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Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2019

Disposições morais

Voltamos sempre, ou pelo menos eu volto muitas vezes, à cena final d’ O Carteirista . Talvez seja mesmo assim, talvez seja preciso tempo e caminhos estranhos para chegar onde sempre estivemos, uma espécie de andar sem sair do sítio. Nem todos os problemas pedem uma resposta, mas sim uma disposição.

Algures a meio

Em O Sabor da Cereja , de Kiarostami, há um personagem que procura desesperadamente alguém que o ajude a morrer, numa espécie de suicídio assistido. Em 3 Rostos , de Panahi, há um personagem que procura desesperadamente alguém que o ajude a viver, simulando para isso um suicídio. Ambos os caminhos são estreitos. Só passa um personagem de cada vez. Um desce a encosta escarpada, o outro sobe. E algures a meio, no coração misterioso do mundo, o destino dos dois funde-se, como no conto do Virgilio Piñera.

Gabinete de Patentes, Lda

Em rigor e ao contrário do que apregoa, o mercado é preguiçoso e não se ajusta aos nossos desejos mais profundos. Há por aí tantos dispositivos tecnológicos que não servem para nada e outros, que nos fazem uma falta tremenda, ainda não existem. Neste momento — posso afirmá-lo com absoluta certeza — é urgente a invenção de um detector de arte contemporânea. Já pensei no assunto e tenho uma ideia para o protótipo: deve ser um objecto portátil e discreto feito de material nobre (titánio ou zircónio são boas hipóteses), com um olho a meio como os ciclopes e um rasgão por onde sai uma tira de papel, semelhante às mensagens dos bolinhos de sorte chineses, com o veredicto. O procedimento é fácil. Exemplo um: vamos pela rua fora, encontramos um volume indefinido debaixo duma arcada, apontamos o detector e, se for uma obra de arte, paramos para observar e tecer alguns comentários elevados. Se for um tipo que está para ali a dormir, “é a vida” e seguimos caminho. Exemplo dois: deparamos ...

Querido Ozu,

o Japão está a ganhar a guerra.

Particular orgulho

Mas o filho, João Brito, também editor, diz que teve um particular orgulho em ter publicado o monumental “Bela do Senhor”, de Albert Cohen, com tradução de António Pescada, e o desgosto de o ver fracassar. Há livros que são como ervas espontâneas, existem por si próprios, são necessários e é isso que importa, encontram sempre uma brecha, uma saída, o êxito. A “Bela do Senhor” não fracassou nem poderá nunca fracassar. Há quanto tempo foi? 20, 25 anos? Estava de férias em São Pedro de Moel e andava a ler “Bela do Senhor” (antes ou depois do “Trincapregos”?) Nessa altura nem sequer tinha carro, levei-o na mochila, na camioneta, nos braços, para a praia e para a esplanada de um café velho junto às rochas, sobranceiro ao areal. O livro dava nas vistas pela espessura (900 páginas) e pela capa amarela. Lembro-me de uma rapariga dizer ao namorado, alto e com enjoo, “Ei, já viste aquele calhamaço!?” Ela não fazia ideia da minha monumental sorte.

Odisseia

Retomo o fio à meada e volto ao personagem de Joan Cornellà, « aquele gajo aleatório da vida real que finge que tem uma vida ok, mas que está a vender produtos de merda de bancos.» O gajo que é segurança num supermercado , o gajo que trabalha na fábrica da Renault , o gajo que não tem onde cair morto , a gaja que procura desesperadamente um amor . A gaja, o gajo, eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas. Todas as gajas e gajos que ficcionam vidas excitantes nas redes sociais como um antídoto para a doença negra dos dias. Todas as gajas e gajos que sempre ficcionaram uma outra vida como um antídoto para a doença negra dos dias. Hoje, ontem, há vinte anos, há cem anos, há milénios. E amanhã e depois, e daqui a mil anos. O «gajo aleatório da vida real» tem uma história. É Ulisses ou Telémaco. A gaja é Calipso, Circe, Atena ou Penélope. Tantas Penélopes e tantos Ulisses. Tantos quantos os homens e as mulheres que «atravessaram este vale árido», amarrados a uma infelicidade, no esforço ridí...

Como uma planta robusta se vira para o sol

Lembrava-me do sentimento de quando, há alguns anos, li “O Mar, o mar”, ou ainda mais afastado com “Henry e Cato”; quer dizer, sabia bem o que me esperava ao ler “O sino”: exaltação. E não basta escolher e seguir um dos sentidos da palavra; é um e depois afinal é outro e ficamos nessa indecisão, nunca estamos seguros e isso já faz parte da experiência, do distúrbio. Através de todo o livro parece que se ouve uma música ( de onde vem esta música? do ar ou da terra? ) e ao mesmo tempo: há uma tempestade com chuva e trovões (não estou certa dos trovões), uma morte, um desatino mental, um sino que é retirado dum lago e um sino que cai num lago, o próprio lago cheio de zonas obscuras, três sermões divergentes, simetrias feitas e desfeitas a alta velocidade, acidentes, um cão chamado Murphy, as habituais dificuldades em lidar com o amor e outras mais inconfessáveis — e é tudo tão forte que está para além do medo. Porque Iris Murdoch transforma o que é terrível numa coisa imensamente viva e...

Cabras, bois e porcos

— Quer-me parecer — disse ele — que a senhora Greenfield é aquilo a que popularmente se chama uma cabra. Tenho muita pena de te dizer isto, mas é preciso que nos habituemos a chamar os bois pelos nomes. Só podem resultar sarilhos intermináveis se não o fizermos. — Tu dizes que não ouviste barulho nenhum durante a noite? — perguntou Michael. — Absolutamente nada. Mas ultimamente tenho andado tão cansado que durmo como um porco. Nem a trombeta do Juízo Final me acordaria; teriam de mandar cá abaixo um mensageiro especial. O Sino, Iris Murdoch, Relógio d’Água, julho de 2016, páginas 229 e 230

Real e perfeito

Os quadros comoveram sempre Dora. Mas hoje a comoção que sentia era de natureza diferente. Ficara maravilhada, e com uma espécie de gratidão, pelo facto de continuarem ali, e o coração enchia-se de amor pelos quadros: pela sua autoridade, pela sua maravilhosa generosidade, pelo seu esplendor. Ocorreu-lhe então que aqui estava algo de real e algo de perfeito. Onde ouvira ela dizer qualquer coisa acerca de a perfeição e a realidade coexistirem no mesmo lugar? O Sino, Iris Murdoch, Relógio d’Água, julho de 2016, página 190.

Aquele gajo aleatório

O rosto sorridente do teu personagem principal tornou-se quase o teu cartão de visita, tendo chegado a significar um sentido de desespero, negação e mania no teu trabalho. Ele é baseado numa pessoa real? O meu personagem não é baseado em ninguém específico, mas mais numa mistura de rostos. Podes ver esse tipo de sorriso nas imagens gráficas do Aphex Twin, em alguns personagens do Goya e naquele gajo aleatório da vida real que finge que tem uma vida OK, mas está a vender produtos de merda de bancos. Joan Cornellà.

Close-up

A origem da revolução

O [café] "Rã Verde" possuía um certo passado histórico, porquanto se dizia que ali nascera a revolução de 1848. Tal era, noite após noite, o tema da conversa dos frequentadores habituais, que nas diversas mesas se interrogavam se a revolução não teria sido consequência do vinho ligeiramente ácido que o patrão daquela época servia aos seus clientes, ou se teria sido devida a outras causas. Gustav Meyrink, A Noite de Walpurgis . Tradução de Maria Teresa Antunes Cardoso.

"Isto é arte"

Obra de arte em galeria lisboeta mobiliza polícia, bombeiros e INEM
Há um momento em Vida e Destino , a obra-prima do escritor soviético Vassili Grossman, em que o leitor percebe que o protagonista Viktor Strum não é o "herói" do romance, mas apenas mais uma das suas vítimas. Um físico nuclear talentoso e inteligente, Strum vê o valor objectivo do seu trabalho oscilar ao sabor de caprichos ideológicos, e as suas pesquisas sobre mecânica quântica são publicamente vilipendiadas por não serem "reconciliáveis" com a doutrina do materialismo dialéctico. O processo era típico e tipicamente racional. O dissipar de recursos humanos valiosos era instrumental para a sobrevivência do sistema. Se alguém mostrava qualidade suficiente para ser útil ao país, o raciocínio era que mais tarde ou mais cedo mostraria qualidade suficiente para ser uma ameaça ao regime. Só a mediocridade era considerada inofensiva e, portanto, tolerada; o talento - qualquer talento - tinha de ser controlado, ou neutralizado. Isto pode parecer uma patética subordinação ...

Literatura pesada

Depois de alguns desencontros, consegui trazer “O Sino”, de Iris Murdoch para casa. A última pessoa que requisitou o livro na biblioteca devolveu-o antes do prazo, creio que não o leu até ao fim. Compreendo a desistência; os romances de Iris Murdoch são tremendamente maciços. Observar a pequena comunidade laica anglicana de Imber Court ao microscópio pode revelar-se um exercicio demasiado pesado. Mas é isso que me atrai na escrita de Murdoch: a densidade, os tormentos morais das personagens — ah, como elas sofrem e como, apesar de tudo isto, talvez até por causa de tudo isto , é bom viver.

Observações avulsas sobre a boavista #4

Há vários hotéis na avenida da Boavista e nas ruas vizinhas, mas são todos insípidos — acho que a definição que se usa nestes casos é “estilo internacional” (ver Playtime , de Tati). Onde eu gostava de passar uma noite, ou até várias noites, era na sede do Partido Comunista. O que é que se passa naquelas habitações por cima da zona comum (nem sequer sei se esta é a nomenclatura correcta — sala de reuniões, de trabalho?), por trás dos estores e das cortinas? Como é que se acede a esses andares? Quem vive lá? Durante quanto tempo?

Película aderente

— O Walter Benjamin está quase todo em saldo na Flâneur . — Não deve vender muito… — Talvez. Mas é estranho, não achas? — Estranho? — Sim, estranho. Afinal, é um dos pensadores do século XX mais citados do mundo. — Do mundo ocidental é, com certeza. Não há ensaio, artigo, nota de rodapé, que não inclua uma citação de Walter Benjamin. — O mais citado, sim, mas será o mais lido? — E os que o leram, tê-lo-ão compreendido? — Li tudo o que está traduzido e há muitas ideias que não compreendi. A maioria, devo confessar. — Sim, há qualquer coisa difícil de definir e que nos impede de chegar ao verdadeiro sentido das suas palavras. Uma espécie de falsa transparência. — Como se os textos estivessem envolvidos em película aderente. Consegues ver o que está por baixo, mas não lhe tocas verdadeiramente.

18

Cada rua de Paris é como uma noveleta cheia de incidentes e isenta de moral. Também há ruas tão pequenas que parecem coexistir, na sua materialidade de pedra e cimento, com a vergonha e a modéstia próprias da sua condição de notas de rodapé urbanístico. Essas não se confundem com uma ficção: são frases, interjeições, fragmentos, aparas de madeira, trocos esquecidos no bolso do casaco. As próprias fachadas, os algerozes, as portas, os marcos de correio, os sinais de trânsito, existem numa harmonia cuidada, mas sobretudo eloquente. Os objectos nas montras das lojas também servem com naturalidade de pasto para os apetites narrativos que se encontrem à solta, para todas as ocorrências da mais poderosa pulsão de todas, que é a de fazer sentido e de narrar. Rue Ernest Cresson. Alimentação geral. As cores vivas das latas de bebidas, alinhadas como um exército. Tomates, cenouras, couves-de-Bruxelas, chalotas. Alguns passos mais adiante: cabeleireiro para damas e cavalheiros. Frascos de lo...
Os espaços com as mercadorias eram cada vez maiores e mais bonitos, meticulosamente limpos, contrastando com o abandono do metrô e das escolas públicas. Um ano inteiro não bastaria para experimentar todos os tipos de iogurtes Annie Ernaux | revista piauí | Fotografia de Andreas Gursky 

Batatinhas salteadas (esclarecimento)

Alguém pesquisou “batatinhas salteadas alvaro de campos” no bing e veio dar ao bicho ruim. Já aconteceu algumas vezes esta semana, por isso é melhor esclarecer o assunto. Ora bem, que eu saiba, há uma cena do engenheiro com dobrada à moda do porto servida fria ; batatinhas, acho que não. Mas podemos explicar a existência de batatinhas salteadas no blogue. Para começar, convém dizer que na origem, na língua alemã/vertente suíça, é rösti. A meio de uma representação, o actor que interpreta Helmer vê-se tomado de desejos de rösti e, seguindo uma ânsia sem travões, dá cabo dos valores morais de Ibsen. Walser é perito nestas tropelias existenciais. A tradutora podia ter retirado a trema (agora toda a comida é global); ou optado por tortilha que é semelhante ao rösti e tão comum que até se vende no supermercado. Resolveu saltear as batatas e, esse é o grande trunfo, reduzi-las a batatinhas. Leopoldina Almeida criou assim uma expressão em português que vai muito além da gastronomia e rev...

A história como pesadelo

- History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake. Lembrei-me do comentário de Stephen Dedalus, no  Ulisses , a propósito do texto de Jorge Almeida Fernandes, no Público de ontem: Jaroslaw Kaczynski concebe a política como “guerra civil permanente”. Regressado ao poder, relançou a guerra ideológica de 2005-2007, elegendo a História como campo de batalha. A Polónia tem uma história trágica. E o PiS sabe usá-la. A História serve para “fazer a guerra” e nomear inimigos, presentes e passados. Serve também para fornecer uma legitimação ao regime e para neutralizar a oposição. “A História é a nova religião”, diz ao Politico.eu um deputado conservador. A “Polónia heróica” é inseparável da “Polónia mártir” e deve ser uma “Polónia sem mácula”. Por isso se impõe reescrever a História.

Observações avulsas sobre a boavista #3

Hoje a avenida da Boavista parecia um jogo electrónico antigo cheio de pistas esquisitas. Não sei se é influência do Leão de Belfort, se é deste calor exagerado, se é de acordar demasiado cedo. Logo no início, uma t-shirt branca com uma espécie de labirinto estampado na frente enfiada numa cruzeta pendurada na porta do restaurante vegetariano (acho que era o meu número); mais adiante, um pássaro cansado; junto ao bingo, um cartaz publicitário de um banco encravado a meio com esta frase à altura dos meus olhos: “nunca deixe de procurar”. Procurar o quê? Precisava de um dicionário de pistas, mas um livro desses, tão perigoso, deve estar escondido num túmulo no oriente e o Indiana Jones já está velho para resgates. Ou então; talvez seja necessário outro o género de herói? Talvez precise daqueles calhamaços que ligam uns para os outros e Groucho Marx vende nas corridas de cavalos como se fossem gelados. Ou então, pelo menos, um gelado. Isso deve servir.

Na esplanada do Aduela

Manhã de sábado cheia de sol. Decidimos caminhar até à Baixa e ler numa esplanada. Escolhemos uma mesa debaixo da oliveira, na esplanada do Aduela. A oliveira está a rebentar de pequenas flores de um amarelo esverdeado. Milhões de flores minúsculas que tombam a cada sopro de ar. O cabelo e a roupa cobrem-se de flores. Algumas caem sobre as páginas do livro. Escondem letras, sílabas, transformam-se em misteriosos sinais de pontuação. Sacudo-as uma e outra vez para prosseguir a leitura. Depois, desisto. A oliveira insiste em usar as páginas do meu livro para escrever a sua própria história. E que espécie de leitor se negaria a ler a secreta história da oliveira?

Mas, na manhã seguinte

(Depois dos espargos, do folar de azeitonas, do salmão fumado e do vinho do Douro — fórmula petisco improvisado — não me apeteceu trabalhar. Sentei-me na varanda a aproveitar o sol e a ler mais umas páginas d’ O Leão de Belfort e agora já sei demasiado, pelo que vai ser difícil defender a crítica a uma obra baseada apenas num parágrafo. Vou tentar não fugir do risco. Dentro do possível.) A questão geográfica. No excerto referido é apenas o parêntesis (ou seja, a Paris), a Rue Lemercier e o bairro de Batignolles, mas isso basta para prevermos (o plural define os leitores habituais do Alexandre Andrade) deambulações várias pela cidade, viagens de metro e autocarro. E, num salto completamente bem executado, a geografia mistura-se com a arquitectura, e entramos nas casas quase sempre pequenas e alugadas, nos quartos, nos corredores e escadas. É uma espécie de guia, mas ao contrário, em que o objectivo principal (a esperança, diria até) é desviar-nos do caminho certo. Ou, pelo menos, enc...

Agora sim, Facilidades e Amenidades

Há regras para fazer crítica literária. Uma delas obriga a que se leia a obra antes de se proceder à análise (nos casos mais violentos pode dizer-se autópsia?) Outra (não sei se esta tem estatuto de regra ou é apenas um conselho) estabelece que não se deve tomar a parte pelo todo e vice-versa. Acima de tudo convém evitar amiguismos. Pois o que me proponho fazer não é nada disso. Apanhei o “Leão de Belford” na biblioteca e, enquanto esperava pelo 200 para o Bolhão, comecei a ler e logo nas primeiras páginas, no singular diálogo entre Georges e Sidonie, percebi tudo, quer dizer, percebi porque é que gosto desta noveleta urbana em particular e da escrita do Alexandre Andrade em geral. (Se isto fosse uma cena tipo ted talk, a imagem do leão projectada atrás de mim abria a boca, rugia e era substituída, após um corte abrupto, pela transcrição do segundo parágrafo em letras luminosas. Sons de rua distantes.) Primeira e única prova a apresentar: segundo parágrafo da obra já referida, ne...

Facilidades e Amenidades

Gosto de despojar os objectos de ostentações. É mais ou menos o contrário da publicidade ou da arte contemporânea mais empreendedora (ver Joana Vasconcelos nos dois casos): restituir vulgaridade às coisas, deitar por terra o prestígio acumulado (vale a pena investigar os antecedentes latinos da palavra  prestígio). É por isso que, entre outros gestos, prefiro comprar flores imperfeitas na rua ou na drogaria da avenida de França e a revista Electra na tabacaria da Fonte da Moura. Ontem caprichei no desempenho do exercício. À tarde, quando fui para casa, meti a revista de papéis finos no saco junto com o guarda-chuva vermelho ainda húmido e o tupperware sujo de sopa. O pensamento, a crítica e a reflexão precisam tanto de discurso como de chão.

— São rosas, senhor, são rosas!

Ontem à tarde apanhei o metro no Viso. É uma viagem maior, atravessa a zona industrial e bairros sociais. Ao passar em Francos, reparei que há muitos roseirais junto aos blocos. São mais bonitos do que o da avenida da Boavista: as rosas crescem à toa e com poucos cuidados, o caule muito alto, as flores emaranhadas umas nas outras, há ervas e flores mais vulgares misturadas. Os jardineiros não sabem, mas para fazer um roseiral basta plantar rosas e deixá-las trepar — é como o chá .

12 de Agosto de 1945

A bomba atómica foi descoberta - a guerra mundial chegou ao fim. Após dias de tempestade em que o vento, soprando a centenas de quilómetros por hora, assobiava por entre as árvores, a tranquilidade regressou. Um nevoeiro fino como um véu paira sobre o lago de Zurique enquanto viajo até à estação. Acomodo-me num canto para não fumadores do expresso e começo a ler. Em Winterthur, uma mãe e a sua filha, grande como uma galinha de engorda, forçam a entrada no comboio. A mãe transforma a carruagem silenciosa num quarto de crianças, prepotentemente, como se fosse o centro do mundo. Uma boneca é instalada no assento, a rapariga é penteada, o pequeno-almoço emerge de um saco de papel amachucado. O seu rosto gordo está ostensivamente voltado na minha direcção. Já não vejo nada à frente... Carl Seelig. Acaba a guerra mundial, começa a outra guerra, a guerra comezinha do quotidiano. Com todos os seus tiranetes, oficiais de pacotilha e fogo lento.

au·ra 

4. [Medicina] Sensação, como que de uma bola, que os epiléticos sentem subir do gastro à garganta, quando sobrevém uma crise.   (Ver também: Aura intelectual)

Marcas do génio

[Robert Walser] entusiasma-se ao falar da "curiosa mestria" de um Charles Dickens ou de um Gottfried Keller, em cujas obras o leitor nunca sabe se há-de rir ou chorar. Trata-se seguramente de uma das marcas do génio. Eu comento: "Isso também acontece frequentemente nos seus livros." Ele pára subitamente no meio da estrada, com um tremendo solavanco, faz um ar muito sério e dirige-se-me num tom suplicante: "Não, não! Peço-lhe encarecidamente que não volte a mencionar o meu nome em conjunto com o de tais mestres. Nem sequer deve sussurrá-lo. Ao ser mencionado na sua companhia, só me apetece enfiar-me num buraco!" Carl Seelig, Caminhadas com Robert Walser . Tradução de Bernardo Ferro.

Observações avulsas sobre a boavista #2

Perto do cruzamento com a Marechal, numa moradia um bocado antiga mas com os requintes da época, há um roseiral. Em rigor, é apenas uma amostra de roseiral, uma coisa quase kitsch, um talhão junto ao muro. Cercado com rede para proteger as rosas de quem passa na rua e dos cães da casa. Volta e meia vejo lá jardineiros profissionais, com ferramentas e adubos. No inverno cortaram rente todos os ramos e aquilo parecia um local de guerra: querem que nasça tudo de novo, com mais vigor e de forma adequada. As rosas já começaram a crescer; cor de laranja, amarelas, brancas, vários matizes de cor de rosa, vermelho vivo, um lilás raro. Todas cheias de força desordenada. As rosas ganham sempre aos jardineiros e aos donos dos jardins.

O problema, obviamente

Segunda-feira, dez da manhã. No bar da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, uma televisão aos gritos parece querer saltar da parede e devorar tudo à sua volta. O Quim Barreiros está a fazer playback no programa da Cristina Ferreira. O problema, obviamente, não está no Quim Barreiros ou na Cristina Ferreira.
A partir da página 95, a revista ELECTRA parece um herbário selvagem, uma colecção de plantas prontas a engolir-nos.

Brodski contrariava uma qualquer norma extremamente importante

(...) Brodski criou um modelo inédito de comportamento. Não vivia num estado proletário, mas num mosteiro do seu próprio espírito. Não lutava contra o regime. Simplesmente não dava por ele. E mal sabia da sua existência. A sua falta de conhecimento da vida soviética parecia fingida. Por exemplo, andava convencido de que Dzerjinski estava vivo. E que Komintern era o nome de um grupo musical. Não reconhecia os membros do Politburo do Comité Central. Quando, na fachada do seu prédio, afixaram um retrato de seis metros de Mjavanadze, Brodski disse: — Quem é este? Faz lembrar William Blake... O comportamento de Brodski contrariava uma qualquer norma extremamente importante. E foi desterrado para a região de Arkhangelsk. O poder soviético é uma dama melindrosa. Quem a ofende, sofre. E é pior ainda para quem a ignora... Serguei Dovlatov, O Ofício. ANTÍGONA. Outubro 2018. Páginas 42 e 43.

Como roubar bancos sem violência

Esta manhã, comprei na Vandoma por 50 cêntimos um livro dedicado ao «Samizdat» de teor político durante o período pós-estalinista. Trata-se de uma edição da Futura , de 1975, com selecção de textos, introdução e prefácio de George Saunders (não é o mesmo George Saunders ). Mas não é isto que me faz escrever. No final do volume, o editor inclui uma lista com outros títulos da mesma colecção (Meridianos Futura) e há um que inevitavelmente atrai a atenção de qualquer pobretanas como eu: «Como roubar bancos sem violência», de Roderic Knowles. Custava 90$00, em 1975, e foi, com certeza, livro de cabeceira de vários banqueiros portugueses. Eis um daqueles livros que não aparece nas feiras ou alfarrabistas. Deve ser mais difícil de encontrar do que uma primeira edição de «Os Lusíadas».

Fúria

O que mais impressiona numa obra como Fúria , de Lia Rodrigues (ou Bacantes , de Marlene Monteiro Freitas), é a distância que se abre entre o palco e a plateia. É um imenso abismo. Que força diabólica nos prende à cadeira e nos impede de nos juntarmos aos bailarinos? Que força intolerável nos impede de levantar e exigir também a natureza, o nosso corpo e alma de volta? Que pudor é este, que educação é esta, que nos força a assistir, sentados, confortáveis, bem-comportados, ao que se passa no palco do mundo? Um dia após outro, sem nos mexermos, sem abrirmos a boca. O que nos impede de saltar para o palco e participar do mundo? O que que nos prende à cadeira? Esta nossa incapacidade de derrubar o muro entre a magia e a civilização de plástico em que vivemos (Artaud, outra vez) é a verdadeira violência denunciada por este espectáculo. Não participar, não erguer a voz, não saltar para a roda, e aceitar sem luta este mundo que nos propõem, é a maior das violências. Levantar o traseiro no f...

A mais alta sabedoria

Uma vez, pediram ao mestre zen Ikkyu para escrever algo que reunisse a mais alta sabedoria. O mestre limitou-se a escrever uma palavra: Atenção . O visitante não ficou satisfeito. Só isso? Então, Ikkyu fez-lhe a vontade. Desta feita, escreveu duas palavras. Atenção. Atenção.  Li esta história no “Departamento de Especulações” de Jenny Offill. Estava a contá-la como anedota e quando tentei explicar o que me atrai nestas histórias curtas, de fim insatisfatório e extremamente  cómico, disse sem pensar: — Gosto destas histórias porque os mestres zen são um bocado estúpidos.  Fiquei surpreendida com a afirmação, mas depois de avaliar a palavra “estúpidos” percebi que é mesmo isso que quero dizer.

A classe operária vai ao paraíso

O sorbetto de ananás dos Açores e manjericão da gelataria Portuense (rua do Bonjardim) é o sabor mais próximo do  paraíso  que já provei.