Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2023

Jornada

Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

«A vida é um estado de ambição»

Trouxe Areias Brancas da Biblioteca. É o primeiro livro de Geoff Dyer que leio e encontrei-o por acaso. Na página 190, por duplo acaso: outra citação de Cioran*. No póquer, um par é apenas a oitava melhor mão possível. No resto, desconfio que ainda é menos. «E. M. Cioran diz que a toupeira cegamente escavando o seu túnel é ambiciosa, que «a vida é um estado de ambição », mas que, na compreensão habitual, a ambição tem sempre um objectivo qualquer para lá das satisfações que a tarefa proporciona: aclamação, reconhecimento, fama, dinheiro.» * A tradução do que não está entre aspas não é grande coisa; no original de Cioran e na versão francesa de Dyer não há gerúndio (é no que dá traduzir a partir do inglês). O advérbio é invenção de Dyer e, mais do que mudar o verbo, creio que se trata de uma  interpretação subtil — se fosse «às cegas» em vez de «cegamente», nem tinha notado.  A citação não existe no texto original publicado pela Harper's em abril de 2016.

Tchékhov, contos de impacto e funis de venda

 

Agora é que acaba

Espero que os direitos d’ O Passageiro e Stella Maris sejam caros que chegue para afugentar adaptações tipo Netflix. Não precisamos que nos mostrem a beleza de Alicia nem os tiques do Puto esquizóide. É preferível imaginá-los de um modo difuso e não finito — não é para isso que a literatura serve? A única coisa que se pode acrescentar ao díptico de Cormac Mccarthy é a banda sonora dos números de vaudeville:  Tom Waits a bater em latas, a fritar bacon , etc. Isso.

A dúvida como mecanismo de condução

Estabelecer uma relação entre Alicia e Cioran é uma ideia estúpida, mas bastante divertida. Acabei por descobrir (na verdade foi Alicia que descobriu) que a família dos Western (da parte da mãe) era originária da Roménia e, durante um certo tempo, Alicia teve o devaneio de fugir para lá (como se a Roménia fosse a floresta por excelência) com o irmão para viver um amor fora da lei. Claro que isso vale vários pontos na minha investigação falhada, mais até do que o suicídio que é penalizado por ser demasiado óbvio. Depois há muitas coisas que Alicia diz ao psiquiatra e ao Puto — mas não tirei notas, por isso fico-me por esta citação, já d’ O Passageiro (página 319), que podia ser um recadinho amoroso para o filósofo. E já chega disto. «(...) A ideia está sempre a lutar contra a própria concretização. As ideias surgem dotadas de um cepticismo inato, não aparecem e levam tudo à frente. E estas dúvidas têm a sua origem no mesmo mundo que gerou a própria ideia. E isto é uma coisa a que, na

Notas de viagem

Tuzla, Bósnia Na porta de um edifício público, três anúncios de óbito. Dois homens e uma mulher. Os anúncios são do mesmo tamanho e visualmente semelhantes, excepto o símbolo impresso no topo de cada um. O primeiro é uma inscrição islâmica, o segundo é uma cruz ortodoxa e o terceiro são duas penas cruzadas, sinal de que era ateu ou não tinha religião. Skopje, Macedónia do Norte O fachadismo de Skopje é o exacto oposto do fachadismo do Porto. O interior dos edifícios é o mesmo do tempo da Jugoslávia, mas as fachadas são substituídas por grotescas imitações neo-helénicas. No Porto, pelo contrário, mantém-se a fachada e arrasa-se o interior. Em ambos os casos, o passado não passa de um bibelô que se usa de acordo com o gosto e a política do momento. Skopje-Ohrid Estrada entre Skopje e Ohrid. No jardim de algumas casas, as pessoas cultivam flores e postes de betão com vários metros de altura onde adejam gigantescas bandeiras albanesas. Ao longe, parecem manchas de sangue, entre o céu e a

Que história é esta da poesia?

Num dos seus encontros, ao vasculhar nos papéis de Alicia, o Puto descobre que ela escreve poesia ( O Passageiro , página 316). Quase de certeza que Cormac não nos vai mostrar nem um verso. É um fora de campo brilhante porque nos desinquieta como uma picada.

A cerimónia típica vienense

Encontrei [Thomas] Bernhard poucas vezes, todas elas memoráveis. A primeira vez foi em Roma, com Ingeborg Bachmann e Fleur Jaeggy, no início da década de 1970. Bernhard havia lido um texto seu no Instituto Austríaco. Contou-nos que o director do Instituto se preocupou logo em lhe dizer, com a cerimónia típica vienense: «A cama onde vai dormir é a mesma em que Johannes Urzidil morreu há alguns meses.» Roberto Calasso, O Cunho do Editor . Tradução de José J. C. Serra.

É uma pessoa perfeita

O Puto Talidomida mete no bolso qualquer personagem excêntrica de David Lynch. Na verdade ele nem é bem uma personagem, melhor seria chamar-lhe entidade, como Alicia diz já não sei em que página. Convém também não esquecer que se trata de uma criação da criação, quer dizer, Cormac McCarthy inventou Alice ( Alice and Bob , isso) que saca este rapaz defeituoso das profundezas do seu inconsciente puramente biológico .  O Puto domina em três campos: apresentação, discurso e artes cénicas. Num certo sentido podemos, talvez, considerá-lo um primo americano das personagens de Lewis Carroll — todas em simultâneo, encavalitadas e turbinadas. 1. Quanto à apresentação, basta citar algumas das descrições que a imagem cresce por si, bizarra e poderosa:  « O nome completo é Puto Talidomida. Não tem mãos. Só um par de barbatanas.» (...)  « Podemos falar do Puto?  Claro. Que se foda.  Toquei num ponto sensível.  Na verdade, não. Apeteceu-me ser ordinária, só isso.  Qual é a aparência dele? 

O rasto das afinidades

O que a topologia tem de fixe é que os problemas em que trabalhamos não têm que ver com outra coisa qualquer. A nossa esperança é a de que, ao resolvê-los, eles nos expliquem porque é que os formulámos, logo para começar. Procuramos o rasto das afinidades.  Stella Maris, de Cormac McCarthy. Tradução de Paulo Faria. Edição da Relógio d’ Água. Página 136.

Estames

Só agora descobri que a melhor forma de ler O Passageiro e Stella Maris não é pela ordem em que foram editados, nem ao contrário. Devem ser lidos intercaladamente, como no exemplo do Priberam : estames dispostos intercaladamente. Assim, sim, percebemos o que é o efeito estéreo em literatura.

Saltarinheiro

14 de outubro (1970) A. A. envia-me o Diário de Vlasiu onde se fala muito de mim tal como era em 1938-39.  Esse eu de que Vlasiu fala, por mais que tente, não o consigo reconhecer: escapa-me, tem a consistência de um espectro. É verdade que não se percebe lá muito bem como é que nos podemos reconhecer quando somos evocados por um saltarinheiro, por um escroque ao mesmo tempo bilioso e cheio de encanto, um labrego manhoso e cabotino como não há outro.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972   Traduzir os Cadernos  obriga-me, constantemente, a procurar uma data de insultos em português. Não são uns insultos quaisquer, têm de ser potentes e encantores ao mesmo tempo (mais ou menos:  pulverizar, mas com dedicação ).  Para além da alegria que me dá no momento, fico preparada para eventuais reclamações, guerrilhas e discussões. E também deve dar pontos no curriculum vitae .

Javardos e egoístas

Aquele homem de Torre Bela que discute a posse a enxada, é mais ou menos a figura que estamos todos a fazer perante o desastre que se desenrola à nossa frente. É pior ainda, creio, porque esse homem, apesar de não conseguir imaginar o uso comunitário de uma ferramenta, sabia alguma coisa sobre as nossas tendências mais torpes e agia em conformidade. E nós? Nós apenas não aceitamos ser menos javardos e egoístas.

Consolidação do inferno

É bastante irónico que nos aproximemos tanto e tão depressa de uma versão rasca do inferno feita de calor e fogos. A realidade assemelha-se às imagens infantis dos folhetos que as testemunhas de Jeová nos oferecem na rua como se fossem rebuçados. Talvez a ideia de Cioran de um Deus trocista — um Criador que se risse da Criação — se tenha materializado.

Vencidos da vida

Ataque de fúria, mais uma vez. Será possível deixar passar os dias como eu faço? Há meses que não escrevo nada, nada, nada, nada! Irrito-me como uma puta sem clientes, barafusto contra tudo e amaldiçoo-me! Ou então consolo-me pela minha esterilidade e pelos meus fracassos, entregando-me a essa voluptuosidade de saber que já não existo para ninguém. Como se tivesse existido! Invento este esquecimento que, falso ou real, me dá uma amargura apaziguadora. Não existir mais para ninguém! Mas toda a gente, cedo ou tarde chega lá, inevitavelmente. É a grande consolação dos vencidos.  Uma miséria da qual não consegui livrar-me: a doçura da autocomiseração.  Esta manhã reflecti de novo nas possibilidades que o suicídio oferece. E depressa superei o meu acesso de fúria.  Devíamos gravar no frontispício das câmaras municipais e das igrejas: Todos nós somos vencidos .  É mais fácil viver com esta divisa do que com falsos boletins de vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

22 de novembro (1968)

Esta manhã, por volta das 3h, do Colégio Militar ao Odeon, meti por ruelas completamente solitárias. Nem vivalma. Frio. E ocorreu-me a ideia de que caminhava por uma cidade onde todos os vivos tinham sido exterminados instantaneamente (guerra bacteriológica?). Nenhuma angústia nem satisfação.  E pensei que nos adaptamos depressa à condição de sobrevivente. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

22 de maio (1970)

Com a minha cobradora de impostos. Uma senhora de olhar frio, quase malicioso. Acha que não ganho o suficiente, ou melhor, que não declarei o suficiente.  — Está bem vestido. O seu fato é novo.  — São os amigos que me vestem.  — E para comer?  — Tenho a vantagem de ter uma gastrite. Estou de dieta. Nunca vou a restaurantes. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

Luz de presença

Aparece na página 36, sem nenhuma relação com Alicia. No Napoleon House, no bairro francês, um tipo conta como conheceu Bobby Western e às tantas diz: «Citei-lhe Cioran, ele citou-me Platão acerca do mesmo assunto.» Uma coisa de nada, mas vou considerá-la como luz de presença.
Apesar de fazerem parte de um díptico, quando acabei Stella Maris , não consegui passar logo para O Passageiro — certos livros precisam de um bocado de película negra no fim, como os filmes de Godard ou aquela cena do Sans Soleil .

Juventude em marcha

Fico sempre espantada como é que homens tão velhos podem criar personagens tão jovens e bravias. Alicia Western é uma mulher improvável, mas é também, e sem contradição, extremamente verdadeira e apaixonante. (É da mesma têmpera da Karin de Saraband .) Dá a impressão que Cormac McCarthy guardou para o fim uma energia qualquer, uma forma diabólica de interpretar a fuga de Bach que, em português, talvez se possa traduzir por juventude em marcha.

Amanhã há mais

Fim de tarde. Regresso a casa após mais um dia de trabalho. No metro, ouço um tipo dizer a outro: «Por hoje já está.» O segundo responde: «Amanhã há mais.» E isto é dito no tom branco e neutro de uma ladainha. É impossível perceber se existe um pingo de entusiasmo naquele «amanhã há mais» ou se, pelo contrário, é a tristeza que ali espreita e mostra a ponta fria do nariz.

Experiência da dupla fenda

Foi por acaso. Encontrei-o na biblioteca, na prateleira das novidades, mas era por aqui que queria começar: Stella Maris , o último livro de Cormac McCarthy. Alicia Western podia ser uma leitora (perversa?) de Cioran. Talvez até o conseguisse transformar numa equação?

O mar a agitar-se na tela

De repente, lembro-me do primeiro filme que vi (em 1919?) em Sibiu, no cinema «Appollo». Se não me engano, o filme chamava-se A Dama do Mar ( Doamna Mării ) (??) Recordo-me da perturbação que senti ao ver o mar a agitar-se na tela. Essa sensação, nunca a devia ter esquecido; e, no entanto, só me ocorreu hoje, quarenta e cinco anos depois! Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (fevereiro de 1966)

Não

A ventoinha roda a cabeça, uma e outra vez, negando tudo: não, não, não. Bartleby mecânico, sem palavras, a agitar levemente os papéis sobre as secretárias. O único «não», surdo e sumido, que o mundo consente aos empregados de escritório.

Une chute oblique, très douce.

Prefiro sempre ir ao cinema sozinha. Mas no caso de Sob o Sol de Satanás , podia ter ido com Cioran. Acho que ele ia gostar daquela viagem nocturna em que o padre Donissan encontra a encarnação de Satanás: um tipo que anda por aí, de um lado para o outro, por conta de um negociante de cavalos. 
Sous le Soleil de Satan , de Maurice Pialat, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1987. À Antenne 2, Yves Montand, presidente do júri, disse que ficou muito contente por o filme ter sido escolhido por unanimidade apesar de dois ou três membros do júri terem lamentado que, por vezes, algumas palavras lhes escapassem. A linguagem de Bernanos já é tão difícil para nós, imaginem então para os estrangeiros.

A política do falso caracol

Expliquei hoje a Piotr Rawicz que a minha política é a do caracol: esconder-me, retirar-me, sair apenas ocasionalmente. Ele respondeu-me que não é assim tão simples, que apesar de tudo somos solicitados pelo mundo. Concordei. «Sou um  falso caracol», disse-lhe.   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  (julho de 1967)