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Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2020

Sonatina para uma camisa branca

O livro de recitações desta semana é muito divertido. Desde o início, mas principalmente as duas ultimas frases: (…) comparecer com as suas camisas, sempre muito chique, onde quer que há descamisados em perigo. Ele está sempre embarcado, mas só embarca em iates.

Carta de Mlle Rosimont

Esqueci-me de te falar de um homem bizarramente constituído, com quem fiz uma partida em casa da presidente. Tinha um só testículo. Alguma vez viste algum desta espécie? Quanto a mim, foi a primeira vez. Ele disse-me que aquilo o tinha impedido de ser padre. É extraordinário: obrigado ao celibato, os testículos são um mobiliário inútil. Na minha opinião, se os castrassem a todos o seu número diminuiria rapidamente. Adeus, minha querida. 30 de Agosto de 1782.
Recrudescimento de actividade de negócios financeiros e económicos: vou investir parte do complemento de estabilização (trezentos e cinquenta e um euros) em livros e vinho .

Dispersos

Nos últimos dois meses, tenho estado a resgatar para publicação as traduções dispersas de um grande tradutor e poeta, falecido em Janeiro. O trabalho arrasta-se, cheio de obstáculos. Em muito pouco tempo, uma parte da sua obra afundou-se num abismo de silêncio e sombra. As coisas fecham-se a sete chaves contra os olhares indiscretos dos vivos. Tudo o que antes de Janeiro parecia claro e acessível, converteu-se rapidamente em nada mais do que indícios. Sinais vagos de poemas que existiram e desapareceram quase sem rasto. Como se também eles quisessem morrer.

Tabu

Não existe nada mais artificial do que as comparações rebuscadas que se costumam empregar para descrever uma jovem. A boca... uma cereja... Os seios, como botões de rosa... Oh, se tudo se pudesse resolver comprando no mercado um cesto de flores e frutos! E quem se apaixonaria se uma boca tivesse realmente o gosto da cereja madura? Quem se deixaria tentar por um beijo que fosse tão doce quanto um rebuçado? Caluda! Basta! Mistério, tabu... Witold Gombrowicz, Bakakai . Tradução de Rui Almeida Paiva.

Apenas as borboletas morrem assim?

Um gostava de passear de bicicleta, o outro a pé. Fora as deambulações, acho que nada liga Cioran a Walser: nem língua, nem cultura, nem itinerários. Nunca me passou pela cabeça aproximá-los. Foi por isso com verdadeiro espanto que descobri um texto de Cioran —  rapaz, romeno, arrebatado,  especialista no problema da morte   — intrinsecamente walseriano. Pelo menos foi assim que o traduzi: A BELEZA DAS CHAMAS — O fascínio das chamas subjuga de um jeito estranho, para além da harmonia, proporções e medidas. O seu ímpeto impalpável não simboliza a tragédia e a graça, o desespero e a ingenuidade, a tristeza e a volúpia? Não encontramos, na sua transparência devoradora e na sua imaterialidade ardente, a projecção e a leveza das grandes purificações e dos incêndios interiores? Gostaria de ser levado pela transcendência das chamas, sacudido pela sua respiração delicada e insinuante, flutuar sobre um mar de fogo, consumir-me numa morte de sonho. A beleza das chamas dá a ilusão de uma

Loop

Uns confinam, outros desconfinam. Os que desconfinam agora, confinarão mais tarde. Os que confinam hoje, desconfinarão amanhã. O vírus parece que vai e volta, mas na verdade não vai a lado nenhum. É como se estivéssemos a assistir em loop àquela cena de Ecce Bombo em que Michele Apicella, o personagem de Nanni Moretti, se despede várias vezes dos amigos, mas nunca chega a sair do lugar.

Os artistas como veraneantes

O escritor como operário

Se o meu amigo conhecesse os bastidores da literatura, saberia que o escritor é uma pessoa cujo ofício é escrever, como outros têm o ofício de construir casas. Nada mais. O que o distingue do fabricante de casas é que os livros não são tão úteis como as casas e, além disso... além disso, o fabricante de casas não é tão vaidoso como o escritor. Hoje em dia, o escritor considera-se o centro do mundo. Conta toda a espécie de patranhas. Engana a opinião pública, consciente ou inconscientemente. Não revê as suas opiniões. Acha que o que escreve é verdade só pelo facto de ter sido ele a escrever. É o centro do mundo. (...) Todos nós, que escrevemos e publicamos, fazêmo-lo para ganhar a vida. Nada mais. E para ganhar a vida não hesitamos por vezes em afirmar que o branco é preto e vice-versa. De resto, há momentos em que até nos permitimos o cinismo de nos rirmos e de nos acharmos génios... Roberto Arlt, Águas-fortes portenhas .

E o povo voltará a ser simples e frugal

Fazei cair por terra a santidade e rejeitai a prudência e deixarão de existir pequenos ladrões. Deitai fora as pedras preciosas e destruí as pérolas e deixarão de existir os grandes ladrões. Queimai os contratos e parti os carimbos e o povo voltará a ser simples e frugal. Baralhai as medidas e quebrai as balanças e as gentes não mais se disputarão. Aboli as instituições dos santos e dos reis e o povo tornar-se-á sensato. CHUANG CHOU Chuang Tse [séc. IV a. C.]

Fazer-se de morto

Há três dias que, como certos personagens de Roberto Arlt , me faço de morto. Talvez mais. Não, não é «talvez mais»: faço-me fervorosamente de morto há muitos dias. Não funciona. Sou tão inábil na nobre arte de fingir-se morto que não mereço sequer uma nota marginal entre os personagens secundários de Roberto Arlt.

Ir de barco

Só ontem à noite, talvez porque Betty e Rita falavam em francês no canal arte, é que me apercebi da ligação de Mulholland Drive (por atração, contraste e devaneio) a Céline et Julie vont en bateau.

Traduzir

Traduzir enfrenta os mesmos problemas triviais que as relações amorosas, pelo menos quando se traduz para ler . Há um vínculo de grande apego (às vezes, mais do que um vínculo, é uma vala onde podemos cair e morrer — um ou dois, de longe a longe). Mas também pode surgir, de repente, uma vontade irresponsável de trair. O engraçado é que essa traição revela, ou anseia revelar, uma ligação ainda mais forte e secreta. Quer dizer, ao contrário do amor, aqui os dois movimentos vão no mesmo sentido.

Bakakai

Começo a ler a primeira edição de Bakakai em português. Tenho a impressão de estar a ler os contos de Virgilio Piñera. Ou será o contrário? Ao ler os contos do Piñera, estou na verdade a seguir a imaginação de Gombrowicz?

Prefácio a “Lágrimas e Santos”

Nas suas Entrevistas com Chestov , Benjamin Fondane cita uma frase de Chestov que diz que a melhor maneira de filosofar é “andar sozinho”, sem tomar outro filósofo como guia; melhor ainda é falar de si mesmo. Fondade acrescenta mais adiante: “o tipo do novo filósofo é o pensador privado, Job sentado sobre o seu esterco”. Cioran pertence a essa raça de pensadores. Durante muito tempo ignorado, lido apenas por marginais.  Se os seus paradoxos ou as suas piruetas divertem ou irritam alguns dos seus leitores, outros — os verdadeiros — experimentam uma estranha sensação de euforia à beira do abismo, como essa jovem libanesa que lia Cioran sob os bombardeamentos, numa cave em Beirute, pois achava o seu espírito estimulante e o seu humor um tónico no meio do desastre. Ou como aquela japonesa que, querendo matar-se, descobriu a tempo as palavras de Cioran sobre o suicídio e começou a escrever-lhe. A felicidade de uma obsessão partilhada transformou o pesadelo numa conversa epistolar.  O que d

Tempestuosa temperatura

Apesar do Sol declinante, o calor sufocava naquela região de África, vizinha do Equador, e cada um de nós sentia-se duramente incomodado pela tempestuosa temperatura que a brisa não conseguia alterar. Raymond Roussel, Impressões de África . Tradução de Júlia Ferreira e José Cláudio.

Apanhar a fresca

Ocorrências

Lá fora estão trinta graus. Dentro de casa estão mais dez. A água ferve nas torneiras. A louça do pequeno-almoço seca na banca em poucos minutos. A ventoinha abana a cabeça, vezes sem conta, como que para afastar ideias tristes. As portas estalam. Os móveis rangem. Ou serei eu?

Telepatia

Fiz uma busca em quatro línguas, mas não consegui encontrar nenhuma ligação entre os aforismos de Cioran e a palavra telepatia. É pena, parece-me que tudo na palavra — até o seu ar vagamente de pacotilha — ajusta-se bem aos pensamentos de Cioran. Há alguns anos escrevi isto: Corpo e sombra só se conhecem telepaticamente . Se calhar serve para colmatar a falha — uma tradução apócrifa, uma nota de rodapé encontrada fora do sítio, calçar os sapatos dos outros, qualquer coisa desse tipo.

Group feeling

An Argentinian film censor was asked once why he didn’t allow on a cinema screen some footage that had been on TV screens. His answer was that even if more people, in figures, watched TV; they watched it in isolation, never more than four or five, while a cinema audience develops a group feeling, and if somebody booed or shouted at the screen others might follow and a riot could start. That’s a man who knows his job! De uma entrevista a Dusan Makavejev.

Camões - Uma fotonovela

O Camões desapareceu. Já apareceu, mas não é o Camões.

Uma coisa que acabara com os Gregos e os Romanos

A rapariga doutorara-se em Filosofia, e isso deixara Mrs. Hopewell completamente desorientada. Pode dizer-se “A minha filha é enfermeira”, ou “A minha filha é professora”, ou até “A minha filha é engenheira química”. Mas não se pode dizer “A minha filha é filósofa”. Isso era uma coisa que acabara com os Gregos e os Romanos. A gente sã do campo, de Flannery O’Connor.  Tradução de Clara Pinto Correia, edição Cavalo de Ferro.
Estou sentada no sofá, digo “vou ligar à minha mãe”, marco o número. Uma mensagem gravada informa que ela não está disponível. É a voz da minha mãe. Acordo.

Escolha

Dois filmes recentes: Martin Eden , de Pietro Marcello, e A verdade , de Hirokazu Kore-eda. Ambos giram em torno de personagens que, de uma maneira ou de outra, trocaram a vida pela arte. Um escritor e uma actriz. Tudo é sacrificado pelo desejo de alcançar uma suposta perfeição artística. Mas, tal como no Fausto , e com a dose certa de moralismo, o preço do sucesso é sempre demasiado elevado: loucura, solidão, autodestruição. No extremo oposto, está o «doutor», personagem do conto O visitante da noite , de B. Traven. Um escritor que vive isolado na floresta tropical e que escreve para um único leitor: ele próprio. Todo o prazer da criação está contido unicamente no acto da escrita: «Sempre que concluía um livro, relia-o, corrigia-o, introduzia-lhe as alterações que julgava essenciais para o tornar perfeito, o mais próximo possível da minha ideia de perfeição, e, feito isto, sentia-me feliz, plenamente preenchido. Logo a seguir destruía o livro...» Escrevi que o «doutor» está no «extr
Fernando Savater: Você não abandonou apenas a sua pátria, mas também, e isso é o mais importante, a sua língua. Emil Cioran: É o maior acidente que pode acontecer a um escritor, o mais dramático. As catástrofes históricas não são nada à beira disto. Escrevi em romeno até 1947. Nesse ano vivia numa casinha perto de Dieppe e traduzia Mallarmé para romeno. De repente disse para mim mesmo: “Que absurdo! De que serve traduzir Mallarmé para uma língua que ninguém conhece?” Foi então que renunciei à minha língua. Comecei a escrever em francês, e isso foi muito difícil porque, por temperamento, a língua francesa não me convém: preciso de uma língua selvagem , uma língua de bêbado. O francês foi para mim como um colete-de-forças. Escrever noutra língua é uma experiência aterradora. Refletimos sobre as palavras, sobre a escrita. Quando escrevia em romeno, fazia-o sem me dar conta, simplesmente escrevia. Nessa altura as palavras não eram independentes de mim. Quando comecei a escrever em fra

Começar tudo de novo

- Vejamos então. Muitas vezes penso como seriam diferentes a nossa arte, os nossos escritos, as nossas técnicas, as nossas arquitecturas, tudo aquilo que realizámos se, em 1650, por exemplo, tudo o que até então fosse obra do homem tivesse sido destruído, tão meticulosamente destruído que nenhum ser humano pudesse lembrar-se de como era uma roda de carroça, nem se a Vénus de Milo fora uma pintura, um poema ou um nome inscrito na quilha de um navio, ou se a democracia e monarquia se referiam a alimentos ou eram sinos de igreja. Pela minha parte, estou convencido de que o mundo seria hoje, provavelmente, um lugar cem vezes mais agradável para viver se humanidade, de tempos a tempos, tivesse a oportunidade de desfazer-se de toda a história e de toda a tradição e voltasse a começar do zero, sem ideias gastas, lugares-comuns e opiniões que criam obstáculos ao nascimento de um mundo inteiramente novo. B. Traven, O visitante da noite e outros contos . Tradução de Manuela Gomes.
François Bondy: Como é que conseguiu este apartamento no sexto andar, com esta vista magnífica sobre os telhados do Quartier Latin? Emil Cioran: Graças ao snobismo literário. Já há muito tempo que estava farto do meu quarto de hotel na rua Racine e pedi a uma agente imobiliária que me procurasse qualquer coisa, mas ela não me mostrou nada. Então enviei-lhe um livro que acabara de publicar, com uma dedicatória. Dois dias depois trouxe-me aqui, onde a renda — acredite ou não — é de cerca de cem francos, o que corresponde aos meus meios de subsistência. Com as dedicatórias de autor é assim. A sessão de autógrafos na Gallimard, sempre que um livro é publicado, é uma coisa que me aborrece e uma vez esqueci-me de assinar metade dos livros. Nunca tive tantas críticas más. É um rito e uma obrigação. Nem Beckett pode escapar a isso. Joyce nunca o conseguiu entender. Disseram-lhe que em Paris um crítico espera sempre uma carta de agradecimento do autor quando diz bem dele. Uma vez ele concor

Tipos de confinamento: o confinamento beckettiano

Samuel Beckett, Endgame , por Tania Bruguera.

Gaivotas na Normandia

Na costa normanda, a uma hora tão matinal, eu não precisava de ninguém. A presença das gaivotas incomodava-me: afugentei-as com pedradas. Ah, os seus gritos de uma estridência sobrenatural — compreendi que era justamente isso que me faltava, que só o sinistro podia apaziguar-me, e que foi para o encontrar que me levantei antes do dia. Emil Cioran, Do inconveniente de ter nascido.

Tolstoi ou Dostoiévski

Cada vez que penso no grande temor da morte em Tolstói, começo a compreender o pressentimento do fim dos elefantes. O sofrimento é a única causa da consciência (Dostoiévski). Os homens dividem-se em duas categorias: os que percebem isso, e os outros. Emil Cioran, Lágrimas e Santos.

Sombra

Já passaram cinco meses desde que estou em casa. Talvez mais. Perdi a conta ao tempo. A gaivota que nasceu no telhado em frente já tem o tamanho de um pato pequeno. Move-se de um lado para o outro, sobre as telhas, com a mesma destreza com que um tipo sóbrio caminha numa rua de paralelos. Tem um apetite voraz. Os pais desembaraçam-se como podem, atirando-se aos sacos do lixo. De vez em quando, passam à frente do sol e uma sombra rápida desliza pelas paredes de minha casa. É o momento mais «verdadeiro» do meu dia de teletrabalho.

Mais lágrimas

"Em todo autor existe" escreve Sanda Stolojan, "uma imagem-chave que responde a uma obsessão profunda e reveladora. Assim é a imagem das lágrimas e do seu corolário, o pranto, ao longo da obra de Cioran ... Em "Lágrimas e Santos" , ele prevê o dia em que se arrependerá, em que ficará envergonhado, por ter amado tanto os santos e "o misticismo, essa sensualidade transcendente". Ele separar-se-á dos santos, das suas efusões, mas o adeus ao lirismo não apagará em si a imagem e o pensamento que o obcecam "