerimónia, mas da hipótese (talvez única na minha vida) de entrar, nem que fosse só de raspão, na cena do restaurante de Playtime . A porta tinha vidro e nenhuns sinais de obras por terminar, mas o chefe de sala com o seu ar de segurança elegante, vestido de escuro, era um bom indício. Lá dentro o ambiente coincidia; não sei definir muito bem, qualquer coi

Horror

Guerra, assassínio, ódio, genocídio, extrema-direita. Parece tudo tão óbvio, tão ostensivo, como um murro no estômago. A repetição de um filme de horror já visto. E, no entanto, não consigo evitar a permanente sensação de que os jornais usam uma língua que não conheço, uma escrita feita de hieróglifos impossíveis de decifrar. A terrível sensação de que falta sempre uma peça ao conjunto. Qualquer coisa que só irei compreender no último momento, quando o tempo se tiver esgotado. Aquilo que Karl Kraus viu desde o princípio e que eu não consigo ver. Ou que — e este é o drama — prefiro não ver.

"Proletários” do jornalismo

Mas sob esta forma de violência [a invasão da privacidade pelos meios de comunicação], há outra que é invisível. Refiro-me à violência exercida sobre os jornalistas, os repórteres que ficam com um microfone na mão, durante horas, à espera de um acontecimento que, mesmo que aconteça, não é acontecimento nenhum, à espera de que um gesto ou uma palavra insignificantes se transformem em notícia igualmente insignificante. Estes “proletários” do jornalismo têm com certeza consciência da sua condição profissional e do trabalho sujo ou pelo menos inócuo a que estão obrigados. Por isso, devemos pensar que abominam esse trabalho e que o sentem como uma corveia ou mesmo como uma coisa indigna. Os que assim não pensam nem sentem, os que se atropelam sem reserva à porta da casa do ministro, quando este tenta entrar com a mulher e as crianças, são desprovidos da faculdade mais indispensável à sua profissão: o espírito crítico. Em contraste com esta forçada proletarização (que é uma característica fu
Jacques Rivette: No cinema, o importante é o momento em que já não há autor do filme, já não há actores, já não há sequer história, não há assunto, nada senão o que o filme diz.

Vida moderna

Quem passa na estação de Francos à noite e vê o baldio — onde havia as hortas — cercado e, ao fundo, o Porto Office Park iluminado como um gigante — por uns instantes tem a ilusão de estar dentro de playtime .

Moscas

O jornal que leio, o Público , parece ter adoptado o estilo do Correio da Manhã . Títulos com trocadilhos manhosos, comentadores excitados, politólogos tocados pelo escândalo. Lembram as moscas meio enlouquecidas no fim do Verão, que picam por tudo e por nada, porque sentem que vão desaparecer em breve.

Verde, vermelho, laranjas

Não é nenhum mecanismo expositivo , é uma consequência natural mas inesperada. Como estimulamos muito os receptores à cor verde lá dentro, quando saímos da exposição dedicada a Huillet e Straub as paredes brancas junto à porta ganham a cor complementar vermelha. Vou considerar isto uma resposta cromática dos mortos. *** Mesmo ao lado da Casa de Cinema Manoel de Oliveira há um quintal onde crescem laranjas — restos de uma zona que foi rural antes de ter sido apropriada pelos ricos. Sobre o muro, uma rede verde corta a vista; no topo da rede, três câmaras de segurança. As laranjas estão vedadas e, no entanto, são elas que nos aproximam de Sicília!
Rever a tradução dos Cadernos de Cioran é das actividades mais obsessivas que já experimentei. Mesmo que em parte a culpa seja do ritmo repetitivo do texto, deixar-me levar por essas variações crescentes já é problema, ou defeito, meu. Trabalho como um carpinteiro maluco que não se cansa de aplainar a madeira porque quer que ela fique simultaneamente muito suave e muito rude.

Um diálogo, em breve um cântico

(…)  tem a ver com o facto de cada comunidade, unidade humana ser um diálogo, ser um projecto, como dizia o Hölderlin, e Hölderlin já é um poeta para os tempos de indigência, para quem resolve escutá-lo, e Hölderlin diria que nós somos algo ao nascer do dia, nós somos um diálogo, mas em breve seremos um cântico. Nós nascemos como um diálogo ou seja, a capacidade da linguagem em nós é inata, nós estamos preparados para a linguagem e por isso a linguagem faz-nos e ao fazer-nos nada impede que aquilo que eu faço seja partilhável. E nesse aspecto, se nós existimos nesta dupla condição de esperados sobre esta terra e de preparados para uma linguagem, como diz o Benjamin, está encontrado o quadro para pensar a relação da poesia com o mundo da História.

São horas de embriaguez

Leio no jornal que Vitor Escária tinha 75.800 euros «escondidos em livros e dentro de caixas de vinho», no seu gabinete, em pleno Palácio de São Bento.  Parece-me óbvio que o chefe de gabinete do primeiro-ministro é um leitor atento de Baudelaire e admirador da nossa edição  Embriagai-vos . Este é um dos perigos de ser um pequeno editor: inspirar o crime sem levantar suspeitas. Ninguém viu, ninguém leu.
Desta vez, Antígona  pareceu-me claramente um western como os de John Ford. Bom, entusiasmei-me, devia dizer que o filme faz parte dessa família, um ramo menos cavalgante, sem dúvida. Consigo arranjar quatro provas: Creonte e Antígona têm o ímpeto físico dos actores de Ford; o teatro do Segesta, na Sicília, faz lembrar um daqueles tribunais onde o realizador americano mostra a ruindade dos poderosos e a solidão dos justos; é o filme com mais pedras que já vi; e, como diz Straub, «John Ford ainda é o mais brechtiano dos cineastas, porque mostra coisas que fazem com que as pessoas pensem raios me partam, isto é verdade ou não ?»

A revolução do tigre

Talvez Cézanne seja o filme mais elucidativo de Huillet e Straub. Elucidativo no sentido concreto de trazer luz às obsessões e métodos de trabalho do pintor, mas também ao modo como os cineastas vêem a realidade e se afadigam para a registar em película, na sua integridade e não em aparências vãs. Se olharmos com atenção (como não fizeram os tipos do Museu d'Orsay), conseguimos perceber o imenso labor envolvido neste filme. Na escolha dos excertos das conversas com Joaquim Gasquet é visível mais do que concordância, uma afinidade participativa, digamos assim. Huillet e Straub são solidários praticantes com todas aquelas afirmações intensas sobre a atracção pela matéria e o desprezo por distracções de estilo ou interpretação. A austeridade de Cézanne é a austeridade de Huillet e Straub. (Não se enganem, porém, se o caminho é de pedras, o resultado é, pelo contrário, sumptuoso. Ricos e plenos, assim são os quadros de Cézanne e os filmes de Huillet e Straub. Como se diz das uvas q
Um ciclo de filmes sobre a traição ao direito à habitação. (Entrada grátis.) Hoje, na sessão das 18:00, há um filme de Huillet e Straub em diálogo com Elio Vittorini, D. W. Griffith e Pedro Costa.

Sindicato dos mortos

As coisas que ficam de fora das homenagens oficiais são sempre as mais interessantes. Por exemplo, gostava, mas gostava mesmo muito, de ouvir alguém a falar das condições de trabalho da Danièle Huillet e do Jean-Marie Straub: as dificuldades para conseguirem as câmaras e as objectivas necessárias, o dinheiro para a película e para o laboratório, as legendas feitas aos poucos mas bem feitas, os meses a preparar a leitura e a respiração, os orçamentos reduzidos mas geridos com extremo cuidado para poderem pagar o devido à equipa, ... — essas questões materiais e proletárias que foram tão marcantes nas suas vidas e nos seus filmes não entram nas salas dos museus. E também as portas que lhes fecharam na cara; talvez agora essas pessoas que, sem dúvida, ocupam lugares importantes em instituições de prestígio internacional, citem os seus nomes com um arzinho etéreo tentando sacar um pouco de prestígio alheio? O Musée d’Orsay não encomendou e depois recusou Cézanne ? Também é preciso contar

Oráculo

O tempo arrefeceu e fui desenterrar do armário um casaco mais quente. Do fundo dos bolsos, saltaram duas máscaras dos anos da pandemia. Como os velhos adereços do oráculo numa tragédia.  A peste não vai acabar. E a guerra, como papagueiam os comentadores mais excitados, é «eterna».
Cézanne: Pinto as naturezas mortas para o meu cocheiro que as não quer. Pinto-as para que as crianças ao colo dos avós olhem para elas enquanto comem a sopa e balbuciam. Não as pinto para o orgulho do imperador da Alemanha nem para a vaidade dos comerciantes de petróleo de Chicago.
Começamos a saber o que é a solidão quando escutamos o silêncio das coisas. Então compreendemos o segredo enterrado na pedra e revelado na planta, o ritmo oculto ou visível da Natureza toda inteira. O mistério da solidão deriva do facto de para ela não existirem criaturas inanimadas. Cada objecto tem a sua linguagem, que deciframos graças a silêncios incomparáveis. Lágrimas e Santos, Emil Cioran. Edições 70, novembro 2022.