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Trás-os-Montes

O que é Trás-os-Montes ? Que espécie de filme é este? Não tenho uma resposta. Creio que não existe uma resposta. E o ponto é exactamente esse. O espanto, a dúvida, a impossibilidade de o definir. E se não há para Trás-os-Montes géneros ou categorias, se não é isto ou aquilo, uma coisa ou outra, o espaço que sobra para a imaginação é inesgotável. O jogo está todo do nosso lado. A tela para Trás-os-Montes não é a do cinema, mas a da imaginação. O rasto de fumo que atravessa as montanhas, no final do filme, é o de um comboio em movimento? Ou o fumo de uma casa que decidiu desprender-se do chão e correr pelo campo como um comboio?  

Sapatos de defunto

Tolstói no seu leito de morte, em 1910. Não parece morto, apenas adormecido. Descalçou os sapatos, que ele fabricava com as próprias mãos, despiu-se, deitou-se, fechou os olhos e mergulhou no sono. Dir-se-ia que decidiu morrer voluntariamente porque o século XX já não era o seu tempo. Sokurov pede-lhe, em Francofonia , que acorde. Tolstói, acorda! Mostra-nos o que fazer, diz-nos o que vai ser de nós. Esperámos pelos teus sapatos de defunto, os sapatos que tu próprio fabricaste, e acabámos descalços.

Três ou quatro imagens

No meio da pista do velho aeroporto, de uma fenda no alcatrão, nasceu um frondoso arbusto. Floresce em Abril e dá uns frutos pequenos e muito vermelhos em Junho. * O Aeroporto de Tempelhof , no coração de Berlim, desactivado em 2008, está dividido em duas partes: o exterior é agora um imenso parque de lazer e o interior foi convertido num abrigo para refugiados . As duas zonas estão separadas por um gradeamento. Dir-se-ia um muro a dividir Berlim. Durante o dia, os berlinenses ocupam as velhas pistas de aterragem do aeroporto e entregam-se a toda a espécie de distracções: correm, andam de bicicleta, brincam com os filhos, fazem piqueniques, passeiam os cães. Os cães não podem andar no parque sem trela. À noite, quando todos regressam a casa, entre as ervas que rodeiam as pistas, aparecem esquivas raposas. As raposas de Tempelhof fogem quando avistam um carro patrulha da polícia. Raposas livres no coração de Berlim e cães presos pela trela. No  filme de Karim Aïnouz  quem são

Nunca vi homens tão felizes

Aqui, no Hotel Sossego, também descobri que aqueles que inventaram que o trabalho embeleza o homem não foram senão aqueles que aqui, toda a noite, bebiam e comiam com belas meninas sentadas nos joelhos, os ricos, que sabiam ser felizes como crianças pequenas... e eu que estava convencido que a gente rica estava amaldiçoada ou coisa do género, que as cabanas, os sótãos, a sopa de alho e as batatas davam às pessoas o verdadeiro sentimento de felicidade e beatitude, que a fortuna era uma espécie de maldição!, mas, segundo parece, mesmo esta conversa fiada sobre a felicidade nas cabanas, mesmo isso tinha sido inventado pelos nossos hóspedes, para quem tanto fazia, que deitavam as notas aos quatro ventos, não olhavam a despesas por uma noite louca e sentiam-se bem assim... nunca vi homens tão felizes como aqueles industriais e fabricantes ricos... como disse, sabiam brincar e gozar a vida como os putos pequenos, faziam mesmo maldades e, propositadamente, enganavam-se uns aos outros, tanto t

Atenas

Subindo a Acrópole, há um número incontável de turistas a fotografarem-se a si mesmos. Uma, duas, dez, cem vezes. Em cada lanço de caminho, junto de cada pedra, à frente e atrás de cada coluna, em cada metro quadrado do Pártenon. O mesmo plano do rosto, uma e outra vez. Não é a acrópole que visitamos, mas a nós mesmos. Ou melhor, o nosso rosto moderno, inchado e orgulhoso. Uma máscara sem sombra de tragédia ou comédia, morta, anémica como alabastro, sem mistério, espírito ou emoção. Nenhum de nós precisa de percorrer as ruínas e sentir-se assaltado pelo fantasma da história, o que precisamos é de um telemóvel com uma câmara melhor. Entre nós e os escravos que carregaram estas pedras colossais, há apenas uma diferença de pixéis. * No regresso, num dos flancos da Acrópole, inclino-me para colher do chão a folhinha de uma oliveira. Guardo-a entre as páginas de um livro. A relíquia viva da idade dos heróis, dos titãs e dos deuses. * Numa das salas do museu , estão expostas as cabeç

No fundo

Sim, valeria a pena estudar clinicamente, ao pormenor, os itinerários de Hitler e do hitlerismo, e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista, muito cristão do século XX, que traz em si um Hitler que se ignora, que Hitler vive nele, que Hitler é o seu demónio, que se o vitupera é por falta de lógica, que, no fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os "coolies" da Índia e os negros de África estavam subordinados. Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo , 1950.

Horas e horas à frente de papel em branco

Tentei, pela centésima vez na vida, trabalhar, criar algo de belo, de duradouro. Queria perturbar a alma dos humanos, fazê-los sentirem-se melhores ou piores, mas o meu esforço evaporou-se no vazio. Sentei-me horas e horas à frente de papel em branco, imaginei que em virtude de um pacto com um demónio tutelar seria capaz de escrever algo semelhante à Divina Comédia , e quando a minha pequena e dourada alegria atingia o limite onde eu supunha principiar a orla da inspiração, escrevia, redigia duas ou três linhas, e acabava depois por deixar, desalentado, a lapiseira no cinzeiro. Convenci-me de que era impossível trabalhar de dia e obter assim os benefícios da inspiração, e recorri aos favores da noite. Reparei que no meu quarto abundavam livros, formosos quadros, selectas comodidades e, não sei porquê, ocorreu-me que a inspiração precisa, para se manifestar, da monástica solidão de uma cela, do silêncio conventual de uma cartuxa perdida nas montanhas, e então mandei substituir os vid

A Love Supreme

De repente, um piano corre através do palco. A bateria dá uma pirueta e depois outra, e outra ainda. O baixo abre os braços, roda sobre si próprio, agita todos os membros, não pára quieto. O saxofone contorce-se, explode e espalha-se por toda a parte. A seguir é o piano que se dobra e o saxofone que dispara pelo palco. A bateria contrai-se, salta, e o baixo rebola e arrasta-se pelo chão. O piano parece ter quatro, seis, oito braços, e o saxofone mil asas. O baixo e a bateria combinam-se, afundam-se, misturam-se, em longos, ternos e voluptuosos abraços. Os quatro instrumentos juntam-se e afastam-se, e aproximam-se de novo e voltam a separar-se. No palco, não há qualquer piano, nenhum baixo, nenhuma bateria ou saxofone. E, no entanto, nunca houve quatro instrumentos mais vivos sobre um palco. A love supreme , Anne Teresa de Keersmaeker & Salva Sanchis.

Todos cerram a boca

ANTÍGONA  (...) Ouviria toda a gente louvar a minha acção, se o medo lhes não cerrasse a boca. A tirania tem, entre outras vantagens, a de poder dizer e decidir quanto lhe apeteça. CREONTE De entre todos os cadmeus, só tu tens esse modo de ver. ANTÍGONA  Isso é o que te parece, porque todos cerram a boca diante de ti. Sófocles. Antígona . Versão de António Manuel Couto Viana.

Os fantasmas divertem-se

Carpe Diem , de Daniel Blaufuks, 2010. Uma casa vazia nunca está vazia. Uma casa que não é habitada há longos anos é um ninho vivo de memórias, isto é, fantasmas. Cada parede, cada fenda na parede, cada porta, cada janela, cada tábua, cada escada, cada degrau de escada, cada prego, cada grão de poeira, cada sombra, cada raio de luz, é uma voz. Pode-se imaginar quantas vozes há numa casa há muito tempo desabitada. O barulho pode ser ensurdecedor.

Quanto tempo o corpo leva a esquecer?

César deve morrer , de Paolo e Vittorio Taviani, 2012. Não será o actor para sempre um prisioneiro? Preso às tábuas, aos gestos, às palavras, a um pensamento. Preso numa espécie de limbo, nem dentro nem fora do mundo, nem agora nem antes ou depois. Morto e ressuscitado quantas vezes for preciso e à vista de todos. Quando é que um actor é livre? Quando é que o palco e o fora do palco deixam de ser a mesma coisa? Quando é que finalmente o corpo do actor se desprende do personagem? Mesmo depois das tábuas e dos muros, quanto tempo o corpo leva a esquecer? Opening Night , de John Cassavetes, 1977.

A mão e a luva

LADY MACBETH What, will these hands ne'er be clean? — No more o' that, my lord, no more o' that: you mar all with this starting. (...) Here's the smell of the blood still: all the perfumes of Arabia will not sweeten this little hand. Oh, oh, oh! (Macbeth, acto 5, cena 1.) Shakespeare antes de ser Shakespeare fazia luvas. Era luveiro, como o pai. Que secretos fios ligam o luveiro e o dramaturgo? Quantos dos seus personagens não têm as mãos manchadas de uma qualquer espécie de sangue, real ou simbólico, que é preciso revelar ou encobrir? Quantas não calçam ou descalçam luvas para ocultar ou mostrar amor, ódio, afecto, raiva, angústia, amizade, desespero, culpa ou inocência? Quantas não calçam ou descalçam as mãos para dar ou tirar a vida? Quantas das suas palavras não são luvas que mostram ou escondem um imenso e inesgotável mapa do tesouro?

À escolha

Através dos tempos, a Verdade não tem sido a grande Rameira do espírito, a grande Galdéria da alma? Só Deus sabe se não deu em deboche com os primeiros homens que apareceram na terra depois do Génesis! Artistas, papas, labregos, reis, todos chegaram a possuí-la e a ter a certeza de que ela era só deles, à menor dúvida forneciam argumentos que não tinham réplica, que eram irrefutáveis, que eram decisivas provas. Para uns sobrenatural, para outros terrestre, semeou indiferentemente a convicção na Mesopotâmia das almas superiores e da parvónia espiritual dos idiotas. A todos fez festas de acordo com o seu temperamento, de acordo com as suas ilusões, as suas manias, a sua idade, ofereceu-se à concupiscência de certezas que em todos existia, e fê-lo sem regatear a posição e dos dois lados, à escolha. J. K. Huysmans, O castelo do homem ancorado ( En rade, no original). Tradução de Aníbal Fernandes. 

Contemporâneo

Contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo no seu tempo, de maneira a perceber não a sua luz, mas a sua sombra. Todos os tempos, para quem vive a experiência da sua contemporaneidade, são sombrios. Contemporâneo é quem sabe ver essa sombra e que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo?

Selfie de um sujeito reles, hidropata, zutista, hirsuto, inventor, mistificador, boémio e galhofeiro.

Mais sobre o sujeito aqui .

Possessão

Estava em casa e esperava que a chuva viesse , na versão da  companhia Público Reservado , é o longo e lento bailado de cinco actrizes a dançar com um texto. É um daqueles raros momentos em que sentimos todo o poder das palavras, a prova cabal de todo o seu potencial eléctrico. Cinco corpos animados apenas por sílabas, como numa espécie de possessão. Cada gesto, cada movimento, cada inflexão ou pausa, é determinado pelas palavras. É por isso que não existe praticamente cenário, porque em lugar de objectos há vocábulos. É por isso que não existe música, porque o som que interessa é o das vozes. E é também por isso que os corpos se deslocam e dispõem no espaço de maneira rigorosamente matemática, porque a sintaxe tem uma ordem, um ritmo próprio, com acelerações e desacelerações, prolongamentos, repetições, ecos. Estava em casa e esperava que a chuva viesse não vale tanto pela construção literária — o texto de Jean-Luc Lagarce está entre A Casa de Bernarda Alba , de Lorca, e Danças a um

Agência de detectives

Este que é o último poema de Raymond Roussel foi publicado em 1932 embora, ao que parece, Roussel tenha parado de trabalhar nele em 1928. Obra de grande fôlego, Roussel refere a existência de várias versões inacabadas, redigidas durante a Primeira Guerra Mundial. (...) Provavelmente, só depois de ter terminado a respectiva redacção é que Roussel encomendou 59 ilustrações ao pintor académico Henri-Achille Zo, que conhecia pelo menos enquanto autor das ilustrações de Ramuntcho , de Pierre Loti. Contudo, não querendo entrar em contacto directo com ele, faz-lhe chegar através de uma agência de detectives instruções descritivas precisas, sem lhe dar a conhecer o texto.  François Piron, Locus Solus. Impressões de Raymond Roussel.

Casque d'Or

Noite alta. Marie chega a um “hotel manhoso” (a expressão é de Truffaut) e é recebida pela “patroa”. Tudo acontece no silêncio, quase sem palavras, como num sonho. A “patroa” acompanha Marie ao longo de uma interminável escada em caracol. A ascensão arrasta-se numa demorada e lenta sequência, degrau após degrau, um andar após outro. Dir-se-ia que Jacques Becker exige que subamos a escadaria com Marie, que sintamos o mesmo esforço, a mesma angústia. A subida termina num quarto escuro, iluminado por uma simples vela e uma janela. A janela abre para uma praça onde está instalada uma guilhotina. À primeira luz da manhã, o carpinteiro Manda, condenado à morte pelo crime de ter amado demasiado Marie, é conduzido ao patíbulo. Os guardas amarram o corpo a uma prancha de madeira, que ele mesmo podia ter feito com as suas mãos, e colocam-no em posição. A lâmina desce, como um relâmpago, sobre o pescoço do condenado. O movimento veloz da lâmina é inversamente proporcional ao da lenta subida de M