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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2025

Ácido nítrico com láudano

A fé iluminista na razão, nos factos da ciência e no progresso técnico, revelou-se manifestamente exagerada. O mistério nunca desapareceu, as emoções mais profundas estão vivas, os velhos demónios divertem-se. O edifício racional está sempre esburacado: basta um pequeno nada para que tudo se desfaça em pedaços. A luz e a sombra, o bem e o mal, são o verso e o reverso da existência. Isto dito assim é um truísmo. E, no entanto, ainda somos capazes de nos chocar com as histórias de Nelson Rodrigues . Muitas delas, de resto, inspiradas em casos concretos publicados nos jornais ou que o autor conheceu, na primeira pessoa, enquanto repórter policial. Neste ponto, tudo parece uni-lo a Félix Fénéon. Certas «notícias em três linhas» podiam ser sinopses de peças ou romances de Rodrigues: A mulher deixara-o. O Sr. Bassot, de La Garenne-Colombes, tentou asfixiar-se com carvão vegetal. Está à morte em Beajoun. Os jogos de amor em Béziers: Corniod, que vivera sete anos com Rosalie Petit, trespassou...

A frutificação instantânea de uma árvore no mês de janeiro

Para Maistre, essa força ganha um sentido, torna-se verdadeiramente a Providência, a partir de um milagre, a Revolução: «se no coração do inverno e diante de mil testemunhas um homem ordenar a uma árvore que se cubra repentinamente de folhas e frutos e a árvore obedecer, todos clamarão milagre e inclinar-se-ão diante do taumaturgo. Mas a Revolução Francesa e tudo o que se passa neste momento é, no seu género, tão maravilhoso como a frutificação instantânea de uma árvore no mês de janeiro…».   Exercícios de Admiração – Ensaios e Retratos, de Emil Cioran, Gallimard, 1986.

Dos jornais XXXXV

Bresson continua a rondar a nossa vida.  

Este não é teu rosto

VIZINHO ( numa mesura ): Às suas ordens. D. EDUARDA ( apontando para o rosto do vizinho ): Mas este não é teu rosto – é tua máscara. Põe teu verdadeiro rosto. VIZINHO: Com licença. ( O vizinho põe uma máscara hedionda que, na verdade, é a sua face autêntica. ) D. EDUARDA: Agora fala. Nelson Rodrigues, Senhora dos Afogados .

Influenciadores do século XX

Raquel Soeiro Brito.

Rindo chorando

As personagens de Nelson Rodrigues riem quando choram, e choram quando riem. Os moralistas não têm moral, os beatos e as beatas não são santos nem santas, os castos estão «roucos de desejo», os pulhas não são «canalhas integrais», os poderosos (pequenos ou grandes) não são inocentes e os criminosos têm uma certa candura. O que os une é o medo. O grande medo, o medo da morte: fonte da vida, íntimo combustível para a imaginação e o prazer.

Betinha malvada (isn't she lovely)

Uni, duni, tê, salamê minguê, um sorvete colorê, uni, duni, tê.

O negócio é o seguinte

Não é o que sabemos sobre nós próprios, mas o que preferimos não saber, o que tentamos desesperadamente esquecer. É sobre isso que Nelson Rodrigues escreve. Uma luz fria apontada ao escuro. Tudo o que está na sombra é desvelado na sua crua nitidez: todas as “pequeninas tatuagens”, obsessivas, impossíveis de apagar.

Uma canção-manguito para o Ministro da Presidência

 

Influenciadores

Mareme Niang.

Costumávamos ter medo do patrão

 «Eu não quero cá o patrão. Para me explorar, não quero cá o patrão. Assim estou mais feliz. Ele que não venha que não me faz falta, nem a mim nem às minhas colegas, porque eu agora ganho quatro contos e trabalho, mas no tempo do patrão trabalhava o dobro e ganhava só um conto e oitocentos por mês, por isso eu não quero cá o patrão. Não quero!» Outro País, de Sérgio Tréfaut.

Apagão

Leio no jornal que a «palavra do ano» é Apagão . Pela primeira vez, a vulgar acção publicitária da Porto Editora coincide – ainda que de forma involuntária – com o verdadeiro carácter da nossa época. Este é, de facto, o tempo do apagão. O apagão da história, dos factos, da dignidade, da empatia, da humanidade. Em breve, pouco restará que não tenha sido já apagado. Só a electricidade continuará a correr pelos fios, dentro das paredes.
Geppeto#21

Fracasso

Leio Nelson Rodrigues e tropeço numa passagem tipicamente  walseriana : «Estava diante do espelho, fazendo a barba, e pensava: “Dane-se a posteridade. Não faz mal que eu seja esquecido.” Mais um pouco e digo para mim mesmo: “Quero ser esquecido.” Naquele momento, eu percebia, com implacável lucidez, que essa disposição era vital. Tinha que receber o fracasso com desesperada alegria suicida. Um dia, o Paulo Francis veio me entrevistar. Dei as minhas respostas por escrito; e terminava assim: “Quero ser esquecido para sempre.”»  ( Memórias: A Menina Sem Estrela , p. 276.) A ideia de fracasso, de auto-apagamento, não é um simples capricho literário, mas um projecto de resistência «vital». Para alguns, é a única maneira de conservar a fúria de viver e escrever.